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71º Festival de Cannes (10): O Fogo e a Vingança

Mais dois filmes surpreendentes estrearam na competição: Lee Chang-dong com “Burning” e Matteo Garrone com “Dogman”, ambos dois thriller psicológicos onde o fogo e a vingança são elementos comuns.

“Burning”, o mais recente filme, do realizador sul-coreano de Lee Chang-dong (“Poetry” e “Oasis”) é uma excelente adaptação do conto “Os Celeiros Incendiados”, de Haruki Murakami, que faz parte da colectânea “Os Elefantes Evaporam-se”, publicado em Portugal pela Companhia das Letras. E quem diria que a partir de um simples conto belíssimo é certo como todos de Murakami, o realizador Lee Chang-dong conseguia esticá-lo para duas horas e meia de duração e torná-lo num filme muito mais interessante, do que o conto publicado em 1992 no New Yorker, e só mais tarde incluído na tal colectânea.

Burning
Jongsu (Ah-in Yoo), é um jovem desempregado, solitário e aspirante a escritor.

“Burning”, é um filme emocionante e tenso, sobretudo porque o realizador consegue preencher muito bem e dar volume em belíssimas imagens aos gaps narrativos e mais misteriosos da intrincada história, de três estranhos personagens. Lee começa sua narrativa meses antes dos acontecimentos do conto, isto no dia em que o protagonista Jongsu (Ah-in Yoo), um jovem desempregado, solitário e aspirante a escritor, se depara com uma velha amiga da escola chamada Haemi (Jeon Jong-seo), como se fosse pela primeira vez. Logo no dia seguinte, os dois jovens encontram-se no pequeno estúdio dela e fazem sexo. A sedutora Haemi anuncia que viaja para umas férias no Quénia, pedindo a Jongsu que lhe alimente o gato. Haemi regressa com Ben (Steven Yuen), um tipo misterioso e bem-parecido que conduz um Porsche 911 Carrera e vive num bairro caro, que lhes confessa ter o estranho hobby de atear fogo às estufas de cultivo, cobertas de plástico (no conto é aos celeiros). Jongsu observa Ben com um certo desprezo e uma inveja visível, enquanto este ouve jazz e cozinha macarrão, no seu luxuoso apartamento. O que se segue é um surpreendentemente thriller e um triângulo amoroso excitante, sensual e misterioso, com Jongsu no papel de um pobre diabo castrado e apaixonado pela desaparecida Haemi ou pelo contrário apesar da sua passividade, num cérebro perverso que quer encontrar matéria e argumento para o seu primeiro romance.

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Além deste belíssimo argumento, “Burning” é lindamente filmado, numa drama que tem a aparência de um thriller psicológico, mas com deliciosas ambiguidades, humor, sensualidade — estou-me a lembrar de uma bela sequência de dança e striptease, ao por do sol, e ao som de um tema de jazz —  ecos de vertigem e até talvez um certa inspiração na obra de Patricia Highsmit; ou mesmo em “Corpos Escaldantes” (1981), de Lawrence Kasdam, curiosamente, o homem que escreveu a trilogia de “Star Wars”.

Burning
Ben (Steven Yuen), um tipo misterioso e bem-parecido que conduz um Porsche 911 Carrera.

Tudo isso contribui para um filme fascinante, mesmo que seja um pouco antiquado na sua representação no género policial, faz lembrar por exemplo “O Amigo Americano” (1977), de Wim Wenders, igualmente uma adaptação da famosa escritora norte-americana. De facto, “Burning” pode não ser uma obra-prima, mas arrasta o espectador para a vertigem e para a tensão de uma sedutora intriga com toques de sensualidade, que nos deixa continuar a pensar.

Dogman
“Dogman” é inspirado num homicídio cometido por um tratador de cães em Roma dos anos 80.

O realizador italiano Matteo Garrone (“Gomorra”), apresentou aqui em estreia mundial “Dogman”, também um brilhante drama de vingança. “Dogman” é uma espécie de ‘western urbano’ e um regresso de Garrone ao cinema em menor escala em língua italiana, depois de sua fantasia inglesa “O Conto dos Contos”. “Dogman” é inspirado num homicídio cometido por um tratador de cães durante o final dos anos 80, nos arredores de Roma.

Dogman
Garrone viu em Marcello Fonte, a humanidade para lidar com uma história tão violenta e sombria.

O caso, que envolveu histórias de tortura numa jaula de cães, que vai muito para além da violência do filme, foi considerado um dos mais horríveis da história criminal italiana do pós-guerra. Na verdade, o tema de “Dogman” é muito semelhante à versão naturalista da máfia napolitana de “Gomorra” (2008). Garrone começou a trabalhar este argumento há doze anos, pegou-o e largou-o várias vezes durante esse tempo, tentando adaptá-lo às mudanças na sua própria minha vida e carreira. Mas agora concretizou esse sonho com um filme que sensibilizou e entusiasmou a grande plateia da crítica.

Uma relação de intimidação com um violento ex-pugilista, chamado Simone (Edoardo Pesce).

Marcello Fonte é extraordinário na sua interpretação do pequeno e  terno tratador de cães, (chamado igualmente Marcello), que se envolve numa perigosa relação de amizade e intimidação com um violento ex-pugilista, viciado em cocaína, chamado Simone, interpretado por Edoardo Pesce (“Se Deus Quiser”), que mete medo a todo o bairro. Num esforço para reafirmar sua dignidade, Marcello vai cometer acto inesperado de vingança.

Dogman
Garrone acertou em cheio pois o filme centra-se na frágil e descompensada figura de Marcello.

Apesar de se inspirar no brutal homicídio cometido pelo tratador e cabeleireiro de cães, o argumento é uma reconstituição livre dos factos que ocorreram na altura. Garrone conheceu o ator italiano Marcello Fonte, pois parece ter visto nele a humanidade necessária para lidar com uma história tão violenta e sombria. E acertou em cheio pois o filme centra-se completamente na frágil e descompensada figura de Marcello.

José Vieira Mendes (em Cannes)

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