Border

71º Festival de Cannes (4): Fábulas Humanistas

Em “Border”, do dinamarquês de origem iraniana Ali Abbasi, uma solitária guarda da alfândega sueca constrói um complexo vínculo afectivo com um estranho viajante. “Yomedine”, do egípcio Abu Bakr Shawky é uma terna fábula e um road movie de um leproso à procura da família.

Depois de “Shelley”, apresentado na secção Panorama da Berlinale 2016, “Border”, a segunda longa-metragem de Ali Abbasi, apresentada no Un Certain Regard é uma estimulante e original combinação de conto de fadas, folclore/mitologia escandinava, investigação policial, romance trágico e drama existencial. “Border” é uma adaptação de um romance do escritor sueco John Ajvide Linqvist, que também participou no argumento e que entre outras obras é o autor de “Deixa-me Entrar”, livro que já foi duas vezes adaptado ao cinema, uma delas por Matt Reeves (2010), realizador de “Cloverfield”.

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“Border” é a história de um complexo relacionamento entre estas duas almas perdidas.

O início de “Border” dir-se-ia que é quase hipnótico e lento para o espectador, desenvolvendo-se depois numa narrativa complexa e ricamente construída, onde todas as peças aparentemente irregulares (e desajeitadas como a personagem principal) acabam por se encaixar umas nas outras. O objectivo é descobrir o verdadeiro ‘eu’ e a luta interna de uma feia e eficiente polícia de fronteira.

Toda a narrativa central assenta na extraordinária interpretação de Eva Melander — uma das actrizes mais conhecidas da Suécia, vimo-la entre outras participações, na série de televisão “A Ponte”. Tina (com Melander por detrás de uma máscara de latex), tem os olhos encobertos e umas feições ‘neandertais’, que lhe dão uma aparência de ter pertencido (aliás com o iremos ver) a um mundo perdido. Tina parece apesar do seu trabalho rotineiro bastante fechada na sua solidão. A polícia tem no entanto, um dom nato e um faro tão aguçado que faria inveja a Hannibal Lecter: na alfândega, Tina consegue farejar os culpados e quase pressentir a presença do mal. O realizador mostra-nos os talentos desta mulher, através de ‘close-ups’ com Tina em acção, de lábios trémulos e a contrair as narinas, quando passa alguém, e se aproxima algo que não é bom ou é ilegal.

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Tina (Eva Melander) na verdade parece ser mais animal que humana.

Tina na verdade parece ser mais animal que humana: vive numa casa na floresta, que partilha com Roland (Jorgen Thorsson), um namorado irresponsável, que não lhe liga nenhuma, e com os três cães doberman dele, que passam a vida a ladrar, quando ela passa. No entanto, Tina parece mais feliz quando passeia descalça no musgo e se banha no lago da floresta próxima. No entanto, tudo vai mudar quando na alfândega Tina se cruza com o estranho Vore (Eero Milonoff) e sente que está a olhar-se ao espelho. É como se fosse uma espécie de reencontro entre os dois últimos sobreviventes de uma velha tribo. E a partir daí o filme agarram-nos de tal maneira ao ponto de estarmos presos nos personagens, nessa busca de identidades e curiosas histórias de vida, que parecem estar ligadas uma à outra, por alguma coisa que não sabemos.

Impressionante em “Border” é a forma como Abbasi consegue manipular e organizar os vários elementos do drama e os truques de vários géneros cinematográficos — ele próprio se auto-intitula um Wagner do cinema — numa orquestra e numa ópera bem composta e afinada. A presumível auto-descoberta de Tina desenvolve-se paralelamente com a investigação de um caso de pedofilia, com os seus problemas com o pai e com uma crescente e explicável atracção por Vore, sem que nunca o espectador se perca nestas várias pistas.

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É notável a forma como Abbasi interpreta alguns dos elementos mais grotescos, góticos e fantásticos, combinando-os com um certo humor (negro é claro!) e com a estranha humanidade da situação de Tina, que faz lembrar aliás por vezes Wolverine.

Eva Melander é extraordinária na interpretação, sobretudo na forma como constrói as maneiras rudes, ásperas e animalescas de Tina, mas também como lhe introduz uma patética sensação de mágoa interior que revela decência e pureza, no que diz respeito a esse instinto inato e a esse aspecto que tem atrapalhado a vida da personagem. O actor finlandês Eero Milonoff — também obviamente mascarado — é um adequado e revoltado sedutor no papel do misterioso Vore. O complexo relacionamento entre estas duas almas perdidas é sem dúvida a grande alma de um filme de rara qualidade, ao ponto de o sentir-mos completamente diferente de qualquer outra coisa que temos visto aqui no Festival de Cannes e recentemente no cinema.

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O actor finlandês Eero Milonoff é um adequado sedutor no papel do misterioso Vore.

“Border” não é propriamente o tipo de filme que possa agradar à maioria dos espectadores, porque é obviamente estranho. No entanto, vai certamente atrair os cinéfilos pesados, mesmo os que não se revêem no género terror ou no fantástico; e sobretudo é um filme dirigido a todos os fanáticos dos géneros culto, mais alternativos ou até próximos do suspense.

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Yomeddine

Essa procura do eu e a ideia de uma fábula humanista acaba por ser comum a “Yomeddine”, uma primeira obra do egípcio Abu Bakr Shawky, apresentado na Competição Oficial. Abu Bakr Shawky estreou-se no longo formato com o documentário “The Colony” (2008), um filme sobre uma colónia de leprosos. Esta sua ficção “Yomeddine” protagonizada por um verdadeiro e deformado leproso (Rady Gamal) é uma aprendizagem do olhar para o espectador, onde a ideia de monstro de “Elephant Man”, surreal e absurdo é substituída por uma terna “Straight Story”, também à procura da família — numa referência aos filmes David Lynch. “Yomeddine” segue o périplo de um leprosos curado, mas deformado, que viaja acompanhado de um jovem órfão, numa velha carroça puxada por um burro, para procurar a família que o abandonou na colónia de leprosos quando era pequeno.

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Yomeddine

“Yomeddine” é um road-movie que procura libertar o personagem da sua estranheza, à medida que vai encontrando a sua identidade, o seu nome, a sua identidade, e o seu passado. A ideia é precisamente fazer com que o espectador entenda porque que é que a visão do rosto do ator no início, não é assim tão dolorosa. À medida que a história se vai desenvolvendo, a realidade é como coberta com um véu calmante de ficção. Nem toda a gente é bonita, mas toda a gente pode ser boa e gentil e o filme termina de uma forma paradoxal conciliado música e sorrisos, com se o mal estivesse ausente e onde todo sofrimento pode ser apagado por uma fábula humanista. Mas é um filme bonito e sincero. E apesar de tudo como em “Border”, este “Yomeddine não deixa de ser um feel good movie.

José Vieira Mendes (em Cannes)

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