Ana Bacalhau - by Frederico Martins

Ana Bacalhau à MHD: “É tão biográfico que é autobiográfico”

Conversámos com Ana Bacalhau, prestes ao subir ao palco do Tivoli, sobre o que o primeiro disco a solo da vocalista dos Deolinda revela da sua identidade e da identidade em geral. Agora só resta ir ouvi-la cantar. Em Nome Próprio, claro está.

Lançado apenas há alguns meses, Nome Próprio, de Ana Bacalhau, conta com a participação de inúmeros músicos, bem familiares ao público português. Duas das letras e uma das canções são da autoria da própria Ana, mas os restantes temas foram compostos – sempre em colóquio cerrado com a vocalista e tudo sujeito ao seu crivo – por Nuno Figueiredo, Jorge Cruz, Nuno Prata, Janeiro, Miguel Araújo, Márcia, Francisca Cortesão (Minta & The Brook Trout), Luís Peixoto, Capicua, Afonso Cruz, Carlos Guerreiro e Samuel Úria.

São várias as virtudes do álbum. A mais evidente será a orgânica e personalizada fusão de influências tão díspares. Nada a que os Deolinda já não nos tivessem habituado, mas seria sempre mais difícil conseguir a mesma coesão num disco onde a vocalista procurou acrescentar facetas que o trabalho anterior não revelava e a partir de uma equipa tão variada de colaboradores. A unidade resultante é da ordem da arte cinematográfica, onde o realizador é o garante da coerência do todo.

Não deixa de ser provocatório que um álbum tão comunitário se intitule Nome Próprio, e mais provocatório ainda que pretenda expressar a personalidade e o íntimo daquela que é o rosto do projecto. A maior das virtudes deste disco talvez seja, por isso, evidenciar o carácter paradoxal do “eu” na obra de arte enquanto lugar onde criador, intérprete e destinatário (leia-se, nós) se cruzam e encontram. Não só na arte, mas também na vida é difícil, se não mesmo impossível, traçar claramente a fronteira onde termina o eu e começa o nós. Do que uma das grandes e mais originais intérpretes da nossa praça está bem ciente, como poderão ver.

Ana Bacalhau, Nome Próprio (20 Outubro 2017)

Este disco é o teu primeiro a solo e chama-se “Nome Próprio” e as expectativas são, por isso, de um disco de cantautor. Mas, apesar de no single “Leve Como Uma Pena”, com música e letra de Jorge Cruz, ser dito que “Se o que eu fizer for meu/ pode não ser perfeito/ Mas há-de ser eu”, só três das letras e uma das músicas é que são propriamente da tua autoria. Não será este projecto contraditório?

Olha, sim e não. No sentido em que me vejo primeiramente como uma intérprete. Acho que é a minha casa ser uma tradutora das intenções de um autor, ser tradutora do sentido que está ali encerrado naquela canção. Procurar os caminhos possíveis e traduzi-los para quem ouve. É essa a minha função, onde acho que posso ser mais útil na música. Não me vejo como autora no sentido de fazer disso uma actividade a tempo inteiro e de cantar um disco só de coisas minhas. Nunca tive essa ambição. Escrevo, até porque a escrita foi a minha primeira forma de expressão artística, mesmo antes da música. Escrevia muito, criava os meus mundos. Ajudava-me a lidar com as dificuldades que a vida nos vai colocando. Hoje em dia, escrevo quando tenho qualquer coisa que está aqui entalada, e preciso de escrever aquilo. Não é coisa a que me obrigue. Portanto, não tenho uma produção de letras e de músicas muito grande, mais de letras até. Confesso que, para mim, é mais fácil escrever só a letra do que escrever letra e música, porque para fazer a música tenho de ir buscar a guitarra, preciso de estar em silêncio. Agora, com uma bebé pequenina, é para esquecer [risos]. É mais fácil estar ali sentada no sofá, ter assim uma ideia de uma frase ou de uma palavra ou de uma imagem e pôr-me a escrever a letra. Mesmo assim sou muito preguiçosa. Portanto, não tenho essa ambição de fazer um disco só de coisas minhas.

Parti para este disco como um disco em que, depois de dez anos a cantar os outros – o Outro, porque a Deolinda é uma personagem onde nós os quatro vivemos e que representamos, e que conta aquilo que vê através da sua janela, portanto os outros – queria contar-me a mim. Porque é que, apesar de ter duas letras e uma canção minhas neste disco (fazia sentido, se me ia contar a mim), chamei outros? Porque acho que a minha visão de mim se completa também no olhar do outro. Achei interessante ver como é que pessoas amigas me vêem (porque a maior parte deste lote de pessoas que escreveram para mim são amigos, só há um deles que não conheço pessoalmente, o Afonso Cruz, de cuja escrita e trabalho musical sou super fã). Quando lhes peço “canta a Ana que conheces”, o que é que me vai aparecer? É uma coisa muito distante da minha realidade? Ou é algo meu, no qual me vejo?

E, de facto, devo dizer que todos acertaram na mouche em diferentes coisas minhas. Por exemplo, o Samuel Úria escreveu, no “Só Querer Buscar”, sobre aquela coisa da ânsia, que é tão minha. O prazer para mim está na busca, no caminho, não está em chegar. Obviamente que chegar é muito bom e detenho-me ali, no lugar de felicidade, durante um bocadinho, mas, para mim, a maior felicidade é lançar-me outra vez à procura da próxima coisa, do próximo objectivo, da próxima jornada. E ele apanhou isso. Como o Jorge Cruz apanhou essa coisa do “há de ser eu”, bem ou mal, tem de ser eu, o quero ser eu, quero a minha expressão artística, quero mostrar-me, quero deixar um legado, por mais pequeno ou insignificante que seja. Todos queremos deixar uma sementinha nossa cá, não é? Geralmente é através dos filhos, mas, para quem trabalha com arte, também a arte é um filho seu e deixa cá as sementes. E quero, quando me for embora, que as sementes que deixo me possam representar. Portanto, senti as verdades deles como as minhas verdades, podia ter sido eu a escrever aquilo. Apesar de ser uma intérprete, que está a cantar coisas de outros, aquilo é a minha pele, é como uma segunda pele. É tão biográfico que é autobiográfico.

Ana Bacalhau (© Frederico Martins)

E que responderias a quem te dissesse que pedir a outros que escrevam letras sobre ti e canções para ti é um pouco egocêntrico?

É, exacto, umbiguista [risos]. E é um bocadinho, sim, de facto. Estive tão imersa, submersa na Deolinda que muita gente que ia ver o concerto e ouvia os discos tomava-me por aquela entidade, e eu tenho outras facetas. Obviamente que também sou aquela que, quando está em palco, sorri, anda de um lado para o outro, é uma falsa extrovertida, está ali na relação com o outro, à vontade, a cantar expansiva. Sou assim, não menti. Mas tenho outras partes minhas e essas já andavam aqui um bocado à luta, a querer sair cá para fora. Quando era miúda e comecei a cantar, ouvia a Nina Simone, a Janis Joplin, a Elis Regina, onde é tudo de coração nas mãos, tudo para fora, a cantar as suas coisas, as suas emoções. E eu queria fazer isso, portanto pedi para falarem sobre mim. Mas é um sobre mim que acho que não passa aquela fronteira do “tão, tão, tão individual” que é individualista e ninguém se reconhece naquilo. São sensações, sentimentos, emoções, experiências que estão aí, contadas no meu disco, nas quais acho que as pessoas se podem rever. Como a questão da busca, de ter muitas dificuldades mas que, ‘bora, haveremos de ultrapassar e chegar mais fortes ao nosso destino, ou a sensação de nos estarmos a descobrir a nós próprios. Acho que isso é comum às pessoas e é por aí que, se calhar, alguém que ouça o disco se pode rever na música.

É dito, na canção do Samuel Úria, precisamente, que és a voz de toda a gente quando cantas. Em que medida julgas que este teu disco fala pelos outros?

Se eu influenciar alguém, que seja no sentido de uma busca por quem essa pessoa realmente é. O meu desejo não é criar exércitos, batalhões de cópias de Anas Bacalhaus. Coitadinhas das pessoas! Não é isso. Porque os meus modelos, os meus – não gosto de chamar ídolos – as pessoas que ouvia e pretendi seguir de alguma forma também eram modelos de liberdade, de ser quem eram, sem medos, com coragem. Por exemplo, a Janis Joplin, uma das minhas maiores referências, era, nos anos 60 – quando as mulheres andavam todas emperiquitadas, com o seu cabelinho sem nada saído do lugar, maquilhadas e tudo – aquela explosão de ela própria. E era preciso muita coragem, porque sofreu bastante por isso, por se expor e não ter medo de ser quem era. Eu sigo muito esses modelos, portanto, se puder influenciar alguém no seu caminho, é para se encontrar a si próprio, fazer o seu caminho, à procura de si mesmo.

É o que eu estou a fazer neste disco, estou à procura de mim mesma, quem sou eu a solo. Porque sempre tive bandas: Lupanar, Tricotismo, Deolinda. São as minhas bandas. Nunca fui artista a solo, na verdade. Por isso, estava à procura de quem era sem uma banda, um objectivo comum, uma missão comum. Quem é a Ana? Musicalmente e artisticamente, quem sou? O que pretendo comunicar às pessoas é isso mesmo, que vão à procura de si, do seu caminho, de quem são. É preciso muita coragem, é verdade, e às vezes não recebemos as melhores críticas. As pessoas fazem uma imagem de nós e querem que nos possamos acomodar àquele molde que têm de nós. Se sairmos desse molde, às vezes, o primeiro choque não é muito agradável mas, se formos teimosos o suficiente e defendermos a nossa verdade, acho que depois a médio, longo prazo é benéfico para nós.

A propósito do que disseste sobre interpretação, na canção “Passo a Tratar-me por Tu”, falas de ser actriz. Como te permite a música pop exprimir esse lado de intérprete, de actriz? Estará também relacionado com teres tirado literatura, talvez.

É verdade. Com Deolinda, então, diziam muito que eu era a cantora cantactriz (acho que era assim que me chamavam). Eu nunca tive experiência como actriz. As canções dos Deolinda – que obviamente cantavam uma verdade onde eu me revia, ou não conseguiria cantá-las e dar-lhes verdade – eram histórias que não eram necessariamente a minha história e eu tinha de lhes dar essa vida, essa verdade, esse sangue. Ia em busca do que, do meu ADN, de mim, estava na canção e de como podia traduzir aquilo para as pessoas de uma forma que tornasse a canção viva, tal que as pessoas a pudessem receber e rever-se nela. Também já sou um bocadinho assim, sou um cromo, sou um bocado croma, sempre fui, os gestos, as expressões faciais, forma de estar. É assim tudo um bocadinho, não direi teatral, porque não é pensado nem estudado, mas para fora, não é para dentro, não é quieto, não é uma expressão quieta. Isso, depois, passa naturalmente. A linguagem corporal e a linguagem verbal, geralmente, se estiverem bem casadas, ajudam sempre a comunicar. Acho que essa minha fama de actriz vem daí, dos concertos e dessas duas linguagens que andam bem casadas.

Neste disco a solo, também continua a haver essa expressividade. Quando dizem “atriz”, fico um pouquinho aflita, no sentido em que não quero que as pessoas pensem que estou a fingir. Porque muitas vezes as personagens que os actores encarnam não têm nada a ver com eles e aqui, no meu trabalho, tem de haver sempre algo com o qual me identifique ou não vou conseguir dar verdade à canção. Tem de haver alguma coisa que seja um bocadinho minha e, neste disco, é mesmo tudo meu. Portanto, quando estou em palco, há uma expressão, uma plasticidade que faz parte de mim, continua a haver, mas deriva tudo aqui deste centro, é meu. Mas estou, obviamente, ciente dessa plasticidade. Em concerto, para além daquela coisa, que as pessoas conhecem de mim, de andar de um lado para o outro, a correr, no palco, as expressões, e mais não sei o quê, há outro lado que, se calhar, as pessoas não viram tanto, que é cantar de olhos fechados, de cabeça tombada, quieta, que foi como comecei a cantar. Eu comecei a cantar grunge! Isso também está no meu ADN!

Estávamos a falar da influência que ter estudado literatura e linguística. Eu sou muito sensível à palavra, também ao gesto e à linguagem corporal – à linguagem. Portanto, cada palavra que digo tem peso, significado e o meu corpo responde de acordo. Estou ciente de que tudo é criação de significado, desde cantar a letra, obviamente, até à melodia, à forma como entrego isso através da minha voz, das cambiantes da voz, dos gestos e da postura.

Na canção “Só Eu”, cuja letra é exactamente uma das que escreveste tu, dizes que “Só eu/ mais ninguém podia/ cantar esta cantiga”. Que cantiga é esta que só tu podes cantar?

Há coisas que só eu posso dizer porque só eu passei por elas e só a minha experiência poderia produzir aquele conjunto de palavras. Esse “Só Eu”, precisamente, “só eu, mais ninguém não” era uma expressão da minha avó e, portanto, só eu a conheço, só eu podia escrever essa cantiga, nenhum dos outros autores poderia, a não ser que tivessem uma avó que dissesse a mesma coisa. Sou sempre intérprete, mesmo quando estou a cantar coisas minhas, o ponto de partida é o mesmo: o respeito pelos sentidos que estão encriptados naquela canção, naquela letra, naquele poema. Mas é muito mais fácil para mim aqui, obviamente. Já sei o que aquela canção quer transmitir porque fui eu que a escrevi, é muito mais imediato.

Também, a pop tem esse lado, sim, plástico, porque temos de criar uma identidade não só musical mas também estética, que seja de fácil reconhecimento pelos outros. As pessoas têm de se relacionar connosco de forma pessoal, directa. E a matéria prima de um músico da pop – e não estou só a falar da pop, estou a falar da música popular – é ele próprio. Desde que a pop começou a ganhar forma e fama, nos anos 50 e 60, com os Beatles, vieram as coisas confessionais.

Muitos dos temas deste disco são uma afirmação insistente do teu eu, e tens dito em várias entrevistas que andas à procura de ti. Muitos julgam que toda a gente passa por uma crise de identidade quando chega aos quarenta. É o teu caso?

[Risos] Uma busca de identidade, de saber quem sou agora, também sabendo que amanhã posso não ser a mesma coisa. É interessante isto da vida porque estou numa fase em que já vivi o suficiente para perceber como determinadas coisas funcionam, mas ainda não perdi completamente a inocência (e não gostava de a perder). Mas acho que “ser” é estar sempre em mudança, porque a vida nos vai levando por caminhos que às vezes nem imaginamos, vamos evoluindo (ou involuindo!) de acordo com a maré mas, ao mesmo tempo, há uma essência, um centro que nunca muda. Por isso, posso dizer que sou a mesma miúda que era com quinze anos. Ainda me consigo identificar com essa miúda que estava no quarto a ouvir e a tocar guitarra e a imaginar-se perante milhares de pessoas a cantar. Consigo relacionar-me com essa pessoa, mas já sou muito diferente dela. A essência continua aqui, mas (uso muito esta imagem) as cobras, para crescerem, têm de trocar de pele. E já tem muita, muita pele, muita carcaça aqui.

Não sei se este disco será uma crise ou uma mudança do meu paradigma, em que estava habituada a estar em bandas e agora vou para solo, uma quebra de ciclo ou início de ciclo. Não sei se isto é só a aproximação dos quarenta, ou se se soma a isso também o ter sido mãe há pouco tempo, que faz com que cada vez me importe menos com o que o mundo acha de mim. A opinião dos outros – dos outros enquanto entidade abstracta, obviamente, aqueles cuja opinião prezo e valorizo é importante para mim – que a gente lê nas redes sociais, a conversa de café cada vez me molda menos. Ou melhor, não é “me molda”, porque às vezes é importante também vermos o que as pessoas que não nos conhecem dizem, pensam de nós. Mas antes eu sentia-me um bocadinho presa, prendia-me os movimentos, porque tinha medo do que iam achar, do que iam dizer. Cada vez menos isso me afecta, cada vez me sinto mais livre do que as pessoas possam pensar, para me mover livremente.

Umas das minhas canções preferidas do disco é precisamente aquela totalmente da tua autoria: “Deixo-me ir”. O que é a “maldita ferida/ sem dor definida” de que falas?

É uma coisa que tenho cá dentro. Não sei se já nasceu comigo ou se aconteceu por uma série de experiências que tive na minha vida, na infância, o chamado bullying. Não sei se foi aí ou se já nasci assim, mas é uma coisa que, com a escrita, começou a apaziguar um bocadinho. Só que, na escrita, estamos no nosso mundo, na nossa conchinha. E a música faz-nos sair da concha e entregar a nossa dor. As nossas feridas, entregamo-las a outros, assim de mão estendida, para que peguem nelas. E a coisa vai-se amaciando, porque vamos deitando cá para fora, vamos confessando (um confessionário, estar ali em palco). Portanto, sinto (então desde que comecei a cantar) que, quando canto, apaziguo esta ferida.

Esta dor não tem definição, não é uma dor nem aguda, nem grave. Uma dor aguda é quando nos cortamos num pedaço de papel, uma dor grave é quando batemos com uma parte do nosso corpo numa parede ou numa porta. Não tem essa altura definida, é uma coisa que está aqui e vai, como caruncho, andando, roendo, corroendo. O meu processo terapêutico fez-se através da música na minha adolescência e ainda se faz e é assim que me vou curando, mas isto é uma maldição. A ferida, curo-a em palco, só que, depois, saio do palco e a ferida volta outra vez: tic, tic, tic, o caruncho outra vez a comer. Volto ao palco, a coisa resolve e tudo outra vez. Mas é isso, essa dor que não sei se nasceu comigo ou se foi a vida que, em certas circunstâncias, me foi pondo cá dentro e por isso é que preciso da música. Não é só uma profissão, é mesmo uma forma de ser, de estar.

“A música faz-me viver o tempo presente”. Referias-te concretamente ao palco. Mas em que te ajuda a música a viver o teu quotidiano, por exemplo, a vida com a tua filha?

Para já ajuda-me a ser feliz e, portanto, sendo feliz sou melhor mãe. Uma coisa espectacular, engraçada. Antes, quando ela era mais pequenina, ajudava-me a adormece-la. Houve uma altura em que não comia lá muito bem. Quando ela não queria abrir a boca, eu começava a cantar e ela sorria – porque ouviu, na barriga, a mãe a cantar, era uma coisa que conhecia -, abria a boca e eu… [gesto de enfiar a colher]. Depois, olha, ainda agora, antes de vir aqui para a nossa entrevista, estava a ensaiar o “Deixo-me Ir”, só eu à guitarra – vou tocá-la agora num destes dias só eu à guitarra. Enquanto o pai estava a dar a comida, eu estava com a guitarrinha e a cantar e ela estava a ouvir. Depois o pai foi tocar baixo e tocámos, a miúda era o nosso público. Portanto essa relação ajuda imenso. Ajuda também agora que ela quer falar. Dizer-lhe as coisas cantadas ajuda a que comece a ir dizendo as sílabas e a ir formulando os sons dela. E é engraçado porque ela começa logo a bater o pé. Ou seja, eu relaciono-me com a minha filha muito através da música. Para já porque ela foi criada com música. Depois, porque ela gosta de música e ajuda-me a que faça certas coisas que preciso que faça. E depois porque me preenche e eu acho que uma mãe ou um pai, se se sentem preenchidos emocionalmente, profissionalmente, são melhores pais e estão mais preparados para poder pegar na mão dos seus filhos e ajudá-los a encaminharem-se para onde quiserem ir.

Tenho curiosidade em saber quem é a “Maria Jorge”.

É uma canção da Márcia.

De que universo veio, do teu ou do dela?

Veio do universo da Márcia, mas eu revejo-me naquela miúda, tal como a Márcia se revê, obviamente, porque veio de experiências que ela viveu. Aquela miúda que está ali é uma miúda pequenina, está na idade escolar e está ali à espera que alguém repare nela. É uma pessoa específica, essa de quem a Maria Jorge se queixa que não repara nela, que não a ajuda. Ela precisava da ajuda daquela pessoa, mas ela passa ao lado. E eu revejo-me absolutamente nessa miúda. Quando era miúda, sofri um bocadinho, sentia-me isolada, inadaptada, desadequada, e precisava de uma mão amiga. Muitas vezes queria uma mão amiga que não vinha, portanto reconheço-me tanto naquela Maria Jorge e no que aquela canção está a dizer que também é um bocadinho eu. Não é a Maria Jorge, é a Ana Sofia.

Ana Bacalhau (© Frederico Martins)

Que significa, no single “Leve como uma pena”, que o teu eu é a resposta à tua procura?

Os momentos em que fui mais feliz são os momentos em que senti que me estava a cumprir a mim própria. Nasci com certas aptidões, vocações e tenho de encontrar maneira, na minha vida, de cumprir essas vontades, aptidões, vocações. Portanto, quando me sinto perdida, ansiosa, quando digo “o que faço agora?”, a resposta está em mim, já está aqui, eu é que a tenho de ir buscar. Porque, às vezes, nós somos os piores inimigos de nós próprios. No meu caso, eu sou a pior inimiga de mim própria. Há pessoas que dizem coisas muito maldosas, já li coisas muito maldosas acerca de mim, mas ninguém consegue ser tão mauzinho para mim quanto eu para mim própria. E tenho de ter sempre esta bússola aqui dentro que, quando me afasto do meu caminho, do meu centro e da minha essência, tenho de ir buscar as respostas que procuro em mim, como acho que todos nós temos, para nos cumprirmos a nós próprios. Eu não sei se temos mais vidas ou se é só esta vida (não me admiraria nada se só tivéssemos esta vida) e acho que não haveria nada mais triste do que passar por ela e não cumprir os objectivos que estavam aqui já pré-programados.

Ao mesmo tempo, disseste numa entrevista, a propósito da Luz, que ela “Está sempre na minha presença, está sempre comigo, estou sempre a pensar nela e é a minha luz”. Pode-se dizer que a tua filha, mas não só ela, acredito, faz parte da tua identidade?

Claro. Todas as pessoas que passaram pela minha vida e me influenciaram estão, de certa forma, amalgamadas aqui dentro, fazem parte de mim, de quem sou e também as suas vozes estão dentro da minha voz. Até às vezes a forma como canto, as entoações que dou às palavras, tanto a cantar como a falar, vêm-me de memórias sonoras de pessoas que passaram pela minha vida. Ninguém se constrói sozinho, ninguém se faz sozinho ou, se se faz, há de ser uma pessoa muito pouco interessante. E nós somos todos um conjunto de relações de pessoas que nos vão formando e guiando, ajudando-nos a fazer o nosso caminho e, portanto, que bom que é ter conseguido ajudar a moldar, qual barro, um ser humano do princípio ao fim. É uma sensação incrível ter acompanhado alguém desde o princípio, o ligar-se daquela centelhazinha. E realmente há pessoas com as quais tenho uma ligação umbilical, a Luz é uma delas, literalmente. Sinto sempre a presença delas cá, ou na memória, porque já cá não estão, ou à distância de um telefonema (felizmente hoje em dia) ou de um WhatsApp. Estão sempre comigo e o “eu” de que estava a falar há pouco é também um bocadinho um “nós”. Mesmo as pessoas que não passaram pela nossa vida de forma positiva. Essas, as pessoas que me influenciaram negativamente também são super importantes. Eu não seria quem sou hoje se não tivesse as miúdas, principalmente uma delas…

A Sara?

Sim, isso mesmo. Se ela não tivesse existido na minha vida, eu seria uma pessoa completamente diferente.

Que lhe agradecerias?

Agradecer não é bem o caso, porque acho que não se pode agradecer a alguém que faça mal a outra pessoa. Mas eu diria que, para mim, para a minha vida, a presença dela foi importante porque me ajudou a fazer uma data de coisas, a ser quem sou hoje e eu estou relativamente contente com quem sou hoje. Há sempre coisas a melhorar, sempre coisas a fazer, mas estou relativamente contente com o que alcancei na minha vida. E o que ela fez foi, de certa forma, gasolina ou diesel ou electricidade para eu me mover, para fazer as coisas acontecer. Portanto, as pessoas que têm um impacto negativo na nossa vida são também muito importantes na construção de quem somos.

Que aprendeste com este projecto?

Para já aprendi que consegui fazer aquilo a que me propunha. O meu mal, às vezes, é ter muitas ideias, depois não as concretizo, sinto-me assoberbada. E consegui concretizar aquilo que tinha na minha cabeça. Atar muitas pontas soltas, muitas influências tão diversas na minha vida, e traduzi-las de uma forma que acho que é minimamente coerente, minimamente harmoniosa na sua diversidade. É um disco que tem influências diversas que se sentem, mas acho que é coerente, percebe-se que vem do mesmo sítio, do mesmo ponto de partida. Portanto, sinto que consegui, sinto-me muito motivada para, cheia de ideias e de energia, ver que próximos capítulos estão aí.

Sinto que ainda estou em construção de mim mesma como artista, porque eu, na Deolinda, tinha aquela plasticidade, mas eu, a Ana Bacalhau, ainda estou a construir uma imagem, uma coisa plástica e estética, ainda estou a chegar a isso, ainda não cheguei completamente, ainda estou a meio caminho. Mas, com naturalidade, o palco, as canções, eu própria… Não me ponho muito com essas coisas “ai, tem de…” Não, tem tudo de chegar de forma natural. Quando chegar hei de perceber que lá estou, mas ainda não estou lá. Falta-me esse caminho, e falta-me aprender muitas coisas ainda, de certeza. Não sei quais são os ensinamentos que a vida me guarda, posso imaginar que me faltam algumas coisas. Não sei quando vão chegar, nem sei sobre que forma vão chegar, mas espero ansiosamente essas lições que a vida me trará porque quero passa-las para música.

Esperemos que esta pequena amostra, gravada na Antena 3, do que é a Ana Bacalhau quando canta em nome próprio vos ponha a todos a correr para as bilheteiras. Eis as datas de 2018 da digressão Em Nome Próprio:

26 Janeiro | Lisboa, Teatri Tivoli BBVA
31 Janeiro | Porto, Casa da Música
8 Fevereiro | Leiria, Teatro José Lúcio da Silva
14 Fevereiro | Póvoa de Varzim, Casino da Póvoa
24 Março | Estarreja, Cineteatro de Estarreja
8 Abril | Figueira da Foz, CAE Figueira
21 Abril | Portalegre, CAE Portalegre
18 Maio | Vila Real, Teatro de Vila Real
26 Maio | Guarda, Teatro Municipal da Guarda
22 Junho | Braga, Theatro Circo
13 Outubro | Abergaria-a-velha, Cineteatro Alba

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