ARTE Kino | Godless, em análise

Bezbog”, ou “Godless”, de Ralitza Petrova é um retrato da Bulgária moderna enquanto uma terra onde a esperança morreu e Deus nunca existiu. Este filme está disponível gratuitamente no site ARTE Kino, até dia 17 de dezembro.

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Como é bem-sabido por qualquer pessoa que siga festivais de cinema e seus prémios com alguma atenção, as honras máximas dadas pelos júris normalmente são o resultado de uma série de concessões, raramente refletindo uma obra pela qual todos os membros votantes sentem grande paixão. Ainda este ano, durante a sessão de imprensa que se seguiu à cerimónia de encerramento do Festival de Cannes, muitos membros do júri admitiram que o vencedor da Palme D’Or, “O Quadrado”, não tinha sido o seu título favorito da seleção. Will Smith, por exemplo, preferia “Jupiter’s Moon” e Pedro Almodóvar, o presidente do júri, estava claramente pedido de amores por “120 batimentos por minuto”. Por tudo isso, é surpreendente examinar o palmarés do Festival de Locarno do ano passado, e conferir que, segundo os jurados, o grande vencedor do Leopardo de Ouro foi a escolha unânime de todos. “Bezbog”, mais conhecido pelo seu título anglófono “Godless”, foi essa rara obra.

Este filme búlgaro é a primeira longa-metragem da realizadora Ralitza Petrova e consiste numa cáustica crítica a uma contemporaneidade pós-soviética afogada em corrupção e desumanidade. Gana é a protagonista desta história miserabilista, sendo uma enfermeira que passa os dias a cuidar de idosos, muitos deles senis. Graças a esse acesso a pessoas fragilizadas e negligenciadas pela sociedade, Gana também se envolveu num esquema de tráfico de identidades, roubando os documentos dos idosos a seu cuidado e vendendo-os no mercado negro com a ajuda do seu namorado, um polícia corrupto. Ela não parece obter qualquer contentamento nos seus atos criminosos, movendo-se pelo mundo como que anestesiada, algo apenas intensificado pela sua dependência por medicamentos obtidos ilegalmente.

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A dar vida a esta deprimente figura central está Irena Ivanova, uma atriz búlgara que se estreia aqui no grande ecrã e que já conquistou uma série de galardões em festivais inclusive o prémio de Melhor Atriz em Locarno. Tais honras são amplamente justificadas pela miraculosa prestação de Ivanova, que constrói Gana através de um exercício em estonteante inexpressão emparelhada por uma fisicalidade que transpira monumental fadiga. Ela tem a postura de alguém que vive esmagado pela monstruosidade do mundo em que habita, cuja face desenha o cansaço do conformismo à amoralidade criminal que tudo domina nesta Bulgária infernal. Por vezes, “Godless” parece consistir num estudo de observação, estando a câmara como que inebriada com a possibilidade de capturar o mero ato de Gana existir.

A depressão que asfixia esta mulher é algo quase palpável, tanto em termos performativos como formalistas. Em prolongadas cenas, onde a única ação inteligível é Gana a olhar em seu redor, Ivanova consegue telegrafar ao espetador algo extremamente raro. Referimo-nos à tentativa de se sentir algo quando estamos consumidos pela apatia, o esforço desgastante de vislumbrar os horrores do mundo ou as suas maravilhas e assim tentar desenterrar algum tipo de emoção de dentro de um indescritível vazio interior. Toda a construção formal do filme reforça esse mesmo tormento, com paisagens gélidas cheias de edifícios abandonados, composições claustrofóbicas de faces envelhecidas, tableaux urbanos consumidos pela arquitetura soviética e uma utilização recorrente de minúsculas distâncias focais que fazem faces desvanecerem no éter como fantasmas vaporosos.

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Tais escolhas formais constroem uma tonalidade bastante coerente para “Godless”, mas também posicionam o filme no panorama já bastante estandardizado do cinema miserabilista da Europa de Leste, onde cineastas ultrajados com o estado das suas nações filmam obras diagnósticas de uma sociedade pós-ditatorial em estado necrótico. Desde a estética realista social até aos seus momentos de choque mais repugnantes, “Godless” acaba por se manifestar como uma obra um tanto ou quanto reacionária, apesar de, verdade seja dita, o filme testar os limites do aceitável com admirável ferocidade. Momentos como o vislumbre de uma orgia despida de erotismo, uma sessão de sexo oral na presença de uma criança ou as reminiscências de uma idosa com saudades dos tempos da ocupação nazi chegam a tais extremos de miséria dramatizada que o espetador quase tem vontade de rir desconfortavelmente. O milagre de “Godless” está no modo como os seus criadores vão tão longe nesta direção deprimente, que o filme transcende o ridículo e chega a um ponto profundamente devastador. No final, o espetador sente-se quase fisicamente esgotado pelos horrores em cena.

No meio de toda esta miséria, apresentada sem qualquer sugestão de nuance ou modulação tonal, é fácil entender como é que alguém como Gana se torna no zombie apático que encontramos no início do filme. Por isso mesmo, quando a protagonista encontra algo que lhe dá algum prazer e a faz ver alguma luz na escuridão da vida, o espetador vibra como se tivesse sido eletrizado. Esse raio de esperança vem na forma de música coral, uma parte do rito religioso que, no entanto, é apresentado aqui como algo poderoso pela sua beleza e não pela sua faceta litúrgica. Afinal, a ideia de que existe algo superior à nossa pequenez humana, material e temporária não é algo intrinsecamente religioso. É precisamente essa sugestão de algo para além da miséria, algo intangível como a música, que serve de balsamo calmante à constante dor do mundo em “Godless”.

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Tal interlúdio musical não dura e a beleza por si desabrochado é tão efémera como a vida humana, deixando para trás um mundo negro e sem esperança. Depois de se ter saboreado a possibilidade de algo mais, o horror do dia-a-dia torna-se ainda mais insuportável, mesmo para alguém tão resignadamente apático como Gana. No final, o filme regressa às mesmas imagens que serviram de abertura descontextualizada. Aí, dois homens descem a montanha com que o título búlgaro partilha o nome, um monumento geográfico com uma história de imenso sofrimento e chacina e batizado com uma palavra que também significa negligência. Neste cenário natural negligenciado por qualquer força justiceira ou ordem moral, uma pessoa é engolida pelas fendas obscuras da superfície rochosa e a câmara observa o seu companheiro, surdo para com os gritos desesperados do homem ferido. Um chama por auxílio, o outro procura, mas neste mundo cruel, nenhum consegue o que quer. Apenas sobra a impavidez gélida da montanha feita túmulo. Um final desesperante, para um filme capaz de apagar qualquer chama de alegria no coração do espetador.

 

Godless, em análise
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Movie title: Bezbog

Date published: 3 de December de 2017

Director(s): Ralitza Petrova

Actor(s): Irena Ivanova, Ventzislav Konstantinov, Ivan Nalbantov, Dimitar Petkov, Alexandr Triffonov

Genre: Drama, 2016, 99 min

  • Claudio Alves - 67
67

CONCLUSÃO

“Godless” é uma acutilante destilação de miséria dada forma de filme. A crítica social em si presente não é inédita, mas isso não faz dos seus esforços algo menos lacerante ou urgente.

O MELHOR: A prestação de Irena Ivanova.

O PIOR: A falta de modulação tonal é algo corajoso pela parte da realizadora de “Godless”, mas também trespassa alguma imaturidade ideológica. Certamente, esta escolha faz do filme uma experiência quase insuportável para o cinéfilo casual.

CA

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