As minhas fitas – Crónica de uma cinéfila

 

Este mês procurei a fuga ao cinema formatado que tanto consumimos para me embrulhar no je ne sais quoi francês.
Há uns anos encontrava-me ainda no útero da visão do conhecido, do afamado e do explorado. As telas que me eram dadas a conhecer e que, por sua vez, eu própria escolhia, restringiam-se, de certa forma, a uma ignóbil agnosia que me cobria os olhos.
Um dia, apresentaram-me o cinema francês de uma forma que jamais esquecerei: com a oferta de um DVD que não continha apenas um círculo platinado com um buraco no centro mas sim uma coletânea completa de sentimentos. Foi com a Amélie Poulain que me apaixonei pelo cinema abstrato, incomum e, umas quantas vezes, oculto.

01 O FABULOSO DESTINO DE AMELIE POULAIN

Le fabuleux destin d’Amélie Poulain

“O Fabuloso Destino de Amélie” (Título original: “Le fabuleux destin d’Amélie Poulain”), de 2001, centraliza-se numa personagem – a Amélie – que possui tudo aquilo que me envolve – e, por vezes, devolve – a esperança no ser humano. Sendo um filme diferente, pode ser amado ou odiado, mas penso que dificilmente será sentido como indiferente. A Amélie entrega-nos a beleza das suas falhas, a inocência dos seus atos, o seu castelo de incertezas, a pureza dos seus gestos, a atenção ao detalhe. Todas estas componentes e mais algumas são extraordinariamente aglomeradas num filme que aviva a real essência de nós mesmos. Aparentemente elementar, não há nada de mais complexo na simplicidade das cenas deste filme que, com o bónus da fabulosa banda sonora que grita o nome Yann Tiersen, me fazem aplaudir um trabalho que permanecerá sublinhado.

Depois desta primeira verdadeira experiência de quase-êxtase, seguiu-se um outro filme – também ele oferecido em DVD – chamado “Amor ou Consequência” (Título original: “Jeux d’enfants”) e do ano de 2003. Sophie e Julien são criadores e criação de um jogo que, desde as suas infâncias, é utilizado como forma de viver na relação. À medida que o tempo passa, as regras tornam-se cada vez mais rigorosas e ousadas e ambos envolvem-se numa teia da qual não conseguem fugir. Tudo isto projeta-se num “castelo de sonhos” que foi traçado por ambos e que vai ruindo com as mudanças que cada um sofre. Porém, por detrás do palco, no fundo do cenário, está patenteado o amor que uniu duas pessoas para a eternidade. “Cap ou pas cap?”
Passando para o presente ano, não há dúvida que as criticas ao recente filme “A Vida de Adèle” (Título original: “La vie d’Adèle”) impeliram-me a visionar esta película no cinema.

La vie d’Adèle

La vie d’Adèle

Com 179 minutos e um ritmo lento, não dei pelo bater dos ponteiros do relógio. O amor que surge entre duas raparigas – temática bastante banalizada – foi explorado de uma forma íntima, ousada e intensa. Não parecem existir atrizes ou atores que colocam máscaras perante uma câmara. As cenas são representadas de um modo instintivo e quase nato, com recorrentes captações, em grande plano, de expressões tão ténues que, de outra forma, não seriam reconhecidas. O foco no olhar, na pele, nos sentidos é, sem dúvida, diferenciador. Para mim, mais do que a evocação ao amor entre duas pessoas do mesmo género, relevam-se os medos, as lutas internas e externas que nos amarram o ego e que, por vezes, nos conduzem como marionetas. Afinal, será a sociedade a maior ditadora das nossas ações ou seremos nós próprios os principais responsáveis pelo julgamento do nosso sentir e do nosso agir?

É um facto que, apesar das pesadas forças externas, detemos a chave que nos permite escolher a forma de estar com os outros no mundo. As relações que estabelecemos são muitas vezes desfeitas por nadas que ganham dimensões absolutamente estonteantes e absurdas. A pureza da entrega é algo que escasseia, pela ignorância, pelo egoísmo ou pela chamada sociedade impiedosa. Foi também num filme francês que choquei com a mais doce forma de amar. Cambaleando para a sala de cinema, preparava o meu coração para as lágrimas que esperaria jorrar sobre a minha camisa branca. Sendo uma história real e tão profunda, aguardaria por um drama – puro na sua essência – que retrataria a amizade entre um milionário tetraplégico e um jovem. Saí de lá, ainda oscilando sobre o meu corpo, com uma nova forma de rir estampada nos lábios. “Amigos Improváveis” (Título original: “Intouchables”), de 2011, ofereceu-me uma deliciosa forma de sentir a dor.

Intouchables

Intouchables

Um pouco na mesma linha de entrega ao próximo, mas recaindo numa vertente mais circunspecta e dramática, realço “O Escafandro e a Borboleta” (Título original: “Le scaphandre et le papillon”), de 2007. Inicialmente reticente, adiei a visualização deste filme por diversas vezes. Só este mês é que decidi entregar-me. Com coragem, acedi ao meu Videoclube e deixei-me cobrir por esta maravilhosa obra-prima que me entorpeceu o corpo, arrebatou a alma e asfixiou os sentidos com a cruel e exasperante verdade que foi relatada diante dos meus olhos, como uma melodia sem fim. Uma melodia seca e pútrida que me envolveu a garganta com as suas gigantes mãos. Roubou-me a fala. Tremia sem me mexer com o transtornante sofrimento e com a capacidade que alguns têm para torná-lo suportável.
E, assim, por entre os inúmeros clássicos franceses e os belíssimos filmes contemporâneos que têm relevado, cada vez mais, o cinema francês, termino aqui uma pequena amostra cinematográfica desta cultura.

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