Carneiros, em análise

Em Carneiros, uma comunidade islandesa que vive num vale isolado do resto do mundo, vê o seu modo de vida ameaçado quando uma doença infeciosa assola os seus animais.

carneiros

Carneiros, o mais recente filme do cineasta islandês Grímur Hákonarson, tem uma das melhores sequências de abertura a agraciar os cinemas portugueses em 2016. Isso não é nenhum tipo de elogio traiçoeiro, pois o resto do filme não é um desapontamento, mas a sua abertura é uma esplêndida mostra de economia e eficiência cinematográfica. Numa série de severos planos pintados em cores glaciais, observamos o que parece ser uma competição entre criadores de carneiros, para ver quem tem o melhor. Isto ocorre naquele que deve ser o único bar em toda a região, servindo mais como um centro comunitário, e assim se estabelece em alguns minutos, cheios de imagética que tende a ser divertidamente absurda, uma inteira comunidade e o seu modo de viver separados do resto do mundo num vale frio da Islândia.

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Outro importante detalhe que esses momentos iniciais estabelecem de modo modesto mas magistral são as duas relações centrais que vão propulsionar o enredo do filme. Uma dessas relações é a já mencionada ligação entre a população local e as ovelhas que lhes dão subsistência e razão para viver. Com as suas barbas farfalhudas e largas camisolas de lã, os homens da terra quase parecem ser uma extensão dos seus rebanhos, como se algo mais forte, quase cósmico, os esteja a unir. A segunda relação é menos abstrata e consiste no antagonismo que se tem vindo a desenvolver há décadas entre um par de irmãos de meia-idade, Gummi e Kuddi. Eles são vizinhos e ambos os seus rebanhos são descendentes da mesma linhagem ancestral, mas os irmãos não se falam, apenas trocando olhares carrancudos ou algumas mensagens escritas para sublinharem o ódio mútuo. Na verdade, nunca sabemos a razão por detrás deste conflito, mas vemos as suas consequências e o modo como o desespero pode levar os mais teimosos dos homens a reconsiderarem as suas escolhas e rancores.

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Depois de Kiddi ganhar o segundo lugar na competição que abre o filme, Gummi faz uma visita secreta à propriedade do irmão na esperança de encontrar algo que o desqualifique da honra. No entanto, o que ele descobre é um carneiro infetado com paraplexia enzoótica, uma doença degenerativa que afeta o gado ovino e é altamente contagiosa. A consequência final disso é que todas as ovelhas da região têm de ser mortos para impedir que a doença se espalhe e para poupar os animais do sofrimento horrendo causado pela maladia nervosa. Face à chacina da sua raison d’être, a comunidade, com especial destaque para os irmãos, tem de enfrentar a dor de perder tudo o que os fazia viver, assim como a incontornável revelação de que o seu modo de via é obsoleto e tão frágil como um castelo de cartas, podendo ser destruído com a mínima crueldade do mundo natural.

Esta tragédia e sentido de obsolescência são exacerbados pelos intrusos que chegam à região, oficiais do governo que vêm assegurar a destruição de todos os animais. Com as suas roupas plásticas e sua fria burocracia, estas pessoas são quase alienígenas oriundos de outro mundo para os pobres agricultores. Durante todo o filme, a fotografia de Sturla Brandth Grøvlen tem vindo a exacerbar a majestosa grandeza das paisagens naturais, mas com estes desenvolvimentos, mais do que uma celebração de algo maior que o drama humano, esta decisão estética torna-se num elemento de solene desolação. Neste vale, onde as pessoas vivem hermeticamente separados do resto da humanidade, todos estão sozinhos, como pontos perdidos na paisagem e com apenas os seus carneiros como companhia e fonte de vitalidade.

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É nesta conjuntura de desastre natural e estudada severidade que aparece a mais esmagadora sequência de todo o filme. A abertura de Carneiros pode ser um espetáculo de economia narrativa e fílmica, mas a verdadeira glória do filme chega quando observamos um dos irmãos a passar pelo processo doloroso de matar os seus animais. Através da câmara de Hákonarson, os movimentos pesados do agricultor tornam-se numa espécie de ritual fúnebre onde o ato de terminar a vida das ovelhas é algo que devém tanto de um sentido de obrigação legal como de um enorme e quase religioso respeito que ele tem pelos seus animais. No final, quando a figura humana é exposta, sozinha e desolada no meio dos cadáveres animais, o modo como o plano foi esvaziado de vida e movimento é algo de cortar a respiração.

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Mas o crédito não pertence só ao realizador e diretor de fotografia, sendo que para essa sequência ter a sua intensidade dramática e, na verdade, para toda a componente humana funcionar de modo coerente e emocional, Carneiros é dependente do seu formidável elenco. Como os dois irmãos no centro da narrativa, Sigurður Sigurjónsson e Theodór Júlíusson são soberbos expressando uma inteira história de vida através de uma expressividade mínima. É apenas graças aos dois protagonistas que o final tem alguma esperança de parecer uma orgânica extensão da restante história, e é no seu trabalho que o filme mostra as suas verdadeiras cores. A abertura genial pode sugerir uma comédia negra ao estilo típico do Norte da Europa – cheio de humor seco e piadas que mais parecem elogios fúnebres – mas, no seu âmago, Carneiros é uma tragédia humana sobre a redenção de dois irmãos à impiedosa arbitrariedade que rege as suas vidas.

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O MELHOR: As duas sequências referidas na análise, cuja existência justificaria qualquer projeto de cinema.

O PIOR: O final que, apesar dos esforços do elenco, é extremamente forçado e deixa a audiência com um gosto amargo quando sai do filme. Para além disso, apenas há que apontar o modo como, apesar da sua execução virtuosa, este é um filme com muito pouco para oferecer para quem já tenha assistido a alguma produção islandesa nos últimos anos, seguindo a mesma linha estilística e temas que muitas outras obras semelhantes.


 

Título Original: Hrútar
Realizador:  Grímur Hákonarson
Elenco: Sigurður Sigurjónsson, Theodór Júlíusson, Charlotte Bøving,  Jón Benónýsson
Leopardo Filmes | Drama | 2015 | 93 min

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