Com Amor, Simon

Com Amor, Simon, em análise

“Com Amor, Simon” é uma comédia romântica de adolescentes produzida por um dos grandes estúdios de Hollywood que tem a coragem de colocar um jovem rapaz gay no papel de seu protagonista. Trata-se do primeiro filme mainstream assim. É infeliz pensar que tivemos de esperar até 2018 para termos isto, mas enfim, estamos no mês do Orgulho e mais vale celebrar.

“Com Amor, Simon” começa com uma narração em voz-off. Segundo Simon, ele, tal como nós, tem uma vida perfeitamente normal. Nada podia ser mais falso. Simon é um rapaz adolescente, branco, atraente, que vive nos subúrbios de Atlanta numa casa saída de um catálogo. Os seus pais parecem modelos, a irmã é uma experimentalista culinária e a unidade familiar é claramente afluente. Simon tem o seu próprio carro com o qual, todos os dias, dá boleia aos melhores amigos, com uma paragem obrigatória num pseudo Starbucks para comprar frappuccinos matinais. A escola, apesar de estar no meio do estado sulista da Georgia, tem uma população estudantil etnicamente diversa onde não existe racismo.

Em suma, a vida de Simon não é perfeitamente normal. A vida de Simon é perfeita. Não que a personagem ou os argumentistas de “Com Amor, Simon” pareçam estar cientes das montanhas de privilégio que a narração inicial delineia. Muito pelo contrário, há uma insistência em como este ideal utópico é a mais mundana das realidades, sendo que a única anormalidade na vida de Simon é, segundo as suas palavras, ele ser gay. De facto, “Com Amor, Simon” é o primeiro filme mainstream a propor um adolescente homossexual como sua figura central, um marco histórico que não altera de modo algum a infeliz articulação verbal de Simon.

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A vida de Simon não é perfeitamente normal. A vida de Simon é perfeita.

Ao definir a sua sexualidade como a única variante na perfeição da sua vida, Simon propõe essa parte da identidade como um problema. No meio da sua angústia alimentada pela imaturidade de um adolescente privilegiado, a sexualidade de Simon constitui um problema para ele, sejamos honestos. O problema está no modo como, ao longo da sua narrativa, “Com Amor, Simon” parece validar essa perspetiva, mesmo que acidentalmente. Note-se a cena mais visualmente animada do filme, quando Simon sonha com a possibilidade de se reinventar como alguém a viver fora do armário na faculdade. Aí, ele dança ao som de Whitney Huston com bailarinos vestidos com todas as cores da bandeira do Orgulho LGBTQ+. É um momento jubilante, até que Simon se vira para a câmara e conclui que vai viver abertamente como um homem gay na faculdade, mas não assim tão gay.

Para muitos, esse comentário pode ser uma piada inócua, mas não deixa também de ser uma bofetada na cara de quem estava a deliciar-se e talvez até a identificar-se com os sonhos extravagantes de Simon. Por que razão é que ele não pode ser assim tão gay? Por que razão é que o protagonista deste filme tem de ser um rapaz desafetado e que, para todos os efeitos, ilustra uma imagem perfeitamente convencional de masculinidade adolescente? A resposta é fácil. Afinal, não é como se os clássicos de John Hughes alguma vez se focassem em jovens com os quais o público geral tivesse algum problema em simpatizar. Há que se evitar ao máximo desafiar as perceções da audiência ou colocá-la numa posição de desconforto. Assim é Hollywood.

Tudo isso é verdade, mas também é certo que “Com Amor, Simon” nunca se propõe como nenhum gesto panfletário ou político. Além disso, depois de décadas com tantas comédias românticas passadas em escolas secundárias, com as quais jovens por todo o mundo puderam mirar idealizações fantasiosas das suas mesmas vidas e provações amorosas, já era altura de essa oportunidade também ser estendida a jovens queer. O impacto do filme é inegável, tendo em conta todos os relatos de jovens inspirados a assumir-se depois de o verem. Mesmo descontando isso, até existe algum prazer a ser tido na repetição de fórmulas que são clássicas exatamente pela sua eficiência dramática.

A história foca-se, como já estabelecemos, em Simon, que ainda não está assumido. Uma noite, ele descobre que existe um rapaz na sua escola que, como ele, é gay e não está ainda fora do armário. Estabelecendo uma correspondência virtual anónima com esse misterioso rapaz que se identifica como “Blue”, Simon vai-se apaixonando pela primeira vez, ao mesmo tempo que tem de lidar com a pressão de manter os seus segredos escondidos. O grande problema é que Martin, um colega do clube de teatro, descobriu os e-mails trocados entre Simon e Blue e usa isso para o chantagear. Se Simon quer manter o anonimato e permanecer dentro do armário, então terá de ajudar Martin a conquistar uma das suas amigas. Como seria de esperar, isto leva a muitas mentiras, manipulações, zangas entre amigos e um muito desejado final feliz completo com trocas de beijos numa roda gigante.

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Se o filme se vier a tornar um clássico do seu género, é graças ao seu extraordinário elenco.

Esta narrativa, adaptada de um livro de Becky Albertalli, não é muito inovadora ou necessariamente brilhante. A sua maior idiossincrasia é o facto de ter o gosto de algo intrinsecamente queer devido à sua dependência em teias de segredos e comunicação anónima online. Por outras palavras, é difícil imaginar um romance heterossexual desenrolar-se do mesmo exato modo. Contudo, não é a genialidade inovativa do texto ou a execução formal do realizador Greg Berlanti que realmente ameaça tornar o filme num clássico para a presente geração de adolescentes. A chave para o sucesso de “Com Amor, Simon” é o seu elenco. Os atores pegam na história e elevam-na, chegando mesmo a dar peso dramático e leveza humorística a passagens de texto francamente isentas de tais qualidades.

Jennifer Garner e Josh Duhamel, como os pais de Simon, são bons exemplos dessa excelência. É graças a eles que as duas cenas em que cada pai assegura o filho acabam por constituir os grandes momentos de catarse do filme. O diálogo entre Simon e a mãe, que Garner insistiu em desenvolver mais do que estava no guião, é mesmo uma dessas cenas cinematográficas capazes de trazer algumas lágrimas aos olhos de quase todos os espectadores. Como Simon e Martin respetivamente, Nick Robinson e Logan Miller conseguem dar vida à imaturidade das suas personagens sem condescendência ou glorificações indevidas, ancorando o conflito do filme com humanidade imperfeita. Por seu lado, Katherine Langford, Alexandra Shipp e Keiynan Lonsdale são simples explosões de carisma e muito charme.

Pondo momentaneamente de parte questões de ideologia sociopolítica, será que “Com Amor, Simon” é então uma boa comédia romântica de adolescentes? Sim, mas não é genial. Para além do elenco, a grande mais-valia do projeto é a sua esmagadora sinceridade, capaz de aniquilar qualquer sombra de ironia e sugerindo um cinema escapista que raramente recebe boas críticas, mas faz as delícias do público. Este é o conto de como um rapaz tenta sair do armário e continuar a ser, aos seus olhos e de outros, alguém que se sente confortável consigo mesmo, e, para muitos, isso é inspirador. Quando outros filmes queer defendem uma celebração da diferença, glorificando a posição de quem é marginalizado, “Com Amor, Simon” oferece outra realidade. Uma realidade em que o mundo idílico da comédia romântica tem espaço na sua normalidade suburbana para um rapaz que deseja e ama outros rapazes. Se ainda fosse vivo, não é difícil imaginar John Hughes a abençoar o filme como fruto do seu legado.

 

Com Amor, Simon, em análise
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Movie title: Love, Simon

Date published: 24 de June de 2018

Director(s): Greg Berlanti

Actor(s): Nick Robinson, Jennifer Garner, Josh Duhamel, Katherine Langford, Alexandra Shipp, Logan Miller, Keiynan Lonsdale, Jorge Lendeborg Jr., Talitha Eliana Bateman, Tony Hale, Natasha Rothwell, Miles Heizer, Joey Pollari, Clark Moore, Drew Starkey

Genre: Comédia, Drama, Romance, 2018, 110 min

  • Cláudio Alves - 70
  • Inês Nogueira - 59
  • Maria João Bilro - 75
  • Catarina d'Oliveira - 75
  • Daniel Rodrigues - 55
  • Filipa Machado - 70
  • Marta Kong Nunes - 55
66

CONCLUSÃO

O cinema queer é rico em tragédias e estudos de personagem sôfregos. O que é raro são obras como “Com Amor, Simon”, um filme mainstream, perfeitamente convencional e portador de uma visão risonha e idealizada do mundo. No final, não obstante algumas reservas, é difícil resistir aos charmes desta comédia romântica e do seu carismático elenco.

O MELHOR: O elenco e seus esforços heroicos para fazer deste filme um clássico do cinema adolescente em par com as obras de John Hughes.

O PIOR: Para além do comentário depois do sonho universitário, o maior problema de “Com Amor, Simon” é o próprio Simon. Nick Robinson injeta muito peso dramático na personagem, mas isso não altera quão aborrecido e irritante este rapaz consegue ser. Simon é um menino privilegiado que, face à primeira grande provação da sua vida, faz uma série de escolhas estúpidas que resultam no engano e sofrimento dos seus amigos. É certo que o filme não desculpabiliza as suas ações, mas também não nos dá grandes razões para estarmos investidos no sucesso dele. No final, é mais fácil torcer pela felicidade de Blue do que do putativo protagonista. De certo modo, isto continua a comparação entre o filme e o legado de John Hughes. Afinal, Ferris Bueller é a pior personagem de “O Rei dos Gazeteiros”.

CA

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