Cuidar dos Vivos, em análise

Cuidar dos Vivos, a terceira longa-metragem da cineasta costa-marfinense Katell Quillévéré, é uma avassaladora obra-prima humanista centrado na dolorosa história de um transplante cardíaco.

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Cuidar dos Vivos de Katell Quillévéré começa com uma sequência de abertura simplesmente maravilhosa. Nesses minutos iniciais, seguimos o percurso de Simon, um rapaz loiro, tatuado, bem-parecido e com apenas dezassete anos. Saindo da cama da sua namorada, no que se supõe ser o rescaldo de um encontro sexual secreto, ele esgueira-se pela janela aberta do quarto, enquanto no céu madrugador ainda o sol não mostrou a cara. Montado na sua bicicleta, ele parece voar pelas ruas vazias de Le Havre, acabando por se encontrar com mais dois jovens seus amigos e, como já tinham combinado, partem em direção ao mar.

Chegados à praia, os primeiros raios de sol pintam a atmosfera de azul, enquanto a câmara de Tom Harari captura os detalhes inócuos da muda de roupa e do encerar de pranchas de surf antes do trio se fazer às ondas. Aí, essa câmara baloiça na ondulação e os níveis variáveis da superfície aquosa escondem os cortes mais bruscos da montagem, sugerindo uma hipnótica fluidez espacial que é exacerbada quando os jovens começam a impor o seu domínio sobre as ondas, rasgando-as com as pranchas. A certa altura, Simon fica submerso e olha extasiado para as abóbadas de espuma que explodem sobre a sua cabeça e, como que por magia formalista, Quillévéré parece ter tornado conceitos poéticos como a capacidade negativa de Keats em manifesto cinematográfico. Esta sequência é sobre a sensação fugaz de se viver um instante, é uma cristalização da juventude, sua beleza, sua energia, seu poder e preciosa promessa.

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Tais ideias ecoam pelo resto da narrativa de Cuidar dos Vivos como um punhal no coração. Esta sequência de abertura não acaba com nenhum epíteto de fulgor juvenil, mas sim com a imagem de uma estrada metamorfoseada num oceano agitado aos olhos de um condutor sonolento e com o som de um desastre de automóvel. Simon começa o dia como o rei das ondas, mas chegado o fim da manhã, a sua mãe está a ser chamada ao hospital para ouvir que o filho estava numa condição grave quando os paramédicos chegaram e que, naquele momento, já se encontra em morte cerebral. Não há nada a fazer, aquela promessa da juventude extinguiu-se, apesar do corpo quente do jovem ainda permanecer numa ilusão de vida mecanicamente assistida.

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Depois de se contactar o pai de Simon, há, contudo, ainda um assunto a tratar. Devido à sua rara situação, Simon é um espetacular candidato a doador de órgãos, mas cabe a ambos os pais destroçados tomarem essa decisão e, infelizmente, o tempo é escasso antes de partes do organismo como o coração se tornarem inviáveis. Em simultâneo a esta tragédia, Claire, uma antiga música na meia-idade, enfrenta as dificuldades da sua condição cardíaca degenerativa que provavelmente irá ceifar a sua vida caso não seja brevemente feito um transplante.

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Toda esta premissa narrativa, não obstante a orgástica sequência inicial, poderia facilmente ter resultado num melodrama pouco distinto de um dos episódios mais chorosos de Serviço de Urgência. No entanto, trabalhando com base num romance de Maylis De Kerangal, Katell Quillévéré filma Cuidar dos Vivos com a disciplina de uma velha mestra da sétima arte. A dor dos pais de Simon, por exemplo, é mostrada em situações íntimas, mas os mecanismos formais que compõem a sua apresentação nunca tentam ilustrar ou explicar o seu estado mental. É impossível compreender tal agonia e a realizadora, que dedicou o filme à sua mãe, não ousa desrespeitar as suas personagens com tais tentativas de vácua aproximação, preferindo uma abordagem meio clínica, meio reverente, mas nunca apática.

Seguindo a linha de amor maternal, voltamos à figura de Claire. Ela tem dois filhos no princípio da idade adulta e, apesar do amor familiar entre os três ser óbvio, há a sensação que a matriarca se sente afastada da intimidade dos dois rapazes. Caso morra em pouco tempo, ela vai sair deste mundo sem realmente compreender os seus filhos ou lhes ter dito tudo aquilo que anseia partilhar. Ela própria chega a verbalizar o sentimento quando, certa noite, decide ir assistir ao concerto de uma ex-namorada por quem ainda nutre grande afeto e acabam por passar a noite na companhia uma da outra.

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Toda esta abordagem, é tanto fruto do trabalho formalista da realizadora como dos esforços do elenco. Como os pais de Simon, Emmanuelle Seigner e Kool Shen são como nervos vivos sempre a pulsar com tamanha dor que por vezes parecem anestesiados para com a realidade física. Ao mesmo tempo, a magnífica Anne Dorval consegue tornar Claire numa figura tão misteriosa como familiar, que apesar do seu tormento nunca exige a piedade do espectador. Com uma simples expressão reticente, ela e os dois atores que interpretam os seus filhos, Finnegan Oldfield e Théo Cholbi, fazem, de um simples serão em frente à TV, um tableau tão carregado de informação sobre dinâmicas familiares como as complexas composições de Bergman.

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Mas não são só as famílias que têm direito a ser retratadas neste drama. Cuidar dos Vivos interessa-se por todas as vidas periféricas às narrativas principais, explorando as idiossincrasias dos vários profissionais médicos que de algum modo têm um papel na história. Observamos, por exemplo, como o médico principal de Simon gosta de ouvir hip-hop no carro, como para preservar a sanidade o coordenador dos transplantes se entretém com vídeos de pintassilgos, como uma enfermeira fantasia com um gesto íntimo do seu amante após um turno que a deixou esgotada, como um cirurgião flirta com a colega enquanto viajam de helicóptero para irem recolher um órgão, e como sorrisos silenciosos trocados no bloco operatório assinalam um sucesso cirúrgico.

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Quase tão belos como a abertura de Cuidar dos Vivos são mesmo os seus últimos vinte minutos. Quillévéré filma os procedimentos médicos com atenção metódica e reverência, tornando-os em atos cerimoniais despidos de qualquer componente religioso. Últimas mensagens de entes queridos são sussurradas a ouvidos que já não ouvem, uma adolescente chora pela memória de um sorriso, uma mãe teme nunca mais ir ver a cara dos filhos, um casal vê o nascer de um novo dia para um mundo em que o seu filho já não vive e a tapeçaria humanista de Cuidar dos Vivos chega ao fim com uma imagem de cortar a respiração. A luz doirada do sol, constantemente associada à presença vivaça de Simon, brilha agora sobre outra face. Esboça-se então um sorriso aquoso a dar as boas vindas a um futuro que já se pensava ser impossível. Nestes derradeiros instantes, Quillévéré oferece-nos uma alternativa secular à ressurreição de Ordet que, mesmo assim, tem o impacto de um milagre e o poder transcendente de uma obra-prima.

Cuidar dos Vivos, em análise

Movie title: Réparer les vivants

Date published: 22 de June de 2017

Director(s): Katell Quillévéré

Actor(s): Emmanuelle Seigner, Anne Dorval, Tahar Rahim, Gabin Verdet, Monia Chokri, Kool Shen, Finnegan Oldfield, Théo Cholbi

Genre: Drama, 2016, 103 min

  • Claudio Alves - 90
90

CONCLUSÃO

Conjugando disciplina formalista com as preocupações humanistas já típicas do cinema de Katell Quillévéré, Cuidar dos Vivos é uma eletrizante celebração da vida humana e sua fragilidade.

O MELHOR:
É difícil escolher entre o triunfo audiovisual da abertura e o poder devastador da última imagem.

O PIOR: Apesar da generosidade humanista dada por Quillévéré a praticamente todas as figuras humanas que passam pelo filme, Juliette, a namorada de Simon, permanece uma relativa abstração até ao fim de Cuidar dos Vivos.

CA

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