Curtas Vila do Conde no Festival Scope, em análise
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Este mês, a plataforma online Festival Scope apresenta algumas das melhores curtas que foram exibidas previamente no Curtas Vila do Conde de 2017.
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Desde dia 13 de julho e até dia 30, a plataforma online Festival Scope esteá a exibir sete curtas-metragens que passaram no prestigiado festival de cinema Curtas Vila do Conde. Entre os títulos selecionados encontra-se mesmo o grande vencedor da competição portuguesa do festival, a nova curta-metragem avant-garde de João Pedro Rodrigues intitulada Où En Êtes-Vous, João Pedro Rodrigues?, em que o cineasta explora as suas influências e evolução cinematográfica.
Outra obra portuguesa a marcar presença nesta coleção de sete filmes é Coelho Mau, o novo conto-de-fadas fetichista de Carlos Conceição que foi apresentado em maio no Festival de Cannes. Fora de um panorama exclusivamente português, também podemos encontrar três exercícios em curiosa abstração cinematográfica, o colorido The Watershow Experience, o misterioso projeto espanhol Montañas Ardentes Que Vomitan Fuego e o objeto de estudo formalista Esto No Es Un Olivo.
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Se, no entanto, os teus gostos incidirem mais sobre obras com claras narrativas e menos experimentação abstrata ou surrealismo fetichista, o Festival Scope e o Curtas Vila do Conde também têm algo para te oferecer. Referimo-nos a All the Small Bodies, uma interpretação proto feminista e levemente pós-apocalíptica da história de Hansel e Gretel, assim como ao comovente filme de animação Chika, die Hündin im Ghetto, sobre a relação entre um rapaz judeu e seu adorado animal de estimação durante o Holocausto.
Para explorares mais a fundo estes pequenos trabalhos cinematográficos e leres as nossas análises individuais de cada um, utiliza as setas indicadas abaixo. Depois de leres isso, se desejares ver as curtas referidas dirige-te ao Festival Scope pois todos estes filmes são de exibição gratuita, apesar de haver um limite de 300 bilhetes disponíveis. Não percas!
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ONDE ESTÁ AGORA, JOÃO PEDRO RODRIGUES? de João Pedro Rodrigues
Onde Está Agora, João Pedro Rodrigues? também conhecido como Où En Êtes-Vous, João Pedro Rodrigues? foi uma curta-metragem originalmente feita em resposta a uma encomenda do Centro Pompidou para a sua retrospetiva sobre o trabalho do cineasta. Isso veio no encalço da estreia de O Ornitólogo pelo qual João Pedro Rodrigues ganhou o prémio de Melhor Realização em Locarno e que, até ao momento, é provavelmente a longa-metragem mais autorreflexiva do autor português. Tal qualidade é bastante intensificada nesta curta-metragem, onde pinturas feitas para a promoção de O Ornitólogo, vídeos caseiros e imagens dos bastidores de vários projetos do realizador se mesclam com citações de Hawthorne e Thoreau.
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No entanto, antes de qualquer dessas filmagens se apresentar, a curta começa de um modo direto e quase eletrizante na sua provocatória frontalidade. Aí, vemos escadas em caracol filmadas numa película degradada, cheia de grão e cores saturadas. O título do filme aparece, propondo uma questão ao seu próprio realizador. Então ouvimos passos e os pés despidos de Rodrigues entram na composição, descendo os degraus. Ele está desnudo e a sua descida termina antes sequer do seu torso nos ser revelado na integridade. No ponto focal da composição está o sexo exposto sem pudor do cineasta ao mesmo tempo que ele nos revela a morada da sua presente localização, dando talvez a resposta mais seca imaginável à pergunta do título.
O resto do filme não é tão formidável na sua coordenação de tonalidades e autorreflexão formalista como a abertura, mas não deixam de ser um olhar fascinante à mente e vida cinematográfica do seu criador e figura titular. Mais uma vez, João Pedro Rodrigues prova-nos que é um dos mais interessantes autores do cinema português atual. Talvez mais do que qualquer outro cineasta nacional, ele é imbatível na sua capacidade para criar experiências de meta textualidade cinematográfica e auto pesquisa pessoal sem cair em impenetráveis intelectualismos embriagados com a sua própria pressuposta importância. Em suma, este foi um justo vencedor da competição nacional no festival curtas Vila do Conde.
COELHO MAU de Carlos Conceição
O outro filme português na coleção de curtas-metragens do Festival Scope é Coelho Mau, a mais recente obra de Carlos Conceição. Espetadores já familiarizados com a filmografia do cineasta certamente irão encontrar aqui uma expectável repetição dos seus temas, mecanismos e estilizações já características. Nomeadamente, a subversão da simplista inocência de contos-de-fadas é emparelhada com situações de desenvergonhada obscenidade e a imagética fetichista molda a fantasia meio infantil até dar à luz uma estética híbrida e sedutora na sua desconcertante estranheza.
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De forma muito sumária, o filme retrata-nos a dinâmica de uma família em que o protagonista é um jovem que enverga orelhas de coelho e cuida de uma irmã doente. A relação dos dois tem os seus traços de erotismo incestuoso, mas nada disso preocupa uma mãe desinteressada na vida dos filhos, dando toda a sua atenção aos epítetos carnais proporcionados por um gigolo que acaba por sair da sua vida antes de o filme terminar. Esse mesmo gigolo é perseguido e capturado, quase seduzido pelo jovem protagonista que o leva à irmã e fica a observar a sua copulação.
Poderíamos falar muito das qualidades plásticas de Coelho Mau, da eletrizante sexualidade do seu role playing, das suas imagens mais memoráveis ou do modo como a câmara de Vasco Viana lambe os corpos masculinos com luxuriante zelo. No entanto, algo bem mais interessante a referir é a qualidade emotiva que o filme consegue conjurar através dos seus jogos. Nada exemplifica melhor esse lado do projeto que os seus momentos finais, com os irmãos de mãos dadas enquanto a rapariga é penetrada pelo gigolo e Conceição nos mostra a cara inocente do irmão. Se nos deixarmos anestesiar em relação ao choque moralista que tal situação pode em nós provocar, ficamos com o retrato de um jovem a enfrentar a realidade da iminente perda daquela que é talvez a única pessoa que em todo o mundo lhe mostra genuíno afeto. Como é que é possível encarar-se o mundo depois de tal perda? O filme não nos mostra isso, mas a sugestão de tal realidade é suficiente para dar fascinantes reverberações melancólicas a esta história onde os desejos humanos são capazes de magicar mundos de fantasia.
ALLE KLEINEN KÖRPEN de Jennifer Reeder
Se formos honestos, a proposta narrativa de Alle Kleinen Körpen, o novo filme da realizadora Jennifer Reeder, é forte e bastante fascinante. Trata-se de uma tentativa de repensar o conto de Hansel e Gretel de uma perspetiva feminista e num contexto que se aproxima mais do filme pós-apocalíptico inglês que do conto folclórico de tradição germânica. Com isso dito, para além de ser insustentavelmente comprido quando em comparação direta com as outras curtas desta seleção, este filme é um triste fracasso.
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Em termos visuais, as soluções da cineasta não são particularmente pueris e as suas adaptações textuais inspiradas no conto clássico têm o seu interesse, por muito pouco originais ou reveladoras que nos possam parecer numa análise final. O que efetivamente acaba por desabar o edifício cinematográfico em evidência é o trabalho de ator e o modo como este corrói a integridade das personagens de tal modo que a própria polidez formal parece ser um problema. O que queremos com isto dizer é que, se o filme enveredasse por uma exploração mais intencionalmente low-fi, grosseira e experimental do conto, o trabalho abismal das duas atrizes infantis nos papéis principais seria entendível. No entanto, na sua forma final, esta é uma fantasia demasiado bem executada em termos técnicos para sustentar tais abordagens interpretativas. Quer dizer, as composições fotográficas não são muito inspiradas e a sonoplastia também não é particularmente primorosa, o que certamente não ajuda as já terríveis prestações principais.
No final, é uma pena que este projeto não alcance o sucesso que a sua premissa inicial parece sugerir. No entanto, a sagaz subversão do conto-de-fadas não é totalmente invalidada, especialmente o que diz respeito à maldição sangrenta da bruxa ou à natureza opressiva e intrinsecamente masculina do principal vilão da história.
CHIKA, DIE HÜNDIN IM GHETTO de Sandra Scheissl
Um filme sobre o Holocausto para crianças é uma proposta um pouco difícil de aceitar para muitas pessoas. Um adorável cartoon sobre a vida de judeus sob domínio e constante ameaça de extermínio por forças nazis é algo ainda mais estranho, mas a verdade é que Chika, die Hündin im Ghetto é precisamente isso. Para além do mais, e ainda mais impressionante, esta curta-metragem é um relativo sucesso.
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Baseado num livro infantil escrito por uma sobrevivente do Holocausto e baseado em experiências reais, esta curta conta a história de Mikasch, um menino de cinco anos preso com a sua família num ghetto judaico dentro de uma cidade polaca nunca nomeada. Quando o conhecemos, ele está na companhia de Chika, seu fiel companheiro canino, e os dois vivem relativamente felizes e inocentes sem se aperceberem do horror e opressão das suas vidas. No mesmo dia em que o filme começa, contudo, a família de Mikasch é informada que é proibido os judeus terem cães pelo que, na tentativa de salvar o animal de estimação, os pais do menino conseguem enviar Chika, em segredo, a uma família fora do ghetto. Mais tarde, quando lhes é dito que vão ser deportados, a família desobedece às ordens nazis e esconde-se num abrigo subterrâneo que o pai tinha escavado. Lá, eles passam um tempo indeterminado, saindo finalmente quando as forças aliadas os libertam. Durante todo esse tempo, a esperança de reencontrar o seu animal de estimação foi, para Mikasch uma fonte de sanidade e o centro de todo o seu ser.
O filme tem um final feliz para a história do menino e seu cão, mas é precisamente a ausência de condescendência para com o público que se encontra o triunfo da obra. Apesar de limitar a sua narrativa ao ponto-de-vista muito limitado de Mikasch, esta curta chama atenção para essas mesmas limitações e consegue assim evitar o tipo de dramatismo ofensivo e estúpido de propostas semelhantes como O Rapaz do Pijama às Riscas. A cereja no topo do bolo é mesmo a animação em si, feita a partir de bonecos de tecido ou madeira, dependendo da posição autoritária da personagem, e levada a cabo num mundo feito a partir de páginas rasgadas e malas de viagens – símbolos indiretos dos horrores a que o filme alude.
MONTAÑAS ARDIENTES QUE VOMITAN FUEGO de Helena Girón e Samuel M. Delgado
As últimas três obras desta seleção movem-se muito na direção da abstração cinematográfica, focando-se de modo quase obsessivo na materialidade de um certo espaço ou elemento físico e assim proporcionando uma quase desfragmentação da linguagem cinematográfica esticada até aos seus limites pela miopia intencional dos seus autores. O primeiro e mais substancial destes projetos é o espanhol Montañas Ardientes que Vomitan Fuego, um retrato cinemático de lugares outrora utilizados como esconderijo pela resistência às forças de Franco.
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Usando uma panóplia de diferentes técnicas e formatos, este projeto sugere uma proposta formalista em que geografia é tornada em manifestação do passado político e da luta contra a opressão agora gravada nos confins subterrâneos da montanha, como espectros impregnados na pedra. Os assobios codificados dos rebeldes ouvem-se no início, quando ainda estamos à luz do sol, mas depois tudo se desfragmenta quando os cineastas nos mergulham na escuridão sepulcral das cavernas. De película, passamos a digital, vemos fotos do passado, dissolves sugerem fantasmas, a sonoplastia conjura ventanias e labaredas invisíveis ao mesmo tempo que a abstração começa a dominar o filme e a audiência. A pedra torna-se manifesto político, os heróis do passado tornam-se mitos meio esbatidos nesta tapeçaria fílmica.
Não há dúvida que este é um filme ousado e extremamente belo no seu minimalismo e rigor formal, mas, mesmo assim, temos de admitir que a obra perde muito quando se extrai dela o contexto histórico. Apesar da sugestão dos assobios do início e das fotos de arquivo, é quase necessário que o espetador faça uma pesquisa prévia ao filme para poder experienciar a totalidade dos jogos concetuais subjacentes aos já muito elogiados feitos técnicos.
THE WATERSHOW EXTRAVAGANZA de Sophie Michael
O segundo destes trabalhos meio abstratos, meio experimentais, é The Watershow Extravaganza, uma curta-metragem feita originalmente para ser apresentada como parte de uma exposição de galeria. Aqui, a cineasta inglesa Sophie Michael filma uma antiga atração da feira britânica de 1951 que, nos anos 80, veio a ser comprada por um parque de diversões onde progressivamente se veio a tornar numa relíquia kitsch do passado.
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Kitsch é mesmo a palavra de ordem e a cineasta não mostra qualquer temor desse conceito ou classificação estética. Através da câmara de Michael, as fontes, iluminadas por luzes néon em cores berrantes e coreografadas ao som de músicas de outros tempos, ganham algo de fantasmagórico e irreal ao mesmo tempo que nunca deixam de parecer uma peça de nostalgia feia e obsoleta. A câmara aproxima-se dos detalhes mecânicos e a sonoplastia arrisca a indefinição tonal, mas a experiência geral do projeto é sempre a de uma alegria melancólica e forçada, como um palhaço triste e moribundo a atuar pela última vez.
A imagética recorda o trabalho de lendas do cinema avant-garde americano como Kenneth Anger e James Bidgood, mas é essa contracorrente de tristeza sorridente que realmente eleva o projeto a algo mais que um puro exercício formal. Não que haja nada de errado com um exercício cinematográfico singularmente preocupado com estímulos e jogos formalísticos.
ESTO NO ES UN OLIVO de Carlos Arteiro
Seguindo a mesma linha de pensamento expressa no texto anterior, Esto No Es Un Olivo é precisamente o tipo de exercício formalista que se evidencia como uma experiência cinematográfica do mais alto gabarito. É certo que o filme de Carlos Arteiro demonstra imensas limitações técnicas e concetuais, mas as suas intenções são tão singulares e inteligentemente pequenas que o formato de curta-metragem prova ser perfeito para si.
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Como o título indica, este é um filme sobre uma oliveira, ou mais especificamente sobre a tentativa de tentar capturar em cinema a experiência de se ser uma oliveira. Máquinas impiedosas fazem o seu tronco tremer aquando da colheita e a câmara segue os mesmos ritmos, quase precipitando a audiência numa explosão de movimento indecifrável. Mas também há quietude e a beleza estática de uma lesma a deslizar pelo tronco da protagonista arbórea. Até há referências a Van Gogh, à tentativa de o pintor representar o movimento das oliveiras na colheita, outro gesto artístico que almejava a cristalização artificial do mundo natural e sua fustigação por mão humana.
No final, quando a desfragmentação imagética começa a chegar ao seu apogeu, o cineasta, através de uma voz-off feminina, verbaliza a sua tese, o seu propósito aquando da criação desta película. Por entre a escuridão amorfa ouvimos “Eu gosto da possibilidade de filmar as suas raízes” – a proposta de uma impossibilidade mecânica, um agoiro do arranque da oliveira da sua posição fixa no terreno, uma expressão de ambição cinematográfica.
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Não percas a possibilidade de ver estes e outros filmes no site do festival Scope, uma das melhores plataformas de streaming para amantes de cinema do circuito dos festivais.
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