Elaine May | A mestra comediante da Nova Hollywood

Principalmente conhecida hoje em dia como comediante, Elaine May foi uma das mais importantes realizadoras americanas durante a década de 70 do século passado.

 

Warren Beatty e Dustin Hoffman em ISHTAR (1987)

 

Celebrou-se esta semana o 30º aniversário da estreia de Ishtar, o quarto filme que Elaine May realizou. Foi também o seu último filme, sendo que o dia 15 de maio de 1987 deve ter um significado particularmente amargo para a comediante, argumentista atriz e cineasta, pois é essa a mesma data inscrita na lápide da sua carreira enquanto realizadora de cinema e enquanto a mais importante voz feminina da Nova Hollywood. Esse movimento nasceu no final dos anos 60, em filmes como Bonnie e Clyde, e veio a ter uma dolorosa e sôfrega morte durante a década de 80, quando a febre dos blockbusters aniquilou quaisquer pretensões que os estúdios e audiências pudessem ter acerca do apoio e celebração do cinema de autor.

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Apesar de Elaine May não ser, de todo, tão lembrada como outros realizadores associados com o movimento, como é o caso de Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Michael Cimino, Hal Ashby e mesmo o antigo colega de May, Mike Nichols, ela representa uma figura fulcral neste capítulo da história do cinema americano. Infelizmente as razões para a imortalidade do seu legado não são muito positivas e centram-se principalmente em Ishtar. Esse malfadado fracasso foi vítima de um golpe de assassinato publicitário pela parte do seu próprio estúdio, viu o perfecionismo e visão artística da sua realizadora serem ridicularizados como excentricidades dispendiosas, o seu orçamento de mais de 50 milhões de dólares foi pintado como uma prova inequívoca da hubris de Hollywood ao estilo de As Portas do Céu e todo o projeto tornou-se alvo de chacota pública durante quase uma década.

 

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Elaine May e Mike Nichols em palco em 1958

 

Apesar de tudo isso, antes de chegarmos à tragédia arábica de Ishtar, convém retroceder um pouco na história de Elaine May. Nascida em 1932 na cidade de Filadélfia, Elaine cresceu no seio da comunidade judaica com pais que trabalhavam no teatro. A jovem depressa se tornou numa parte dos espetáculos dos pais, chegando mesmo a ir em tours nacionais com a trupe de teatro iídiche da família. Quando cresceu e deixou de ser colega dos progenitores, a jovem atriz decidiu, mesmo assim, continuar a viver no mundo do teatro e foi nos meios artísticos de Nova-Iorque que veio a encontrar os seus primeiros rasgos de genuíno sucesso e fama. Apoiando-se num estilo de comédia baseado em constante improvisação, Elaine May e Mike Nichols formaram uma dupla que tomou de assalto as elites intelectuais nova-iorquinas na década de 50 e, chegados os anos 60, eles já eram estrelas incontestáveis.

 

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Elaine May e Walter Matthau em VIDA NOVA (1971)

 

Se este fosse um artigo sobre Elaine May enquanto comediante, então teríamos de falar profusamente sobre o modo como o seu estilo e técnicas foram influenciar os seus pares e como o seu legado ainda vive no trabalho de stand-up atual. No entanto, estamos aqui para examinar o seu percurso enquanto realizadora, por isso temos de saltar da glória do teatro nova-iorquino para o início da década de 70. Depois de Mike Nichols se ter aventurado para o mundo da encenação na Broadway e da realização de cinema, e pelo caminho ter arrecadado dois Tonys e um Óscar em menos de cinco anos, Elaine May também decidiu procurar outros caminhos para além da comédia teatral. Primeiro vieram os trabalhos como atriz em produções de Hollywood, mas, chegado o ano de 1970, ela estava a filmar a sua estreia enquanto realizadora, argumentista e protagonista de um filme, a comédia Vida Nova com Walter Matthau.

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Esta história sobre um chauvinista privilegiado que perde toda a fortuna e se casa com uma herdeira excêntrica para pagar um empréstimo, tendo em mente o assassinato eventual da esposa, pode parecer uma proposta relativamente simples, mas Elaine May viu aqui uma oportunidade para mostrar o que valia. Como os grandes realizadores em ascensão na época, o seu estilo é uma fascinante fusão entre mostras de virtuosismo clássico e um toque de irreverência realista com grandes doses de misantropia. As ambições da realizadora, no entanto, excederam bem as expectativas dos seus produtores que, quando se aperceberam que tinham em mãos uma comédia de extrema negrura com mais de três horas, eles tiraram o filme das mãos da realizadora e estrearam nos cinemas uma versão bem mais curta e com uma moral positiva a atenuar a acidez concetual da narrativa. Elaine May ficou furiosa, chegou mesmo a tentar tirar o seu nome do filme, mas o facto é que, mesmo nesta forma mutilada, Vida Nova é um triunfo do mais alto gabarito, evidenciando como a inovação cinematográfica desta Nova Hollywood não se tinha de manifestar só em sérios dramas com perspetivas exclusivamente masculinas.

 

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Charles Grodin e Jeannie Berlin (filha de Elaine May) em CASEI-ME POR ENGANO (1972)

 

Se Vida Nova foi um começo promissor, os dois filmes que May realizou a seguir são verdadeiras obras-primas. Casei-me por Engano, estreado em 1972, mostrou ao público americano o reverso da medalha de The Graduate, um filme realizado por Mike Nichols que foi um fenómeno de tal ordem que se tornou na sintetização do grito de rebeldia de toda uma geração. Ao invés de simpatizar com o dilema do protagonista masculino, May usa o seu estilo híbrido de comédia improvisada emparelhada com realismo estético para por em evidência toda a crueldade e humilhação latentes na história de um homem que, durante a lua-de-mel, abandona a sua esposa para perseguir uma rapariga mais nova que parece ter saído de uma capa de revista. Em termos de subversão de padrões narrativos e ideológicos, o filme é um sucesso sem igual, mas também é genuinamente hilariante.

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John Cassavetes e Peter Falk em JOGO MORTAL (1976)

 

Dentro do mesmo panorama, Jogo Mortal de 1976 parece uma espécie de subversão paródica de todos os filmes de gangsters que tinham, na última década, conquistado a cultura popular americana. Aqui, não há honra familiar ou sentido épico na história de gansgters e mafiosos mas sim uma impiedosa desconstrução de duas figuras patéticas que foram corroídas pelas suas próprias ideias de tóxica masculinidade. Arte que se propõe a subverter abertamente o que está em voga não é normalmente aceite de braços abertos e o mesmo ocorreu com este filme, que, ainda para mais, sofreu uma série de dispendiosos atrasos de rodagem devido ao modo como Elaine May decidiu trabalhar com os seus dois protagonistas, John Cassavetes e Peter Falk. Nesta época da sua carreira, alguns críticos e académicos já se tinham apercebido das qualidades de May enquanto cineasta, mas os estúdios não estavam apaixonados pelo seu trabalho de realizadora, preferindo celebrar os seus esforços menos abrasivos enquanto argumentista de projetos levados ao grande ecrã por outras pessoas, como é o caso de O Céu Pode Esperar.

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E então veio Ishtar, uma endiabrada comédia sobre dois fracassados cantores nova-iorquinos que, durante uma viagem de trabalho ao Médio Oriente, caem no centro de um conflito à escala internacional sem precedentes. O projeto demorou anos a desenvolver, as suas filmagens provaram-se quase intermináveis e os custos de produção subiram até níveis imperdoáveis para uma comédia sem esperanças de se tornar num blockbuster. Uma coisa é certa, todo o dinheiro está à mostra no filme, quer seja na realidade material de uma terra exótica e distante, quer seja nas prestações transformativas de Dustin Hoffman e Warren Beatty nos papéis principais. Se há prova que o perfecionismo desta realizadora funciona, são estes dois desempenhos, nascidos de dezenas, quase centenas, de takes repetidos até que a persona das estrelas se transmutou em algo estranho, alienante e imprevisível. Pelo menos nos últimos anos, com a distribuição de um director’s cut, Ishtar tem vindo a ser reconsiderado criticamente e Elaine May está gradualmente a receber o tipo de reconhecimento que o seu legado merece, quer seja como uma das mais idiossincráticas visionárias da Nova Hollywood quer seja como a realizadora cujas exigências criativas pregaram o último prego no caixão dessa celebérrima fase na história do cinema americano.

 

 

Elaine May ainda escreve e atua para teatro, televisão e, ocasionalmente, cinema. Depois da morte de Mike Nichols, ela realizou um episódio especial da série American Masters em honra do amigo, marcando assim a primeira vez que ela realizou o que quer que fosse desde Ishtar. Mesmo assim, ela não veio manifestar grande vontade de regressar à cadeira de realização em cinema.

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