Entrevista a João Salaviza: a vertigem da adolescência.

 

A adolescência é uma montanha difícil de escalar e que passa nas nossas vidas como uma vertigem. Este é tema de ’Montanha’, a primeira-longa metragem do realizador português João Salaviza (31 anos). Premiado em Cannes e Berlim respectivamente pelas suas curtas ‘Rafa’ e ‘Arena’, conta agora em ‘Montanha’, a história de David, um adolescente de 14 anos, que vive numa Lisboa geométrica e vazia, do bairro dos Olivais, desiludido com a escola e as instituições, angustiado pela morte e desilusão de um primeiro amor. O realizador falou-nos ainda em Veneza do processo de criação desta sua primeira longa-metragem. 

O realizador portuguÍs, Jo„o Salaviza, distinguido no Festival de Cinema de Cannes, com a Palma de Ouro para curtas-metragens, 28 Maio 2009, em Lisboa. (ACOMPANHA TEXTO). ANDRE KOSTERS/LUSA PORTUGAL JO√O SALAVIZA PORTUGAL JO√O SALAVIZA
 

P. :  Em ‘Montanha’, regressou ao tema da adolescência?

João Salaviza: É o encerrar de uma busca que já me interessava desde as minhas curtas-metragens ‘Arena’ e ‘Rafa’. Uma curta-metragem não me permitia explorar com tanta exaustão e intensidade, a história de um corpo em transformação. Por isso fiz esta longa-metragem muito simples e concentrada num protagonista.

 

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P.: Recuperou inclusive personagens das suas curtas, como o Rafa (Rodrigo Perdigão) e de certo modo também o Gustavo (Carloto Cotta), que poderia ser a  mesma personagem do ‘Arena’?

J.S.: Há de facto qualquer coisa de antológica no ‘Montanha’, ao recuperar as personagens das curtas. O Carloto, não é o mesmo do ‘Arena’, mas até podia ser.

 

P.: Porque é que a história do ‘Montanha’, acontece no bairro dos Olivais?

J.S.: O bairro dos Olivais, é uma espécie de país que ficou por cumprir. É um bairro construído nos anos 60, como uma utopia, onde as pessoas de diferentes classes sociais podiam viver juntas. Agora está vazio de miúdos, jovens e adolescentes. O protagonista David (Mourato) é quase um fantasma a vaguear por um bairro vazio. E isso reforça, a ideia de solidão e angústia que o miúdo e a família vivem no filme.

 

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P.: ‘Montanha’ é igualmente um filme sobre o crescimento’?

J.S.: O filme é uma conjugação de duas coisas: filmar as memórias da minha própria adolescência, que começam a ficar longínquas; cruzar essas memórias semi-autobiográficas com a existência real do David, que traz muitas coisas da vida dele para o filme. E isto é muito interessante para o cinema. Apesar de eu filmar com planos fixos, mexendo pouco a câmera, isso vai contrastar com a agitação de um corpo que não consegue parar e oscila entre a infância e a idade adulta.

 

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P.: Como descobriu estes actores?

J.S.: Os castings nos meus filmes são muito informais. Escolhi o David da mesma forma, que no ‘Rafa’ ou ‘Arena’: foram cerca de 7 ou 8 meses à procura de miúdos em escolas, clubes, na rua. O David Mourato foi um dos 300 ou 400 adolescentes (miúdos e miúdas), que observamos durante a preparação do filme.

 

P.: Os actores têm margem para improvisarem?

J.S.: Escrevo algumas coisas. Depois são os actores que trazem para o filme a verdade deles. É essa que me interessa e não necessariamente a minha. Portanto há uma improvisação permanente durante a rodagem.

 

P.: Os mistérios da adolescência reflectem-se muito na utilização da luz?

J.S.: Há uma ideia de luz que se inspira do cinema clássico. ‘Fúria de Viver’ (Nicholas Ray, 1955) uma das minhas grandes referências, aliás como outros filmes clássicos dos anos 50. Não me interessava fazer mais um filme de adolescentes hiper-realista, com a câmera à mão a seguir os protagonistas, como o ‘Kids’, do Larry Clark, ou como nos filmes dos Irmãos Dardenne. Eu e o Vasco Viana (director de fotografia) combinamos usar uma luz clássica, mais ‘cinematográfica’, que contrariasse o aparente naturalismo do dia-a-dia dos miúdos e mostrasse mais esses mistérios e zonas de intimidade. O ‘Montanha’ propõe um mundo de cinema, um mundo ficcional, às vezes até quase teatral. O trabalho da luz contribui obviamente para esta rotura com uma proposta naturalista.

 

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P.: Que filme estão a ver os três miúdos na televisão, quando estão entrelaçados na cama?

J.S.: É um ‘filme inventado’ com diálogos retirados de séries de televisão antigas e com uma música do Fernando Lopes Graça. É uma espécie de reiteração de um certo classicismo que queria no filme. Ou seja eles não estão a ver uma série de televisão actual, o ‘Big Brother’ ou os ‘Morangos Com Açúcar’. Estão a ver um filme clássico na televisão.

 

P. Numa conversa com a professora, o David diz que não lhe interessa o futuro desde que tenha uma cama e comida…

J.S.: Essa é a postura de vida do David. Há uma coisa que acho fascinante nessa geração que é um desejo de viver a vida com uma intensidade que está para além das expectativas de um futuro organizado e próspero. E foi por isso que me interessou filmar, cada minuto da vida do David, da Paulinha (Cheyenne Domingues) e do Rafa (Rodrigo Perdigão). Eles vivem como se não existisse amanhã.

 

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P.: O filme parece intemporal mas tem algumas coisas do Portugal de hoje?

J.S.: É verdade não se vêm as novas tecnologias, computadores, telemóveis ou Facebook e por isso é intemporal. O meu único objectivo foi aproximar-me do David. A presença do Portugal de hoje é secundária e está talvez na escola ou no hospital. Na cena da Piscina dos Olivais, ainda em obras paradas, em que a câmera se vai afastando e os miúdos continuam ali a cantar, representa o desencanto que eles começam  ater de se confrontar. Essa é talvez a cena onde melhor está representado simbolicamente o Portugal de hoje.

 

Montanha chega aos Cinemas a 19 de novembro


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