Festival Scope | Filmes da Semana da Crítica de Cannes (VII)

Para além da sua competição oficial, o Festival Scope tem ainda a honra de exibir três curtas especiais da Semana da Crítica de Cannes. Uma delas mostra os rituais fúnebres que dois pescadores fazem a um corpo anónimo, enquanto os outros dois se focam nas angústias e pensamentos de quem faz a sua vida por detrás da câmara.

 


Título: Los Pasos de Agua
Realizador:  César Augusto Acevedo
Elenco: Norberto Isajar, Isaí Carabalí, Dilver
Colômbia | 12 min


 

pasos de agua festival scope

Apesar da premissa inicial do mais recente trabalho do realizador colombiano César Augusto Acevedo lembrar o célebre conto de Raymond Carver que já foi numerosas vezes adaptado ao cinema, esta história de pescadores que encontram um cadáver nas suas redes tem pouco da mordacidade crítica desse texto literário. Na verdade, seria mais correto dizer que tem pouco interesse em seguir tais explorações da podridão do egoísmo humano.

Poder-se-ia mesmo dizer que Los Pasos del Água se propõe como uma alternativa a visões cínicas e enfaticamente verbosas de tal situação, sendo que os pescadores desta curta-metragem, ao contrário dos de Carver, estão prontos a deixar tudo o que estavam a fazer para prestarem o seu respeito à vida humana que cessou e cujo último testemunho de existência se encontra manifesta num corpo sem nome que foi encontrado a vaguear nas águas luminosas de um rio.

Lê Também: O Abraço da Serpente, em análise

A partir de uma magistral sonoplastia e uso generoso de planos de pormenor, Acevedo conjura uma verdadeira catedral de vida natural em redor deste ritual humano, desta tentativa de honrar quem morreu e deixou este mundo. O corpo, por sua parte, nunca é apresentado somente como um objeto cadavérico, mas sim como uma entidade viva, sendo que, a certa altura, vemos o ator, qual análogo da audiência a levantar-se e vaguear pela floresta enquanto os pescadores escavam na esperança de construir um sepulcro. Este exercício em formalismo cinematográfico e passiva observação consegue, apesar da sua grande economia expressiva e dramática, conter em si uma refrescante nota de melancólica humanidade, quando observamos os olhos das várias figuras em ação e nos interrogamos se os rituais dos pescadores realmente serviriam de algum conforto ao morto, ou se tal é uma mera inconsequência, um vácuo ato de respeito e empatia.

 


Título: En Moi
Realizadora: Laetitia Casta
Elenco: Yvan Attal, Lara Stone, Arthur Igual
França | 26 min


 

en moi festival scope

Desde os áureos anos das vanguardas cinematográficas europeias que o processo do cinema tem sido um dos temas prediletos de inúmeros cineastas ocidentais. Aspirantes a Fellini e Truffaut, ainda são muitos os cineastas que decidem virar a câmara sobre si mesma e explorar no seu cinema as mágoas e interioridade de quem trabalha nesta fábrica de sonhos, nesta máquina de empatia viva que é a sétima arte. Apesar de ser uma arte grandemente colaborativa, duas figuras têm-se afirmado como grandes sujeitos destas explorações, o ator e o realizador.

En Moi, o primeiro projeto dirigido pela modelo tornada atriz tornada realizadora, Laetitia Casta, foca-se principalmente na psique de um realizador em aparente crise criativa e paralisante medo de fracassar no seu presente projeto. As suas angústias tomam proporções diabólicas quando este vai filmar para a Ópera de Paris, dirigindo um bizarro grupo de belíssimas jovens em vários estados de nudez.

Lê Ainda: 13º IndieLisboa | Olmo e a Gaivota, em análise

Como primeiro filme da sua realizadora, En Moi é uma obra de grande ambição, tentando conjugar uma imensidão de ideias visuais, sónicas e temáticas com um desenfreado entusiasmo que em nada reflete a incapacidade infeliz de seu protagonista. É claro que ambição nem sempre tem como consequência o sucesso, e este é um filme que mostra grandes marcas de esforço e inexperiência, estando mais próximo de um volátil e imaturo filme estudantil que de 8 ½. Isso não impede a obra de ter as suas mais-valias, nomeadamente a prestação de Yban Attal, como o realizador em crise, e a distorcida fotografia de Benoît Delhomme.

 


Título: Myomano shel tzalam hatonot
Realizadora: Nadav Lapid
Elenco: Ohad Knoller, Naama Preis, Dan Shapira
Israel | 40 min


 

festival scope

O mais recente filme de Nadav Lapid, inicia-se com uma fascinante narração. Um fotógrafo de casamentos relata a primeira vez que filmou um casamento, quando ainda pouco sabia sobre câmaras e técnica cinematográfica. Na sua incompetente inocência, ele havia confundido o funcionamento da câmara, e acabou por filmar apenas aquilo que não queria filmar. Assim o filme de um casamento acabou por ser uma confusa e caótica mistura de indefinido movimento, tetos e chãos, ao contrário dos teatrais preparos da primeira dança, do beijo ou do cortar do bolo. Nas palavras desse narrador e nosso protagonista, esse trabalho fracassado, desprovido das imagens padronizadas de espetáculo matrimonial, acabou por ser a mais honesta representação de um casamento na sua carreira.

O filme, que se apresenta como um extrato do diário de um fotógrafo de casamentos, nunca volta a alcançar a majestosa mestria dessa introdução, mas mantém o seu toque de ácido cinismo em relação à instituição do casamento. Na verdade, a maior parte do filme foca-se na encenação ensandecida levada a cabo pelo fotógrafo numa praia com dois casais. Com o primeiro, traição e sexo parecem ser os temas em destaque, no segundo é a violência, a morte e a prisão do matrimónio que se tornam evidentes.

Mais do que funcionar como uma iluminadora exploração do casamento enquanto conceito, prisão ritual e instituição, este diário de um fotógrafo de casamentos é muito mais revelador e valeroso quando o apreciamos como um estudo formidável sobre a presença da câmara, sobre seu olhar e o modo como infeta a realidade com um mundo de artificio. Tais elementos fascinantemente formalistas são algo que se tem vindo a tornar evidente na filmografia de Nadav Lapid, um realizador israelita que já alcançou sucesso no circuito dos festivais com as suas longas-metragens passadas.

 

CA


 

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *