14º IndieLisboa | Grave, em análise

Grave é um soberbo objeto de terror psicossexual sobre uma adolescente vegetariana que sente despertarem no seu corpo novos e perigosos apetites.

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Para protagonista de um filme de terror psicológico, Justine até é uma adolescente bastante banal e com quem é relativamente fácil empatizar. É certo que ela é envergonhada, insegura e afetada por alguma ansiedade social, mas há pouco que a distinga de uma série de outras personagens semelhantes ao longo da história do cinema. Em Grave, observamos a sua entrada na faculdade, a sua vitimização nas praxes, a sua dificuldade em conectar com os seus pares e o modo como ela progressivamente vai despertando sexualmente para o mundo que a rodeia e para os seus próprios desejos. Rodeada por corpos a vibrar com as mesmas hormonas explosivas que correm pelo seu organismo, Justine vai sentindo o desejo de tocar nesses objetos de desejo, lamber a sua pele, de sentir o sabor do seu suor na língua. Só que, ela vai mais longe do que é habitual na sua voracidade carnal, querendo também sentir os seus dentes perfurar o outro, experienciar a intimidade do sangue saboreado, da carne arrancada à força de dois lábios que tanto beijam como servem de alimento a uma fome insaciável.

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Como qualquer fã do cinema de terror bem saberá, sexo, violência e morte são uma tríade comum neste tipo de filmes, o que Grave volta a confirmar com audaciosa obstinação. Uma coprodução franco-belga realizada por Julia Ducournau, este é um projeto onde o doloroso processo pela qual uma adolescente entra na idade adulta se desdobra em horrores inimagináveis que florescem de ansiedades bem entendíveis. O quotidiano exagerado até ao extremo do horror é a ideia-chave desta proposta, ancorando os excessos canibais do enredo num acutilante estudo psicológico de juventude em crise.

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Antes de testemunharmos o desenvolvimento simultaneamente sexual e canibal de Justine, encontramo-la como uma recatada rapariga vegetariana que é o orgulho dos pais e um prodígio académico. Ela até vai para a mesma faculdade veterinária onde a sua família tem tradicionalmente estudado incluindo a sua irmã mais velha que participa ativamente na praxe dos caloiros como Justine. Sozinha, isolada e ignorada num novo ambiente e comunidade, ela tem apenas o reticente apoio do seu atraente colega de quarto homossexual, Adrien, para a orientar nesses primeiros dias de sistemática humilhação trespassada pela excitante possibilidade de experiências nunca antes imaginadas (Grave retrata o fenómeno da praxe académica de um modo infinitamente mais inteligente que outros notórios títulos em competição no IndieLisboa). É mesmo no contexto desses rituais que ocorre o evento traumático que propulsiona todo o horror da narrativa, quando Justine é forçosamente persuadida a comer um rim de coelho cru, traindo os seus valores e dieta vegetariana.

A partir daí, o corpo adolescente torna-se num templo de horror físico e psíquico. Primeiro, observamos como a pele da protagonista se degrada em agressivas erupções cutâneas que sugerem uma reação alérgica violenta. Por muito horrível que seja a visão da sua pele vermelha e aberta em carne viva, os tormentos de Justine apenas se exacerbam nos dias seguintes, à medida que uma voracidade carnívora desperta no seu ser. Shawarma, hambúrgueres roubados e carne crua não saciam a fome da jovem, que, após um acidente sangrento em que a irmã perde um dedo, experimenta pela primeira vez o sabor de carne e sangue humano e aí encontra o seu tão desejado sustento e o bálsamo para a sua agonia.

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Como o primeiro parágrafo desta análise indicou, a voracidade canibal de Justine está diretamente relacionada com os seus novos apetites sexuais, pelo menos a um nível simbólico. Veja-se, por exemplo, como uma conversa de cantina suscita um diálogo sobre violações sexuais e como, mais tarde, as cautelosas advertências de uma figura de autoridade a Justine usam fraseologias normalmente associadas a esse tipo de agressão para falar da ingestão forçada do rim. Não queremos com isso induzir o espetador a ver o filme como uma simples representação metafórica do trauma de uma adolescente violada, sendo que a totalidade do projeto é ainda mais complexa que isso. O primeiro sabor do sangue e o primeiro contacto com a possibilidade de interação erótica, alteram por completo o modo como Justine enfrenta o mundo e seus pares. Adrien é objetificado pela protagonista, seu corpo é lambido pelo olhar curioso e excitado da sua companheira sedenta por lhe poder tocar, por nele encontrar intimidade e, eventualmente, gratificação sexual que, a certa altura, parece estar a ocorrer contra a explícita vontade do participante masculino.

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A outra relação fulcral do filme é a de Justine e Alex, sua já mencionada irmã mais velha. Inicialmente, as suas interações revelam uma venenosa visão de idolatria juvenil para com a figura de superioridade fraternal, mas o antagonismo vai dando lugar a uma união mais complicada. A dinâmica de poder entre as duas jovens mulheres acaba mesmo por constituir o elemento mais complexo e fascinante do filme, implicando dinâmicas de poder em constante mutação. Pela sua parte, as atrizes fazem um bom trabalho, assim como todo o elenco, mas há que se sublinhar quão Grave é um triunfo formal acima de tudo. Música dissonante, montagem elíptica, efeitos especiais que lembram o melhor do body horror e uma conspícua preocupação com o posicionamento de Justine em relação aos corpos que a rodeiam são apenas algumas das marcas do trabalho genial de Julia Ducournau que, para além de tudo isso, consegue injetar inesperadas quantidades de humor perverso nesta história.

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De cabeça baixa em pose de submissão e olhar vítreo e ameaçador, Justine parece a protagonista psicótica saída de um filme de Stanley Kubrick ao mesmo tempo que exemplifica a soberba pesquisa que este filme faz em relação a ansiedades adolescentes e alienação social. Mais uma vez, o cinema de terror prova como é talvez o género cinematográfico mais pronto a explorar as perversidades secretas da psique humana e expor seus temores no grande ecrã do mesmo modo que dramas de prestígio cheios de dramático diálogo expositivo nunca conseguem fazer com tal visceralidade. No final, Grave é um pequeno triunfo do horror, uma das grandes delícias fílmicas para fãs do género que, nos últimos anos, têm tido na secção Boca do Inferno do IndieLisboa, uma espécie de leve aperitivo ao festim que é o MOTELx no final do verão.

 

Grave (Raw), em análise
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Movie title: Grave

Date published: 12 de May de 2017

Director(s): Julia Ducournau

Actor(s): Garance Marillier, Ella Rumpf, Rabah Nait Oufella, Laurent Lucas, Joana Preiss

Genre: Terror, Drama, 2016, 98 min

  • Claudio Alves - 85
85

CONCLUSÃO

Grave é um desconcertante pesadelo cinematográfico, tanto mais chocante pela sua abjeta falta de exageros sobrenaturais ou descabidas psicopatias fantasiosas.

O MELHOR: A habilidade de Julia Ducournau para traduzir ansiedades banais do nosso dia-a-dia ou do passado juvenil em verdadeiros horrores infernais.

O PIOR: Os primeiros e últimos minutos do filme seguem a tradição do cinema de terror na última década e são os piores momentos da obra, quer seja pela sua natureza cliché, quer seja pela sua dissolução de apetitosas ambivalências narrativas que não precisavam de ser conclusivamente esclarecidas.

CA

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