Hannah

11ª Festa do Cinema Italiano | Hannah, em análise

Charlotte Rampling conquistou a Taça Volpi para Melhor Atriz no Festival de Veneza do ano passado por “Hannah”, um dos títulos apresentados na secção Altre Visioni da 11ª edição da Festa do Cinema Italiano.

hannah critica festa do cinema italiano

Uma escultura de desespero, linhas rasgadas numa expressão de desapontamento perpétuo, uma boca desenhada para trespassar mágoas constantes, olhos frios que poderiam sugerir crueldade não fosse o caso da sua forma transmitir uma ideia de resignação total. Assim é a face de Charlotte Rampling, uma das grandes atrizes da atualidade, uma face que praticamente suplica pela adoração de uma câmara e o espanto da audiência. Uma face que já deu vida a hedonistas cruéis da Londres dos anos 60, a gélidas divas de Visconti, Pakula e Ozon e que agora se manifesta como o suprassumo elemento cénico de “Hannah”, o mais recente filme do cineasta italiano Andrea Pallaoro que, verdade seja dita, podia prontamente ser classificado como uma canção de amor e devoção a Rampling, atriz poliglota, face dramática e presença cinematográfica.

Certamente há poucos planos em “Hannah” onde a presença de Rampling não se faz sentir, estando quase toda esta experiência fílmica subordinada ao exercício de se observar a atriz num dos seus papéis mais desafiadores dos últimos anos. Ela é Hannah, como o título indica, uma mulher a afogar-se em culpa, dúvida e solidão que tem o marido na prisão e um filho que a recusa na sua vida e na do neto. Nem o cão lhe dá grande companhia, estando o animal num estado depressivo com a ausência do dono. Em termos de trabalho, ela trabalha como mulher a dias num palacete minimalista com paredes brancas e superfícies vítreas que tudo refletem. Nesse claustro modernista ela tem a companhia de um jovem, uma constante lembrança do filho que não a quer ver e do neto com quem ela está proibida de comunicar.

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Somente umas bizarras aulas de atuação parecem oferecer-lhe um bálsamo para a sua existência sôfrega, uma chance de desaparecer no movimento coletivo, em representação das provações de outrem e uma hipótese de ceifar algum contentamento pessoal. Aliás, é num destes momentos de workshop interpretativo que Rampling agracia o seu público com um raro sorriso, fruto do orgulho num trabalho bem feito. A economia da atriz no que diz respeito a esta expressão facial é um dos grandes pormenores de “Hannah”, um filme afogado num tom depressivo que raramente é modulado, mas que não deixa por isso de ser calibrado por Rampling e Pallaoro com a precisão de dois mestres.

Note-se o terceiro sorriso de Rampling em “Hannah”, o último dos seus sorrisos genuínos em cena. Os primeiros foram manifestos na observação quase invejosa de uma família extremosa na prisão, enquanto o outro é aquele já referido na aula de atores. Este terceiro ocorre quando Hannah se prepara para visitar o neto no seu aniversário e é, de longe, o momento mais emocionalmente caloroso do filme, um convite ao espectador para baixar as suas defesas pessoais para com o tormento constante que é esta narrativa. Tal mecanismo é traiçoeiro, pois a maior desilusão a abater-se sobre a personagem ocorre precisamente no seguimento deste sorriso, assim como a única instância em que testemunhamos o choro desamparado de Hannah. Por muito frio que o filme seja, por muito alienante que o seu tom observacional possa ser, esta sequência funciona como um murro no estômago para a emoção do espectador.

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Este não é um retrato de personagem particularmente generoso para com os seus espetadores, quer seja na sua lacerante precisão emocional, quer seja na sua severidade formal. Seguindo os ditames de centenas de outros filmes europeus que raramente saem do circuito dos festivais de cinema, Andrea Pallaoro filma “Hannah” com uma câmara obsessivamente focada na sua atriz principal, quase que violando o seu espaço visual e impondo à audiência o papel de um voyeur parte predador, parte testemunha congelada. A estética geral é uma de realismo cinematográfico, onde o silêncio reina e o uso de iluminação putativamente natural não impede o diretor de fotografia Chayse Irvin de exibir todo o seu brio visual e tornar o filme numa coleção de tableaux de belíssima frieza e desolação.

Não é difícil, portanto, acusar “Hannah” de ser um poço de clichés do cinema europeu contemporâneo. De facto, é isso mesmo, especialmente no que diz respeito à sua insistência irritante em manter uma pátina de espessa ambiguidade sobre o crime que levou o marido de Hannah para trás das grades e a tornou numa pária aos olhos do filho, da comunidade e de uma mãe que grita fora de cena que ela devia ter vergonha. Aos poucos, vamos tendo sugestões de algo, mas o arco de revelação é teimosamente deixado incompleto. O pior é que tal mecanismo, ao contrário do silêncio inorganicamente imposto sobre a existência da protagonista, nunca deixa de parecer um gesto maniento do cineasta sem grande justificação dramatúrgica.

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O ritmo glacial de “Hannah”, acompanhado dos seus clichés e do tom de alienada frieza que engloba toda a sua história humana poderia facilmente resultar em desastre, mas, como já muito dissemos, há que se ter em conta Charlotte Rampling. Ela é magistral e eleva todo o filme a patamares de minuciosa observação humana que transcendem o virtuosismo prosaico de Pallaoro, sendo a sua vitória no Festival de Veneza do ano passado amplamente merecida. Com Rampling, “Hannah” torna-se num acutilante estudo de uma mulher no limbo do desespero, paralisada na resignada inação e perdida em carruagens de metro onde, por instantes, a sua solidão não salta à vista e onde também ela se torna observadora de outras realidades humanas. Nesse não lugar de transição, ela encontra apatia e calma, um oásis no meio do sofrimento deste sôfrego retrato cinematográfico.

 

Hannah, em análise
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Movie title: Hannah

Date published: 8 de April de 2018

Director(s): Andrea Pallaoro

Actor(s): Charlotte Rampling, André Wilms, Simon Bisschop, Stéphanie Van Vyve, Jessica Fanhan, Fatou Traoré, Gaspard Savini

Genre: Drama, 2017, 95 min

  • Cláudio Alves - 75
  • José Vieira Mendes - 70
73

CONCLUSÃO

“Hannah” é um retrato de personagem afogado em culpa e solitude, que é abençoado por uma prestação avassaladora da magnífica Charlotte Rampling e um belo trabalho de fotografia assinado por Chayse Irvin.

O MELHOR: A gloriosa Rampling.

O PIOR: A ambiguidade forçada do argumento.

CA

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