14º IndieLisboa | Hermia & Helena , em análise

Em Hermia & Helena, o cineasta argentino Matias Piñeiro explora uma narrativa da sua vida pessoal através de ideias encontradas numa das comédias mais famosas de William Shakespeare.

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Nos últimos anos, o realizador argentino Matias Piñeiro tem vindo a esculpir para si mesmo um lugar seguro no circuito dos festivais através de uma série de explorações cinematográficas acerca das heroínas das comédias de William Shakespeare. Nem Rosalinda, Viola ou La princesa de Francia são bem adaptações ou análises críticas do trabalho do bardo, mas sim ecos de alguns dos seus principais temas através de um relaxado e simples estilo que recorda o trabalho de mestres franceses como Rohmer ou Rivette. O mais recente projeto desta série, Hermia & Helena, segue o mesmo modelo que os seus antecessores, inspirando-se em Sonho de Uma Noite de Verão.

Apesar desta continuidade estilística e temática, Hermia & Helena representa uma série de estreias na carreira do cineasta. Para começar, é o seu filme mais comprido até agora com 87 minutos, também se trata da sua primeira obra filmada fora da Argentina, assim como da sua primeira obra parcialmente falada em Inglês. Não que qualquer desses marcos seja indicador de um realizador a corajosamente expandir o seu estilo a vastos horizontes inexplorados. Aliás, como fez anteriormente, o cineasta foi buscar muita da premissa narrativa à sua própria vida. Inspirou-se nas experiências que teve ao traduzir obras de Shakespeare para Castelhano,  enquanto estava nos EUA graças a um programa de bolsas e trabalhava como um professor de línguas para se sustentar.

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Essa situação é refletida na vida da protagonista do filme, Camila, uma encenadora argentina que vai passar uns meses a Nova Iorque, onde tenta traduzir a comédia em que o filme foi buscar seu título e temas, depois de ser aceite por um programa de bolsas de um indefinido Instituto. O filme, contudo, não se inicia com Camila, mas com a sua amiga Carmen durante os últimos dias dela em Nova Iorque, no mesmo programa. Esse pormenor é vagamente importante, pois, aquando da sua chegada ao território estrangeiro, vamos vendo Camila assumir papéis sociais que Carmen deixou para trás. Também assistimos a uma série de encontros e relacionamentos afetuosos entre a tradutora e uma série de outras personagens, uma ex-bolseira do mesmo programa que pensava ir encontrar-se com Carmen em Nova Iorque, um ex-namorado cineasta chamado Gregg, um novo amante que trata do acolhimento dos jovens envolvidos no programa, e, finalmente, o seu pai americano que Camila nunca conheceu devido a uma complicada história familiar.

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Resumidamente, esse é o enredo de Hermia & Helena, ou, pelo menos, os acontecimentos principais da sua narrativa. É claro que, como já se havia verificado nos trabalhos anteriores de Matias Piñeiro, narrativa é algo com muito pouco peso no seu cinema. Mais especificamente, este é um filme sobre palavras e estrutura, sobre texto e ritmo. Tal afirmação não impede que o projeto tenha outros elementos de importância. O uso de objetos e sua relação com as pessoas que os usam, dão e recebem, por exemplo, é particularmente interessante e reminiscente de Ozu, cuja grande musa Setsuko Hara teve o filme dedicado à sua memória.

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O domínio da palavra e da estrutura é, contudo, implacável, afetando mesmo o trabalho dos atores, cuja falta de inflexão emocional é compensada pelos jogos de ritmo, entre castelhano e inglês, que separam o filme em diferentes tempos de idioma e pensamento. É evidente também na estratificação cronológica do argumento que rapidamente inicia um jogo de recorrentes flashbacks que voltam sempre à mesma imagem de Camila com o seu namorado argentino, durante os seus últimos dias antes da partida para Nova Iorque, e subsequentemente examinam a sua relação com as várias pessoas descritas acima, no sumário do enredo. Tal mecanismo suscita uma interessante ruminação intelectual que nos vai proporcionando novas perspetivas sobre a personagem central e seus relacionamentos, à medida que novas informações se vão acumulando na mente do espetador.

Essas considerações também nos acabam por levantar uma questão importante. Afinal, o que é que tudo isto tem que ver com Sonho de Uma Noite de Verão? Pelo menos numa das cenas do jogo de flashbacks, o filme faz declarada referência a um dos momentos centrais do texto Shakespereano, quando o feitiço de amor que sobre os quatro protagonistas estava imposto se levanta e eles acordam do seu sonho de efémeros afetos magicados pelo erro de Puck. Esse acordar, esse momento de transição em que a fragilidade das relações afetuosas que nos unem uns aos outros é revelada, assume-se como uma espécie de centro concetual dentro de Hermia & Helena. Poderíamos até ver uma representação formal desse mesmo acordar nos jogos de dissolves cruzados que marcam o início de cada um dos novos capítulos da história.

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Para além do mais, tal como as tropelias de Puck obrigam as duas heroínas da peça a efetivamente trocarem de amantes, também Camila e Carmen trocam de papéis no início do filme. A personalidade de Camila chega mesmo a sofrer o que parecem ser sucessivas transformações que a adaptam aos vários papéis sociais que ela assume em Nova Iorque. Para além do mais, há algo quase irracional no modo como a protagonista passivamente se entrega a esses papéis pré-existentes, o que não é tornado mais claro pelo modo como Piñeiro tende a ocultar-nos o desenvolvimento dos seus frágeis relacionamentos. Esses dois aspetos, quando unidos, oferecem-nos uma visão da jovem como uma transeunte solitária, cujas ligações interpessoais não são mais que o fruto de uma performance completada por conspícuas escolhas linguísticas e adaptações gestuais.

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O único dos seus relacionamentos que difere dessa fórmula é aquele que encerra a sua história. Referimo-nos ao seu encontro com o pai biológico, cujo contacto com a mãe, já falecida, se resumiu a um breve caso amoroso na Austrália e um telefonema a seguir ao nascimento de Camila. Em termos de carga dramática e emocional, esta é a mais potente tradução dos temas de efemeridade afetuosa levantados pela referência Shakespereana, de tal modo que a sua presença perto do final de Hermia & Helena se revela como um curioso problema, pois demonstra quão vácuos os episódios anteriores realmente foram.

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Seguindo essa mesma linha de pensamento, há que dizer como Piñeiro bem podia ter deixado um dos flashbacks fora do filme. Na sua forma final, Hermia & Helena pode ter somente 87 minutos, mas parece demasiado comprido e repetitivo para as ideias que está a apresentar. A sua geral leveza tonal impede o projeto de ser um enfadonho jogo de ruminação intelectual esvaziada de prazer, mas não invalida que o espetador se possa sentir genuinamente cansado e até aborrecido com o filme. Para além disso, uma irritante banda-sonora que deve muito a Woody Allen também detrai algum valor ao projeto, não deixando Hermia & Helena de ser uma obra interessante e apropriadamente modesta que, contudo, não será certamente um dos pontos altos desta edição do IndieLisboa.

 

Hermia & Helena, em análise
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Movie title: Hermia & Helena

Date published: 4 de May de 2017

Director(s): Matias Piñeiro

Actor(s): Agustina Muñoz, María Villar, Mati Diop, Dan Sallitt, Keith Poulson

Genre: Drama, Comédia, 2016, 87 min

  • Cláudio Alves - 70
  • José Vieira Mendes - 70
70

CONCLUSÃO

Com a sua casual leveza tonal e relativa densidade de ideias textuais, Hermia & Helena revela-se como um bom aperitivo cinematográfico. Como prato principal, contudo, o filme de Matias Piñeiro deixa algo a desejar, sendo um pouco insubstancial e repetitivo.

O MELHOR: O engenho estrutural do filme, mas, mais especificamente, as novas ideias formais que este traz ao repertório estilístico de Piñeiro, incluindo os dissolves cruzados e prolongados ao ponto de abstração estética que já mencionámos, assim como o uso de texto sobreposto sobre a imagem.

O PIOR: A qualidade repetitiva e cansativa do exercício, que revela quão inconclusivos ou subdesenvolvidas muitas das ideias e argumentos do cineasta acabam por ser.

CA

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