20º Queer Lisboa | Jason and Shirley, em análise

Com ousadia, loucura e ódio no coração, o cineasta Stephen Winter revisita, em Jason and Shirley, um dos mais importantes documentários americanos já feitos, Portrait of Jason de Shirley Clarke.

Jason and Shirley queer lisboa

Portrait of Jason, o documentário que a cineasta Shirley Clarke filmou em 1966 durante um dia no Chelsey Hotel é um dos mais incontornáveis e importantes títulos no cânone do cinema norte-americano. Foi um filme de estreias em termos de representação, com um prostituto afro-americano e homossexual como objeto de estudo e protagonista solo do projeto. Este retrato de Jason Holliday é um marco, cujo legado é difícil de completamente processar, mas que não deixa, por isso, de ser um objeto de muita controvérsia. Logo aquando de uma estreia privada feita para amigos e colegas de Clarke que foram expostas algumas questões de exploração e abuso que levaram a cineasta a reeditar o seu filme.

O resultado final foi uma obra-prima do cinema enquanto retrato e autorretrato, tanto de Jason como da sua realizadora. O protagonista em frente à câmara desdobra-se em descrições idealizadas e dramatizadas da sua vida, misturando ficção com verdade até ser clinicamente dissecado por uma série de perguntas e acusações que são difíceis de ouvir ainda hoje. Por outro lado, Clarke mostrou-se percetiva o suficiente da sua própria atitude e abordagem. Segundo ela, no processo de editar o filme ela ganhou uma nova paixão e afeição por Jason e isso transpira no resultado final que, assim, torna-se tanto numa dissecação como numa carta de admiração a Jason, assim como um retrato irónico e sagaz do próprio privilégio de uma realizadora branca e de origens endinheiradas. Como tal, mesmo na sua exploração amarga, o filme revela-se como uma preciosa obra de humanismo cinemático, pronto a expor as feias complexidades que estão subjacentes à sua própria criação.

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Tudo isto para dizer que, no seu âmago, Jason and  Shirley é uma redundância da mais monstruosa magnitude. O realizador Stephen Winter, que há anos nutria um especial ódio misturado com fascínio pelo filme de Clarke, propôs-se aqui a retratar as mais de 10 horas de filmagens omitidas do corte final de Portrait of Jason, assim como todo o processo levado a cabo nesse dia para conseguir o visceral e revelador resultado que vemos no documentário original. Só que os métodos de Winter são bastante pouco ortodoxos e violam qualquer princípio ético que se poderia imaginar. Ele não fez pesquisa nenhuma, depois de ter a ideia para o filme não voltou a rever o filme original e, juntamente com o artista visual Jack Waters e a escritora Sarah Schulman, escreveu e improvisou uma narrativa imaginária onde o abuso de Jason é exposto a nu em toda a sua caricaturesca monstruosidade.

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Não pensem que o uso de “monstruosidade” é uma hipérbole, pois Clarke é transformada numa autêntica víbora em forma humana por este filme, sendo que Winters até aponta para a sua legitimidade como cineasta e acusa-a de omitir o trabalho de realizador de Carl Lee, seu namorado e estrela da Broadway na altura. Todo o projeto é pintado com uma mão profundamente infetada pela misoginia e anti-humanismo, de tal modo que nem Jason se safa de ser uma caricatura odiosa.

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Nas mãos de Jack Waters, pois os coargumentistas são os protagonistas, toda a nuance foi esvaziada da figura de Holliday e o que era subtexto na entrevista original torna-se grotesco explícito. O trabalho de ator é tão extremo que se torna admirável pela sua impetuosidade, especialmente quando o filme começa a apresentar fantasias de Jason e ele se transforma numa autêntica gárgula de miserabilismo patético. Longe de ser uma defesa da imagem cinemática de Jason Holliday, todo este trabalho é uma desumanização escabrosa.

Seguindo o exemplo das prestações principais, ora grosseiramente impávidas, no caso de Schulman, ou explosivamente exageradas, no caso de Waters, toda a estética do filme é de uma feiura que não pode ser acidental. Quer dizer, talvez seja. Afinal, em entrevistas recentes, Winter defende o filme como uma tentativa de capturar a perspetiva subjetiva de Jason, sendo que a perspetiva de Clarke já existe em Portrait of Jason. O resultado disto é uma confusão sem nexo de filmagens em VHS cruas e estragadas, uma montagem que parece ter sido feita quando o editor estava drogado, e uma injeção de esporádicas mudanças de registo que sugerem esquizofrenia cinematográfica. O filme é tão feio, a sua premissa é tão amoral e cheia de ódio, sua execução e defesa tão presunçosas e pretensiosas que, de um modo surpreendente e improvável, o filme transcende a incompetência e afirma-se como uma obra-prima de trash cinema.

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Jason and Shirley é um ato do mais puro sacrilégio cinematográfico, uma imperdoável profanação tão mal feita que se torna admirável por isso mesmo. Quando o rei do mau gosto John Waters faz obras de trash, sabemos que o faz com toda a intenção de elas serão assim apreciadas, mas o máximo prazer de testemunhar esta catástrofe é exatamente a contrariedade nas intenções dos seus cineastas. Se Clarke acabou por, deliberadamente, fazer um duplo retrato em Portrait of Jason, Winter, Waters e Schulman caíram no estranho predicamento de tentarem vilificar os cineastas do passado (repare-se que apenas as pessoas que já morreram têm o seu nome real aqui proferido) acabaram por fazer um grotesco retrato da sua própria miopia e amoralidade, assim como um glorioso anti documentário com grande valor de entretenimento.

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Apesar de ser a convenções dar estrelas aos filmes aqui analisados, Jason and Shirley é um projeto que desafia tais classificações., sendo que, como arte audiovisual narrativa e documental, o seu valor é mínimo, mas como uma peça de trash, é imperdível. Como tal, apesar da má cotação, este é um filme vivamente recomendado, especialmente para quem tiver feito umas horas de pesquisa, tenha algum interesse no cinema LGBT ou na oeuvre de Clarke. Ver os erros factuais encadearem-se uns atrás dos outros é mais hilariante que qualquer comédia de Verão e a final afirmação de Winter, que Portrait of Jason é o único filme com um homem afro-americano homossexual como protagonista, é de particular gozo e hilariante falsidade.

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O MELHOR: A prestação de Jack Waters, que engloba a trashiness do filme em todo o seu mais prazeroso extremo.

O PIOR: O ódio que transparece em cada frame. Para além disso, há que apontar como o modo com que os cineastas apresentam seus sentimentos e imaginação como dados factuais e reflexão fundada está perigosamente próximo de algumas das mais hediondas retóricas políticas da atualidade, onde a factofobia está em voga.


 

Título Original: Jason and Shirley
Realizador:  Stephen Winter
Elenco:
Jack Waters, Sarah Schulman,  Eamon Fahey, Orran Farmer, Bryan Webster
Queer Lisboa | Drama, Comédia, Biografia | 2015 | 79 min

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