20º Queer Lisboa | Kater, em análise

Em Kater, o realizador austríaco Klaus Händl concebe um imprevisível retrato da vida de um casal de dois homens apaixonados pela música e pelo seu adorável gato.

kater tomcat queer lisboa

Por vezes, um cinéfilo tem a sorte de ver um filme sem ter ouvido nada sobre ele antes de entrar na sala de cinema. Quer dizer. Talvez saiba o seu título ou o tema, mas mais nada, e então, durante o seu visionamento, a obra em questão surpreende, choca e sofre reviravoltas impensáveis. Tudo isto para dizer que, o melhor modo de ver Kater, o novo filme do austríaco Klaus Händl, é imerso na abjeta ignorância sobre o filme em questão. Por outras palavras, não leiam sinopses, não vejam trailers e, por tudo o que é mais sagrado, não leiam críticas, incluindo esta onde, apesar de tudo, tentaremos manter-nos relativamente afastados de spoilers demasiado reveladores. Mesmo assim, ficam já avisados.

Agora que já foram afugentados os leitores mais sensatos (aqueles que não viram o filme é claro), passemos a uma explicação mais concreta do que é esta obra. No seu início, Kater assemelha-se a tantos outros filmes europeus sobre o ambiente doméstico. Em planos médios e close-ups com câmara ao ombro e uma luz suave e atraente, Händl vai registando o dia-a-dia de um casal de dois homens nos arredores de Viena. Ambos trabalham para uma orquestra local, Stefan como músico e Andreas na produção. Como consequência a sua vida é consumida pela música, sendo que até o seu círculo social é composto maioritariamente pelos seus colegas de trabalho.

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Esta primeira metade do filme pode ser semelhante a muitos outros filmes, mas há que se louvar a gentil observação que o filme nos oferece. Há algo de casual e quase sensual no conforto que trespassa as imagens, ricas em nudez descontraída quando o casal está sozinho, toques carinhosos, pormenores anódinos de uma vida partilhada e, é claro, muitos momentos em que o filme se deixa ficar a observar o adorável gato, chamado Moisés, que dá o nome ao filme. Não há conflito nestas vidas que possa mitigar a luminosidade da sua felicidade e, apenas vemos alguma perturbação no seu equilíbrio quando, depois de uma festa, o casal se deixa observar por um amigo enquanto têm relações no sofá. Mas, longe de moralismos, nem mesmo aqui a câmara se atreve a julgar os seus protagonistas, apenas registando o seu prazer e atrevido contentamento.

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Mas, como a nossa introdução sugeriu, esta serenidade não está para durar sem percalços. Se há alguma pista para o horror que vai ocorrer a meio do filme, então é a sua nacionalidade austríaca, pois, afinal, este é o país de Haneke, Seidl, Hausner, Fiala e Franz. Se há uma obsessão comum que unifica grande parte da produção cinematográfica desse país germânico é a contemplação da capacidade humana para o mal. Podemos encontrar razões para tal na sua história atribulada, mas o facto mantém-se que, de todos os cinemas europeus, o austríaco tende a ser o mais sádico e punitivo, tanto para as suas personagens como para a sua audiência.

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Tudo isto é uma forma de fazer a introdução ao momento que descarrila pacífica existência deste casal e seu animal doméstico. Num rasgo de incompreensível violência sem qualquer aviso ou motivação aparente, Stefan faz algo imperdoável e desumanamente cruel que nem mesmo ele percebe. De uma doce cena de pequeno-almoço lânguido partilhado entre amantes o filme paralisa, o som parece suster a respiração, a câmara fica perdida na confusão e o espetador boquiaberto, sem saber o que dizer, fazer ou pensar. Nesse sentido, estamos no mesmo estado mental das personagens cuja dor é tão petrificante como a sua incompreensão do que sucedeu. Não queremos dar mais pistas, mas escusado será dizer que, para quem goste de gatos, este filme é uma facada no coração das quais é difícil recuperar sem represálias traumáticas.

Depois de esse horror acontecer, tudo tem de ser reapreciado, todas as certezas que o casal tinha desparecem, todo o seu mundo se desmorona e o que anteriormente era inofensivo ou atraente torna-se ameaçador e perverso. A câmara, tão móvel e centrada, começa a afastar-se dos atores, ou a capturá-los em grandes enquadramentos desequilibrados, cheios de espaços vazios e a face dos intérpretes mal iluminada. O ato de cozinhar passa a ser o possível prelúdio a algo mais macabro e o corpo nu passa de ser uma imagem de erotismo descontraído a uma potente arma de agressão passivo-agressiva, estando a musculatura masculina agoira despida do seu potencial sexual, mas manchada com a sua capacidade para terrível violência.

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Tal como no melhor do cinema de terror, Kater estabelece uma calma absoluta, uma ideia de normalidade, e depois viola-a de modo tão grosseiro e explosivo que tudo se converte num palco para mais trauma. A tensão vai crescendo em intervalos ritmados, como numa composição musical metódica, mas há sempre a contracorrente de outra melodia, uma abstrata e imprevisível que é duplamente assustadora. Afinal, por que é que perturba mais o ser humana que a incompreensão do mundo em que vive e de si mesmo? Se Andreas olha para o homem com quem partilha a vida e nele vê um estranho, Stefan olha-se ao espalho e não reconhece aí o homem que foi capaz de cometer a atrocidade que fratura tanto o filme em termos estruturais e temáticos como o próprio casal.

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Num golpe de maligno génio mesmo à cineasta austríaco, Händl pontua a segunda metade do seu filme com outras cenas de desconcertante imprevisibilidade e violência, propondo quase que a ameaça primordial da morte como a única maneira de resolver o medo do desconhecido que consome o casal. Muitos críticos e espetadores têm apontado o dedo a Kater e proclamado a sua narrativa antidramática e lentidão como problemas terríveis, mas, na verdade, esses aspetos fazem parte do charme diabólico do filme, onde são reproduzidos os tédios da vida, seus tempos mortos e suas imprevisibilidades incompreensíveis. Pelas mãos da precisa mise-en-scène de Händl e de duas fabulosas prestações de Lukas Turtur e Philipp Hochmair, esta obra firma-se assim como uma das experiências mais viscerais e perturbadoras a ser exibida recentemente nos cinemas, um mérito que para alguns será uma prova da sua falta de valor mas que, para outros, é uma marca da sua excelência cinematográfica.

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O MELHOR: A visceralidade de Kater e o modo como a proposta narrativa nos força a pensar na nossa própria capacidade para o mal, para a violência e para a atordoada incompreensão quando confrontados com um rasgo de horror como o que estilhaça a harmonia de Stefan e Andreas.

O PIOR: A repetição de cânones do cinema realista europeu já habitual dos festivais é um bom método para embalar a audiência num sentido de falsa segurança, mas não deixa de ser uma escolha irritantemente desinspirada e formulaica.


 

Título Original: Kater
Realizador:  Klaus Händl
Elenco:
 Lukas Turtur, Philipp Hochmair, Thomas Stipsits, Manuel Rubey
Queer Lisboa | Drama | 2016 | 114 min

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