Madame Hyde Isabelle Huppert

Madame Hyde, em análise

No Festival de Locarno do ano passado, Isabelle Huppert ganhou o prémio de Melhor Atriz pela comédia vagamente surreal, negra e muito seca – “Madame Hyde”.

Um espectador familiar com a filmografia de Isabelle Huppert e sua vasta coleção de interpretações tão ousadas como abrasivas certamente ficará certamente com altas expetativas face à proposta da atriz interpretar uma versão contemporânea de Dr. Jekyll e Mr. Hyde. Afinal, é fácil imaginar que píncaros de cáustica acidez a atriz poderia trazer a uma manifestação de todos os lados mais vis e animalescos do id humano. Tal sugestão de grandeza é feita pela premissa básica de “Madame Hyde”, mas, infelizmente, o filme de Serge Bozon não cumpre tais promessas, focando quase todo o projeto na versão benigna e inepta da personagem principal e optando por um bizarro registo de humor tão negro como apático.

Enfim, o filme pode não dar a Isabelle Huppert a oportunidade de fincar os dentes em todo o potencial dramático existente no livro de Robert Louis Stevenson, mas a atriz não deixa que isso induza em si um esforço medíocre. Aqui, Huppert interpreta Marie Géquil uma professora de Ciências numa escola secundária onde ninguém a parece respeitar, nem mesmo os seus colegas docentes. Durante as suas aulas a uma turma de ensino especial, a falta de respeito generalizado para com a professora é particularmente notória, mas também é difícil ignorar quão incapaz ela é de motivar ou disciplinar os seus estudantes, não obstante as suas muitas boas intenções.

madame hyde critica
“Demasiada Géquil e muito pouca Madame Hyde.”

Em casa, um marido doméstico e paternalista nada faz para lhe aumentar a confiança, parecendo mesmo contribuir para a ansiedade social e incompetência pedagógica da professora. De facto, só mesmo um milagre parece ser capaz de lhe mudar a atitude e essa maravilha ocorre quando um raio atinge o contentor no pátio da escola que Marie usa como laboratório. A princípio, nada parece mudar, mas lentamente o filme revela como a professora se vai transformando e com ela a prestação de Huppert. A atriz começa o filme num exercício de anulação do seu próprio carisma e presença em cena, pintando a pequenez da sua personagem com pinceladas gordas e forçosas, mas a sua evolução a seguir ao acidente é algo mais reticente e subtil, quase minimalista.

Algumas das mudanças em Marie são benignas e permitem então à atriz começar a florescer diante dos nossos olhos, como é o caso da sua crescente coragem e autoconfiança na sala de aula, assim como os seus níveis crescentes de energia e sobre-humana subida de temperatura corporal. Contudo, à noite, Marie parece ser regularmente afetada por crises de sonambulismo, durante as quais o seu corpo brilha como uma explosão radioativa e ela se revela capaz de incinerar cães e humanos cuja presença lhe desagradam. Nesses momentos, Bozon dirige Huppert no sentido de a tornar numa presença inumana, quase abstrata na sua motivação, gesto e inexpressão.

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Esse é um dos grandes problemas do filme, essa indefinição deliberada da presença titular, a Madame Hyde. Na sua forma final, o projeto parece somente um rascunho, quer seja na sua caracterização principal, quer seja na exploração dos seus temas. Veja-se, por exemplo, o modo como “Madame Hyde” pinta um retrato jocosamente desesperante do estado atual da educação em França, expondo um ambiente sufocado por burocracias e regras estúpidas, onde os professores parecem condenados ora a se conformarem à ineficácia ou se debaterem continuamente com obstáculos institucionais. Os mais afetados são os alunos, especialmente aqueles de bairros sociais e de minorias étnicas que são quase automaticamente postos no ensino especial e segregados do resto do habitat pedagógico. Em certos momentos, a clara indignação de Bozon ganha forma em astutas facadas, mas, na generalidade, há uma displicência com a estrutura da crítica que lhe tira poder.

A vida de Marie enquanto professora do ensino secundário é, por exemplo, incrivelmente fantasiosa, mesmo antes do elemento sobrenatural se imiscuir na sua existência. Ela parece só ter uma turma numa escola com recursos limitados e consegue ganhar o suficiente para se sustentar a si e ao marido sem nunca haver qualquer problema financeiro. A escola, tantas vezes descrita como uma instituição cheia de limites e problemas, tem a capacidade para ter um sofisticado laboratório para uso pessoal da sua docente menos competente e popular. Os alunos, tirando as únicas raparigas da turma de Marie, são de um nível de interesse e inteligência que varia consoante o ponto que Bozon quer fazer na cena, sendo mais adereços que caracterizações completas.

madame hyde critica
“(…)pinta um retrato jocosamente desesperante do estado atual da educação em França(…)”

Como dissemos antes, o filme usa e abusa de um registo de humor apático e muito antinaturalista, mas há limites assim como uma grande diferença entre a estilização cómica e a insubstancialidade de texto e forma. Prova disso mesmo é o elenco secundário do filme, cujas abordagens oscilam entre caricatura como o marido ou sinceridade total, como é o caso de Malik, o mais rebelde aluno de Marie cuja redenção, se torna no principal objetivo da protagonista. Somente a figura do diretor da escola que não se interessa minimamente pelo bem dos seus alunos parece coerente com a mise-en-scène rigidamente cómica e com os temas de crítica social do filme, mas isso, longe de parecer um triunfo de Bozon, é mais um testamento ao talento de Romain Duris no papel mais hilariante da obra.

No final, “Madame Hyde” não é um filme sem valor ou ambição. A conceção visual de Bozon pode ser rígida e incoerente com os seus temas mais virados para o realismo social, mas reflete uma admirável curadoria formal, especialmente no uso dos figurinos enquanto pinceladas de cor berrante. O trabalho de Huppert, mesmo que limitado pelo guião e as escolhas de Bozon é fascinante e o seu grande monólogo perto do fim é uma gloriosa mostra dos talentos cómicos da atriz e da sua capacidade para usar o seu corpo com a mesma expressividade dos grandes comediantes do cinema mudo. Duris é simplesmente soberbo e até as observações do filme sobre a sociedade francesa têm valor, mesmo que não estejam muito bem articuladas. Ao contrário das experiências laboratoriais da sua protagonista “Madame Hyde” nunca é um sucesso total, mas os resultados fracassados não deixam por isso de ter o seu relativo interesse.

 

Madame Hyde, em análise
Madame Hyde

Movie title: Madame Hyde

Date published: 4 de June de 2018

Director(s): Serge Bozon

Actor(s): Isabelle Huppert, Romain Duris, José Garcia, Adda Senani, Guillaume Verdier, Patricia Barzyk, Pierre Léon, Roxane Arnal, Angèle Metzger

Genre: Drama, Comédia, 2017, 95 min

  • Cláudio Alves - 60
  • José Vieira Mendes - 60
60

CONCLUSÃO

Em “Madame Hyde”, Isabelle Huppert oferece uma grande anomalia na sua filmografia – a performance de uma mulher fraca e inapta. No entanto, o espetáculo de tal desempenho é limitado pelas escolhas textuais e formais de um realizador a tentar fazer uma farsa satírica sem piada ou grande poder crítico.

O MELHOR: Num papel secundário, Romain Duris brilha muito mais que a própria Huppert nos seus devaneios noturnos com consequências incendiárias.

O PIOR: Demasiada Géquil e muito pouca Madame Hyde.

CA

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