Mitski, Be the Cowboy | em análise

Em Be the Cowboy, Mistki cria um retrato cinemático da aspiração a um outro, presente em tudo, e da solidão que a sua ausência deixa, não interessa se acontecida ou só adiada.

Mitski é tudo menos uma recém-chegada. Desde a divulgação dos seus singles, particularmente “Nobody”, que o mundo tem fervilhado à espera e à volta de Be the Cowboy. Mas longe de constituir uma estreia, este é já o quinto longa-duração de Mitski Miyawaki, americana de ascendência japonesa e vida cosmopolita, e o terceiro álbum seu a ser destacado pela crítica internacional. Ainda assim, pode-se dizer que Be the Cowboy é o culminar de um percurso, com Miski a dar a volta toda, regressando à casa de partida só para ocupar o terraço do último andar, onde o mundo se lhe oferece inteiro, a perder de vista.

Os dois primeiros discos manifestam, sem qualquer filtro, a formação de Mitski em composição musical, na Hunter e na SUNY Purchase, em Nova Iorque. Pouco acessíveis na sua sonoridade clássica experimental, de vanguarda, vê-se neles já, contudo, uma capacidade incomum de fundir e variar insensivelmente entre géneros distintos, pertencentes tanto ao universo da música erudita como da música pop e do mundo. Em Bury Me at Makeout Creek (2014) e Puberty 2 (2016) assistimos a uma viragem de direcção. Mitski abandona o piano e o violino, com os quais criava atmosferas minimalistas e dissonantes para o seu canto vagaroso e contorcido. Uma insuspeitada alma punk emerge, não se percebe bem donde, e Mitski canta, entre a melodia vocal pastilha-de-elástico e os gritos de guitarra eléctrica distorcida, que “I’m not gonna be what my dad wants me to be”. As melodias tornam-se cantáveis, ora enérgicas, ora melancólicas, e, desde o pop-punk, hardcore e grunge até ao country e à folk electrónica, a cantautora explora um novo caminho, criando canções que a popularizaram entre o público indie e até geral.

BE THE COWBOY | “GEYSER”

Em Be the Cowboy, Mitski pousa a guitarra e rodeia-se de piano e teclados, para escapar à tentação de se repetir e à tentativa dos fãs de a rotularem. O que poderia ser um retrocesso à sonoridade avant-garde dos primeiros longa-durações é na verdade um regresso em espiral. Há uma teatralidade nova, trazida pela emotividade e pelas melodias pop características dos álbuns mais recentes, a presença de música disco, a alusão a musicais e a construção de uma personagem na qual nos reconhecemos e com a qual empatizamos. Ainda assim, Mitski recupera em Be the Cowboy um nível de sofisticação que existia no início da sua carreira mas numa forma ainda demasiado rebuscada e artificial para cativar a sua audiência. Este reemerge agora plasmado pela aventura pop dos dois penúltimos discos, gerando uma sonoridade igualmente imediata mas mais contida, subtil e adequada aos temas maduros tratados neste álbum. Em vez dos problemas que acompanham o processo de crescimento e ocupavam os dois registos anteriores, é a aspiração a um outro que seja a realização de si e a sombra contínua da solidão que estão agora no centro da música de Mitski.

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Quem ou o que esteja no lugar desta alteridade não deve ser identificado, de forma simplista, como um interesse romântico. A propósito de “Geyser”, Mitski diz que, quando canta “you’re the one that I want”, não se refere a uma pessoa mas à música, pela qual está disposta a sacrificar tudo. Mas é verdade que a sua dificuldade em criar relações, originada por uma infância e juventude itinerantes, sem tempo nem razões para criar laços duradouros, perpassa todas as canções de Be the Cowboy. Em jogo está a necessidade, mas também o desejo nostálgico e invasivo de aprender a deixar entrar alguém na própria existência. Não por acaso o disco foi composto enquanto Mitski estava em digressão, durante os intervalos entre concertos, absorvendo a solidão desta vida nómada. O tempo entre a gravação de uma canção e outra dava-lhe também a ocasião de remoer o que fizera e pensar que poderia ter feito melhor, o que introduz uma tensão sensível em todo o álbum.

BE THE COWBOY | “NOBODY”

No centro da narrativa de Be the Cowboy está uma figura de mulher inspirada pela personagem de Isabelle Huppert em La Pianiste (2001), de Michael Haneke, e que recupera outras imagens femininas igualmente passionais, como Madame Bovary ou Catherine de Wuthering Heights. Mitski reconfigura-as, pondo no mundo uma nova e original versão desta mistura de força e vulnerabilidade, sempre maior do que a vida. O ímpeto para que aponta a imagem do géiser faz desta mulher um puro desejo de oferta de si, que ninguém parece querer receber: “I gave too much of my heart tonight”. Mas também uma vontade de abraçar o cosmos: “I need something bigger than the sky/ Hold it in my arms and know it’s mine/ Just how many stars will I need to hang around me/ to finally call it heaven?” Ainda assim, é uma força que acusa continuamente a sua fragilidade e solidão: “I’ve been big and small/ and still nobody wants me”.

Esta convivência paradoxal da aspiração imensa a qualquer coisa que o próprio não se consegue, impotente, dar nem produzir traz consigo a sombra da tragédia. “I know no one will save me”, canta Mitski em sons que parecem saídos do Studio 54, tornando mais atroz ainda, no seu contraste, a sensação de condenação. No entanto, em muitos momentos e sob várias formas, aparecem brechas neste cepticismo, num “géiser” de revolta contra a ausência de esperança. Em “Two Slow Dancers”, a cortina corre sobre o palco e tudo indica que venceram o tempo e a resignação: “It would be a hundred times easier if we were young again/ to think that we could stay the same/ But as it is and it is/ we’re two slow dancers, last ones out.” Não fora pela nostalgia da melodia de piano, que a entrada do violino e dos teclados intensifica. Não fora pela contemplação da hipótese de que “we could stay the same”, mesmo se breve e contrafactual. Não fora pela sua repetição, num crescendo lancinante, até ao desespero da distorção. Como se um sentimento arreigado, por verbalizar, questionasse a teoria irrespirável que cobre de nada o fim da história, “cause I need somebody to remember my name”.

BE THE COWBOY | “TWO SLOW DANCERS”

Be the Cowboy | em análise
Be the Cowboy

Name: Be the Cowboy

Author: Mitski

Genre: Singer-songwriter, Indie rock, Pop experimental

Date published: 17 de August de 2018

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  • Maria Pacheco de Amorim - 87
  • Ru Ribeiro - 85
86

Um resumo

Be the Cowboy é o culminar de um percurso. Partindo das suas origens avant-garde e tendo-se expandido musicalmente em duas pérolas pop que importa conhecer, Mitski regressa aqui às suas origens mais experimentais mas com uma nova maturidade. Capaz de usar e reformular a linguagem popular, Mitski coloca-a ao serviço das emoções subtis e dos sentidos complexos que procura comunicar, alargando assim, com este novo documento, o potencial expressivo da pop. Para ouvir integralmente, em rotação contínua.

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