"A Ganha-Pão" de Nora Twomey | © Outsider

MONSTRA ’18 | A Ganha-Pão, em análise

A Ganha-Pão” foi um dos cinco títulos nomeados para o Óscar de Melhor Filme de Animação do ano passado, sendo também um dos filmes em competição na presente edição da MONSTRA.

a ganha pao the breadwinner

Três longas-metragens estreadas, três triunfos críticos, três obras nomeadas para o Óscar de Melhor Filme de Animação. Há que admitir que, para um estúdio de animação independente, dificilmente haverá maior sucesso que o que acabámos de mencionar e que acontece ser precisamente o historial presente da companhia irlandesa Cartoon Saloon. Inicialmente, os estúdios nasceram em 1999 com um grupo de animadores que se conheciam e decidiram trabalhar juntos. Ao longo de uma década foram fazendo projetos pequenos como curtas-metragens e produções televisivas de baixo orçamento assim como considerável trabalho de ilustração e design gráfico.

Em 2009, precisamente dez anos depois da sua fundação, o Cartoon Saloon estreou a sua primeira longa-metragem, “O Segredo de Kells”. O sucesso e alta reputação crítica foram quase imediatos e o filme acabou por conquistar a já mencionada, mas muito surpreendente, nomeação para o prémio máximo da Academia de Hollywood para filmes animados. Depois desse magnífico conto-de-fadas celta, os animadores do Cartoon Saloon viraram-se novamente para o folclore irlandês e, em 2015, estrearam mais um sucesso crítico nomeado para o Óscar, “A Canção do Mar”. No entanto, para quem pudesse ver aqui uma fórmula inviolável, o terceiro projeto dos estúdios foi uma surpresa, trocando a cultura popular da Irlanda por uma história realista passada no Afeganistão dos anos 90 sob regime talibã.

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Adaptado do livro Deborah Ellis. “A Ganha-Pão” conta a história da jovem Parvana, uma rapariga afegã que ainda não entrou na adolescência, filha de um professor e de uma escritora. Quando o filme começa, encontramos a nossa protagonista juvenil num mercado com o pai que, mostrando-se relativamente liberal, educa a filha e leva-a à rua nos seus afazeres. Nesse dia, contudo, a presença de Parvana e o passado académico de seu pai chamam a atenção de um antigo aluno do patriarca, agora tornado soldado talibã. A liberdade da jovem Parvana é posta em causa e seu pai é, mais tarde, preso por um grupo de homens que inclui o seu antigo pupilo. Sem o patriarca, Parvana, sua mãe, irmã mais velha e irmão bebé veem-se encurralados em casa pois, sem companhia masculina do seu patriarca, as mulheres estão proibidas de sair à rua. Para resolver o problema, Parvana corta o cabelo e finge ser um rapaz, vestindo as roupas que em tempos pertenceram ao seu irmão mais velho, cuja morte assombra o filme mesmo que os detalhes dela permaneçam vagos e indefinidos até ao clímax.

Apesar do que se pode dizer sobre o tema de “A Ganha-Pão”, este é um filme para um público infantil, centrando-se na perspetiva juvenil de Parvana e usando, tal como ela, o esplendor escapista dos conto-de-fadas e histórias fantásticas para lidar com o sofrimento causado por um mundo injusto. Com isso dito, este é também um filme que jamais se mostra condescendente para com o seu público alvo e retrata o medo e sofrimento das suas personagens com admirável candura e franqueza. Numa das cenas mais chocantes do filme, por exemplo, a mãe de Parvana sai de casa com a filha em busca de informações sobre o seu marido e é confrontada por um homem que a espanca no meio da rua.

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A realizadora Nora Twomey não cai na indulgência da violência gráfica e chocante, mas a sua contenção e subtileza não escondem o horror da situação. As nódoas negras que pintam o corpo e face da matriarca durante o resto do filme são um dos detalhes mais assombrosos deste conto, por exemplo. O que faz com que tais marcas sejam ainda mais afetantes é o seu contraste com o design redondo e afável que tem vindo a tornar-se na imagem de marca do Cartoon Saloon, como rasgos de violência adulta a corromperem uma fantasia infantil. Este é um estilo que emula os traços celtas dos contos folclóricos irlandeses que deram fama ao estúdio, mas aqui, com a magia celta a ser substituída por uma visão realista do Afeganistão moderno, a harmonia de “O Segredo de Kells” deu lugar a uma dinâmica de estímulos visuais em oposição.

Dito de modo mais simples, o design das personagens de “A Ganha-Pão” evoca a inocência infantil, mas a sua história e outros detalhes da animação ativamente opõem-se a tal benignidade. As únicas instâncias em que o filme permite a si mesmo cair na beleza fantasiosa típica do estúdio é quando Twomey mergulha os espectadores nas histórias da sua protagonista, dando vida aos contos-de-fadas da jovem através de animação digital que, não copiando nenhum estilo de arte tradicional particularmente afegão, sugere algo antigo e embebido no reconforto ancestral da tradição. Por um lado, a animação super bidimensional executada com a plataforma TVPaint Animation é dramaturgicamente perfeita para a história de “A Ganha-Pão”, mas a intrusão da beleza texturada das histórias de Parvana salienta como, na curta filmografia do Cartoon Saloon, este é filme com animação menos esteticamente interessante ou virtuosa.

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Enfim, o que “A Ganha-Pão” não tem de excelência formal é mais do que compensado pela sua extraordinária história e ainda mais sublime coleção de personagens. Ver este filme como uma boa forma de ensinar a crianças a conturbada história política do Afeganistão é muito ingénuo, mesmo que um prólogo expositivo nos possa dar tal ideia. No entanto, como modo de abrir os olhos à dura realidade da vida sob um regime fundamentalista islâmico, este é um tratado em sublime empatia, carregado com uma dose de maturidade que nunca trai a corrente de inocência juvenil que caracteriza toda a história de Parvana. Vendo tal feito é difícil não entender o sucesso do Cartoon Saloon. Oxalá a sua ousadia, ambição e criatividade se mantenham ao nível deste comovente conto de uma infância cruelmente interrompida.

 

A Ganha-Pão, em análise
a ganha-pao the breadwinner

Movie title: The Breadwinner

Date published: 14 de March de 2018

Director(s): Nora Twomey

Actor(s): Eddie Redmayne, Tom Hiddleston, Maisie Williams, Timothy Spall, Richard Ayoade, Miriam Margolyes, Rob Brydon, Johnny Vegas

Genre: Drama, Família, Animação, 2017, 94 min

  • Cláudio Alves - 85
  • Filipa Machado - 85
85

CONCLUSÃO

Uma comovente canção elegíaca à inocência perdida de uma rapariga afegã, “A Ganha-Pão” é um belíssimo conto familiar sobre resiliência e coragem na presença de um regime monstruosamente misógino e desumano.

O MELHOR: A criação da personagem que é Parvana, desde o seu design apelativo até à sua resiliência monumental face a algum do pior que o nosso mundo tem para atirar a uma jovem rapariga ainda longe da idade adulta.

O PIOR: A montagem no último ato do filme tende a ser um pouco confusa, ou mesmo caótica, na sua tentativa de unir os vários fios narrativos em ação.

CA

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