JUDAICA ’17 | Negação, em análise

Negação é o filme que dá início à JUDAICA – Mostra de Cinema e Cultura, abrindo as portas a um importante e necessário debate sobre o negacionismo do Holocausto.

negação denial judaica

Em 1996, o notório negacionista do Holocausto David Irving processou a Penguin Books e a historiadora do Holocausto Deborah Lipstadt por difamação. No seu livro, Negando o Holocausto, a autora tinha-o caracterizado como um negacionista e perigoso manipulador de factos históricos. Para Irving, essa foi uma acusação absurda e criminosa, especialmente considerando que, segundo ele, tal calamidade nunca aconteceu. O caso foi julgado em Inglaterra, onde as leis implicam que o acusado de difamação tem de provar a veracidade das suas alegações, não havendo presunção de inocência, o que resultou numa prolongada autópsia, tanto dos preconceitos racistas, xenófobos, antissemitas e eugénicos de Irving, a sua tradução e apresentação de factos históricos, assim como numa investigação dos dados que, efetivamente, comprovam a execução em massa de judeus às ordens do Terceiro Reich. Apesar de nenhuns sobreviventes terem sido postos na cadeira das testemunhas, o caso esteve muito perto de se tornar num julgamento do Holocausto em si, possivelmente dando valor e tempo de antena às venenosas ideias do negacionismo. Ao fim de quatro anos, em Abril de 2000, o juiz responsável pelo veredicto divulgou a sua decisão a favor de Lipstadt, o que teve um impacto devastador na carreira de Irving que, em 2006, viria a ser preso na Áustria, um país onde promover publicamente ideias negacionistas constitui um crime com pena de prisão.

Tudo isto, tirando o eventual destino de Irving, é a matéria-prima usada pelo argumentista David Hare e pelo realizador Mick Jackson na criação de Negação, uma dramatização deste caso visto do ponto de vista de Deborah Lipstadt, aqui interpretada por Rachel Weisz. Começando numa palestra da historiadora em 1994 e culminando no dia do veredicto final, este é um filme preocupado em documentar e expor o processo pelo qual Lipstadt e a sua equipa jurídica construíram e defenderam o seu caso, incluindo uma solene visita a Auschwitz e as muitas discussões em que a historiadora se mostrou cética das ideias dos seus advogados e solicitadores que a aconselharam a manter o absoluto silêncio durante os procedimentos.

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Esse silêncio acaba por refletir um dos temas principais do filme que é a necessidade do respeito e dignidade quando se aborda um tema tão pesado e historicamente cáustico como o Holocausto. Para além do mais, na sua apologia do silêncio, temos aqui uma rara argumentação face a este tipo de situação. Segundo as palavras do solicitador Anthony Julius dentro de Negação, responder às palavras contra a existência do Holocausto seria validar a sua mera existência. Na conjetura política atual, em que populismos de extrema-direita e movimentos antissemitas estão a ganhar uma alarmante popularidade por todo o mundo e onde um mentiroso compulsivo se pode intitular Presidente da nação mais poderosa e influente do mundo ocidental, estas ideias de dignidade silenciosa são de uma enorme importância, quer concordemos ou discordemos delas.

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Consequentemente, a cena mais importante de Negação é a conferência de imprensa que Lipstadt dá no seguimento do veredicto final. Aí, ela é confrontada com a noção que a sua vitória pode representar um ataque à liberdade de expressão, uma ideia que ressoa alguma da retórica de Irving e as suas queixas sobre a tirania do politicamente correto. Segundo Lipstadt, a sua vitória é também uma vitória para a liberdade de expressão, pois realça o seu valor ao mesmo tempo que aponta para os seus abusos. Somos habituados a entender que opiniões divergentes não se discutem e que é bom aceitar a discórdia, mas aqui ouvimos algo antagónico a isso. Existem opiniões mais válidas que outras. A opinião que alguém é superior a outro com base na sua cor de pele, por exemplo, ou a negação de um facto histórico como a existência do Holocausto são perigosas falsidades. Defendê-las e mentir sobre outras verdades para as justificar, não é uma inócua expressão pessoal e é importante que os promotores de tais falsidades sofram as adequadas consequências. Afinal, as noções de Irving também são, apesar da sua monstruosidade, politicamente corretas, só que a sua base está numa política fascista propulsionada por ódio.

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Rachel Weisz tem nesta espécie de epílogo expositivo o seu melhor momento, sendo que, durante a maioria de Negação, a atriz anda um pouco perdida num registo de deliberada abrasão silenciosa e uma conflagração de sotaque e maneirismos americanos que parece sempre forçado. O elenco britânico em papéis britânicos é melhor servido pelo filme. Adam Scott é particularmente eficaz como Julius, telegrafando a astúcia estratégica da sua figura sem alguma vez apagar as suas arestas mais aguçadas. Tom Wilkinson, como o advogado principal de Lipstadt, tem direito às cenas mais verbosas do guião e faz maravilhas com elas, como é seu hábito, mas não trai o tom geral do filme mesmo nas suas mais acesas instâncias de pontificação jurídica. Por seu lado, Timothy Spall consome o papel de Irving com a voracidade de um monstro faminto, tornando cada sílaba do seu diálogo, cada segundo das suas reações em oportunidades para sublinhar a viscosidade reptiliana deste homem e sua psique afogada em ideias de superioridade racial e ódio antissemita.

Podemos argumentar que a abordagem vistosa de Spall está em discordância com o material textual e não estaríamos muito longe da verdade, por muito delicioso que seja ver o ator fincar os dentes nesta criatura malévola. É que, apesar das suas muitas mostras de inelegância expositiva e longos discursos desprovidos de qualquer naturalismo dialogal, David Hare construiu em Negação, um argumento seco e sem grandes floreados típicos deste tipo de docudrama verídico. A sua insistência em copiar a transcrição do julgamento como base do diálogo para as cenas em tribunal reflete isso mesmo.

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Tal secura e aspereza germinada da procura por veracidade factual atribuem aos esforços de Hare uma pátina de dignidade intelectual invejável. O mesmo não se pode dizer da abordagem formal de Mick Jackson e da sua equipa criativa que concebem este filme como pouco mais que um especial televisivo. Há uma certa riqueza na reconstrução do passado recente e a banda-sonora de Howard Shore é agradavelmente reminiscente dos dramas de tribunal dos anos 90, mas, de forma geral, a displicência audiovisual em nada contribui para a qualidade do filme. Quando associamos isto há quantidade de desnecessárias histórias secundárias e a obsessão com as diferenças entre os sistemas de justiça americanos e ingleses, os efeitos sobre Negação são nocivos e até tiram algum poder às suas importantes ideias e argumentações.

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No final, como uma obra cinematográfica, como um objeto da sétima arte, Negação tem pouco para oferecer e até sugere uma acentuada mediocridade. No entanto, seria imprudente descartar e denegrir tão rapidamente o filme. Não estamos perante nenhum pequeno milagre de elegância cinematográfica casada a um tema urgente, como O Caso Spotlight, mas sim de um filme que vale quase única e exclusivamente pelo seu conteúdo histórico e ideológico, independentemente da sua infeliz apresentação cinematográfica. Em suma, Negação é um filme importante e necessário como o catalisador para uma importante discussão e possível introdução do público a um notório episódio histórico.

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O MELHOR: As ideias subjacentes a todo o filme e a discussão que pode vir a gerar. Apesar da sua falta de mérito formalista, esta é uma boa escolha para abrir a JUDAICA.

O PIOR: O momento em que Negação abandona a sua reticência e secura estilística para nos trazer flashes do horror das câmaras de gás. Num filme tão preocupado com o respeito que deve ser concedido a este tema, tal mecanismo parece particularmente sensacionalista e ameaça descarrilar a obra ao expor a nu uma profunda incoerência ideológica entre os valores do argumento e os impulsos mais desinspirados do seu realizador.



Título Original:
Denial
Realizador:
Mick Jackson
Elenco:
 Rachel Weisz, Tom Wilkinson, Timothy Spall, Adam Scott, Alex Jennings, Harriet Walter
NOS | Drama, História | 2016 | 109 min

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