Fleet Foxes no Vodafone Paredes de Coura 2018 (foto de Margarida Ribeiro)

Vodafone Paredes de Coura 2018 | o contraluz dos Fleet Foxes

Chegados ao final da noite, é a pessoa de Robin Pecknold que perdura na memória. A música dos Fleet Foxes dominou, num dia já de si cheio de vigor de alma e talento a potes.

É fácil pensarmos na nossa memória a partir da analogia com a memória de um computador e olhar para ela como um depósito de informação, um registo daquelas coisas que vêm com data, hora e lugar. Quando não conseguimos precisar algum destes dados, ou quando até pedaços inteiros de uma história vivida desaparecem, dizemos mesmo, hoje em dia, usando mais uma vez a tal analogia, que os apagámos da memória. Esta é, contudo, uma imagem enganadora, que nos impede de perceber (mais ainda) o seu mistério. Esquecendo que uma máquina não é (pelo menos não para já) uma pessoa, esta analogia não leva em consideração o dado da afeição. A memória não é independente dos interesses ou prioridades e o que retemos não é tanto a informação acerca do que observámos quanto aquilo que o observado provocou em nós: os sentimentos que nos deixou, as coisas novas que descobrimos. Tudo isto acontece num tempo e no espaço, pelo que não faltam dados históricos, mais ou menos fáceis de recuperar numa retrospectiva. Mas a história não é feita de dados, é feita de acontecimentos.

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Não faltaram acontecimentos no segundo dia do Vodafone Paredes de Coura. The Mystery Lights deixaram-nos um mescla de sentimentos. A verificação do som feita pela própria banda alongou-se, o concerto arrancou sem solução de continuidade e cheio de energia psicadélica, com o vocalista pernalta a saltar desmedidamente, mais afinações do equipamento passada a primeira canção, tudo sempre com aquela descontracção que caracteriza o género e agrada ver ou uma despreocupação de profissionalismo que deixa um certo mau sabor. Inegável, ainda assim, a habilidade musical, a sintonia interna da banda e a boa disposição de todo o evento.

The Mystery Lights, Fleet Foxes e outros no Vodafone Paredes de Coura 2018
The Mystery Lights (© Margarida Ribeiro)

Sempre dentro da linha deste rock’n’roll feito de guitarras e corpos desvairados, The Legendary Tigerman deu um espectáculo digno do género, as suas malhas potentes a soar estrondosas e a arrancar movimento da audiência inteira, ele a solar furiosamente a sua guitarra em conjunto ou em chamamento e resposta com o saxofonista e o público e, no fim, o nome “rock’n’roll” em repetição interminável, como grito de guerra onde o mundo (pelo menos o que estava ali no Palco Vodafone) declarava que o género prossegue bem vivo e a Pitchfork pode ir passear com a sua passagem (traiçoeira) para o hip-hop.

The Legendary Tigerman,Fleet Foxes e outros no Vodafone Paredes de Coura 2018
The Legendary Tigerman (© Margarida Ribeiro)

Japanese Breakfast não ficara atrás, com as raízes punk das canções a emergir plenamente na versão ao vivo, mais perceptíveis ali em concerto do que em casa, nos discos. Os temas de Michelle Zauner beneficiaram do corpo que a banda lhes deu, com cada elemento a dar vivacidade e personalidade à respectiva camada da textura, pelo que não pareceu desadequado a cantautora apresentar-se a si e aos que a rodeavam como “Nós somos os Japanese Breakfast”. Se a voz soava mais aguda e estridente do que nas versões de estúdio (o som no Vodafone.Fm deixava um pouco a desejar), perdendo algumas das suas inflexões e matizes de sentido, o espectáculo no seu todo foi mais energético e transparente à herança da década de 90. Não por acaso, Zauner prestou um tributo a Dolores O’Riordan, tocando um cover dos Cranberries, que a audiência aplaudiu e cantou entusiástica. Terminando, com a canção final, numa nota mais sintética e minimalista que assinalava um regresso ao estúdio e à ambiência dos álbuns, mas também ao presente, Zauner deixou-nos com uma mensagem de estima, ao dizer que o Vodafone Paredes de Coura fora o único festival ao qual, nos últimos tempos, lhe dera prazer vir.

Japanese Breakfast, Fleet Foxes e outros no Vodafone Paredes de Coura 2018
Michelle Zauner, dos Japanese Breakfast (© Margarida Ribeiro)

Tudo vinhetas que a memória guarda, passada já a noite. Mais digno de nota ainda, o concerto dos Shame. Foi talvez o grande concerto do segundo dia do Vodafone Paredes de Coura, se por concerto entendermos apenas a dimensão de performance. A nota de à vontade no palco foi dada logo à entrada, com a banda toda, o baixista Josh Finerty particularmente, a dançar ironicamente ao som uma melodia pop, pegando descontraidamente nos instrumentos. Mas o som do primeiro acorde foi arrancado violentamente dos instrumentos e, desde então, tudo foi contorção corporal, transpiração encharcada, T-shirts e melenas de cabelo coladas, teatralidade à Sex Pistols, recomendações moralistas aos seguranças e ao público, referências eruditas (não nos passou despercebido o “That’s entertainment” dos Jam e Gang of Four, atirado no meio da pregação ao público), mergulhos em série do vocalista, a surfar na multidão, enquanto continuava a cantar (se é que pregões tão palavrosos quanto virtuosos, na forma e no conteúdo, são canto) e a enrolar-se a si e a alguns pescoços da audiência no fio indomesticável do microfone. Deram tudo de si, com uma garra deste mundo e do outro, para nos oferecer uma das memórias da nossa existência e mostrar, na própria forma da performance, o desejo de viver de que falam as suas canções. Não há dúvida de que se fizeram ouvir. Bem-vindos à arena das conversações, Shame.

Shame, Fleet Foxes e outros no Vodafne Paredes de Coura 2018
Charlie Steen, dos Shame (© Margarida Ribeiro)

Se por concerto entendermos, contudo, não só a performance mas tudo o que esta traz consigo, então o grande acontecimento do dia de ontem foram a pessoa de Robin Pecknold e a música dos Fleet Foxes, que não é senão a pessoa de Robin Pecknold. Muito esperados pelo público do Vodafone Paredes de Coura, que bem antes da hora já se acumulara, sentado e encavalitado, das grades ao declive da encosta, para conquistar um lugar de familiaridade, os Fleet Foxes foram recebidos entre aclamações e cantos de estrofes inteiras (não só refrão) das suas canções. Que a massa compacta de gente ondulasse conjunta, a cantar “oh-oh-oh-oh-oh”, durante a “Mykonos” era expectável, mas que adolescentes (que se apinhavam com cartazes e tentativas de chegar às grades) soletrassem, palavra por palavra, todas as letras dos Fleet Foxes, das canções do Fleet Foxes a Crack-Up foi surpreendente. O herói ali era mesmo a música, com a banda toda em contraluz, absorta a tocar as intrincadas canções, e o que deverá ser todo um trabalho de animação concebido pelo irmão de Robin a passar por trás.

Fleet Foxes no Vodafone Paredes de Coura
Robin Pecknold, dos Fleet Foxes (© Margarida Ribeiro)

Enquanto ouvia as frases lacónicas que, quase em surdina de tão corriqueiras, Robin ia dirigindo ao público e o via tocar voltado para vários membros dos Fleet Foxes, dava-me conta de que este espectáculo a que assistíamos, esta música nova que nos vinha apresentar podia não existir. Tudo podia ter acabado há anos atrás, a seguir a Helplessness Blues. Que desejos, que decisões, que acontecimentos fizeram com que a história fosse esta e não outra? Esta dependência de tudo daquela pessoa que via tocar, contente, mais madura, diante de nós era vertiginosa, o grande acontecimento do segundo dia do Vodafone Paredes de Coura. Com a mesma simplicidade com que aceitou continuar, com a mesma discrição e aversão ao estrelato, entregou as baquetas aos seguranças para as distribuir, evitando o espectáculo de si a saltar para o público (sem deixar de dar, note-se, indicações cuidadosas de a quem deveriam ser entregues), e deu o próprio casaco, num gesto rápido e gratuito de simpatia, a um membro do público que reconhecera de um anterior concerto. A música dos Fleet Foxes é esta originalidade e tranquila vitória pessoais. Há lá coisa mais (indie) rock’ n’ roll do que este contraluz?

Vodafone Paredes de Coura | Dia 2 em imagens

Fotos de Margarida Ribeiro

6 thoughts on “Vodafone Paredes de Coura 2018 | o contraluz dos Fleet Foxes

  • Olha, só para te dizer que, não obstante a tua escrita pretensiosa, eu não tive a lata de escrever um cartaz ou o diabo; ele reconheceu-me de um concerto anterior e veio-me dar o casaco num gesto de amizade. Sê menos pretensiosa por favor, um pouco de humildade e respeito pelo público nunca fez mal a um jornalista. Obrigado.

  • Caro Tomás,

    O comentário que fiz não era depreciativo. Achei (o que, na altura, pensei ser) o teu pedido ousado e “lata” era só uma forma informal, menos pretensiosa e pomposa de o dizer. Ainda bem que estavas lá, porque isso fez saltar este gesto do Robin e mostrar melhor ainda a pessoa que ele é. Nesse sentido, agradeço-te 🙂 Fico também contente pelo teu comentário, que me permitiu perceber melhor o que aconteceu. Estava mesmo curiosa. Quanto ao estilo, ah, bom… É a maneira que tenho de dizer aquilo que penso e sinto. Tu estás lá à frente a ouvi-lo e aceitas com simplicidade o casaco, eu ponho-me a filosofar sobre a memória. Cada um manifesta a sua estima como sabe, pode e julga melhor. São tentativas irónicas e, no fim de contas, o que importa é aquilo de que é sinal. E nisso estamos de acordo, certo?

    Muito obrigado!

  • Maria:

    Parece-me algo evidente que no jornalismo não há lugar para filosofias da memória, mas sim para factos e histórias devidamente enquadradas na realidade dos acontecimentos. As tentativas irónicas revelam-se inusitadas, senão mesmo despropositadas; os factos não são elementos que se possam submeter à ironia, mas sim pilares éticos quando contamos uma história para um público. Manifesta a estima como quiseres, mas por favor respeita os acontecimentos e público presente e o espírito – magnânimo, indomável e fascinante – inerente ao Paredes de Coura. Que, devo acrescentar, não é adolescente, antes constituído por elementos de vinte e muitos e trinta e tais (Paredes de Coura não é o Sudoeste).
    Lamento, mas discordo de ti; a ironia e a memória não têm lugar no jornalismo. E se estavas curiosa em relação ao que aconteceu, e desejavas escrever sobre tal, bastaria uma rápida pesquisa pelos sites noticiosos. Se eu, um antropólogo de 25 anos (bem longe da adolescência) o consigo fazer – com o intuito de encontrar uma fotografia do momento – parece-me que uma jornalista tem o dever de o fazer antes de produzir reflexões depreciativas e as expor enquanto jornalismo.

    Obrigado, e espero que no futuro tenhas um pouco mais de cuidado ao escreveres sobre histórias de festivais.

  • Caro Tomás,

    Mais uma vez, agradeço o diálogo. O que é o jornalismo é passível de discussão, e há margem para diferentes abordagens, como a experiência e as reflexões do New Journalism das décadas de 60 e 70 bem o atestam (mesmo se não concordo totalmente nem com os pressupostos, nem com as conclusões do mesmo). De notar que nunca faltei à verdade (não o faria nem sequer numa ficção, mas não vale a pena entrar nesta questão). Usei a nota cautelar “provavelmente”, que indicava não estar ciente do que se passara, de poder não ser esse o caso. De qualquer maneira, o facto em si não era o ponto mas a pessoa de Robin Pecknold, o gesto dele. Quanto ao uso do termo “adolescentes”, um antropólogo deveria saber que este termo não é depreciativo. Ensino a alunos de liceu e estimo-os muito, pelo que, de novo, divergimos nas conotações que associamos às palavras. Fiquei verdadeiramente espantada que os adolescentes (ou pessoas novas, se preferir esta formulação) à minha volta – e estava rodeada deles (isto é um facto) – conhecessem tão bem as canções da banda, entendendo isso como um elogio tanto para os jovens a que me referia, como para os Fleet Foxes, que assim eram capaz de os cativar, ainda para mais tendo em conta a longevidade da banda. Exactamente porque convivo com eles sei bem o quão pouco óbvio isto é. Parece-me que é o Tomás quem olha para os adolescentes de forma depreciativa, ao fazer um ponto de honra de não ser o Paredes de Coura um Sudoeste, tendo uma idade média de “vinte e muitos e trinta e tais”. Quanto a mim, se o público é jovem ou maduro não é uma questão, quanto muito se este se interessa por música ou não. Estou a tentar dizer que o registo do meu artigo nunca foi irónico e parece-me que há uma insistência em vê-lo como tal. No jornalismo de opinião – e uma crítica terá sempre uma margem de subjectividade que é bom não pretender disfarçar (correndo o risco de, aí sim, incorrer em falsidade) – há margem para a ironia. É um recurso de estilo como outro qualquer. Ainda assim, é um erro de interpretação entender ironicamente as minhas afirmações (porque ignora o contexto: as referências elogiosas ao público que se reunira para ver os Fleet Foxes e a relação de simpatia pessoal que se estabeleceu entre Robin Pecknold e os que se encontravam no meu âmbito de maior ou menor percepção). Vou alterar a parte que se refere ao Tomás (correndo o risco de tornar esta nossa discussão um pouco ininteligível), porque vejo que o preocupa. Mais não consigo fazer.

    Espero poder vir a ter o prazer de voltar a falar consigo (e peço que não entenda esta afirmação como irónica),

    Maria

  • Maria
    Não necessita de alterar nada, pois não me incomoda particularmente. Incomoda-me que, não obstante ser um artigo de opinião, o ter escrito sem alusões ao que realmente aconteceu quando o era tão fácil de fazer.
    Enquanto antropólogo dos elementos nodais da profissão é o recurso às expressões e terminologias adequadas; o piscar de olhos muito significa e o enquadramento é crucial, já escrevia Geertz. Porventura faria bem em enquadrar melhor as opinões, correndo o risco, tal como aconteceu, de ser mal interpretada.
    Se me considera depreciativo em relação aos adolescentes, está enganada: considero é que talvez esteja a incorrer num julgamento de idades pelas aparências. Novamente, a terminologia é fulcral; um adolescente não é semelhante a um público jovem, ou de aparência jovem. E sim, tenho um certo orgulho que Paredes de Coura não seja o Sudoeste, pois, como espero que saiba, existe um espírito inerente ao Paredes que não se replica em lado nenhum.

    Se desejar conversar com mais calma terei todo o gosto, mas por favor não recorra à ironia mal enquandrada e terminologias sem contexto como elementos basilares da recontagem de factos e histórias.

  • Caro Tomás,

    Já alterei (já o tinha feito) e agradeço muito o seu contributo.

    Até uma próxima vez,

    Maria

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