DocLisboa ’16 | Rocco, em análise

Uma dupla de cineastas franceses retrata Rocco Siffredi, uma das mais famosas estrelas da pornografia, mostrando facetas até agora desconhecidas do “Italian Stallion”.

rocco doclisboa

A primeira imagem que vemos em Rocco, o novo documentário dos franceses Thierry Demaizière e Alban Teurlai, é o pénis da personagem titular. De negro, a imagem vai-se definindo até que vemos o sexo de Rocco Siffredi, flácido mas impressionante, em plano pormenor pintado em tons de cinza e azul com correntes de água e gotas a deslizarem e delinearem a sua forma. De seguida cortamos para um plano semelhante, desta vez dos seus peitorais, novamente descontextualizados de qualquer personalidade e lambidos pelas gotas de um chuveiro. Finalmente, a dupla de cineastas franceses mostra-nos a face do nosso sujeito, mas, ao contrário das suas zonas erógenas, a face de Rocco é-nos apresentada desfocada e coberta por um véu de gotas. De um modo rápido e elegante, temos aqui a proposta de intenções deste filme ilustrado pela relação entre imagens distintas. Durante décadas, Rocco Siffredi foi um dos atores pornográficos mais famosos do mundo e foi principalmente conhecido pelos seus dotes sexuais. Agora, propõe-se uma redenção, uma humanização e um retrato psicológico de um homem que é muito mais que uma possante ereção.

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De facto, Rocco é rápido na sua forçosa tentativa de humanizar a sua figura titular, inundando logo a sonoplastia com o voz-off de uma prolongada entrevista em que Siffredi, cujo apelido real é Tano, se abre emocionalmente e reconta a sua trajetória de vida, desde a pobreza da infância, até ao sucesso sofredor da sua vida atual. Este novo Rocco, distinto da persona violenta e misógina dos seus filmes pornográficos, sente-se atormentado pelo seu desejo sexual, caracterizando o seu pénis como um demónio e sugerindo que padece de uma dependência ou vício sexual. Ao mesmo tempo, o seu discurso regressa regularmente à sua mãe e influência dela na vida do filme, de tal modo que quase conseguimos imaginar Sigmund Freud a salivar tal é a monumentalidade óbvia do complexo de Édipo que o filme está pronto a delinear entre Rocco e sua afeição maternal.

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O voz-off mergulha assim o documentário numa atmosfera de vitimização e auto recriminação que acaba por infecta todos os outros aspetos do projeto. A fotografia, por exemplo, longe de se aproximar de uma estética de cinema verité, é enfaticamente polida e trabalhada cheia de câmara lenta, uso expressivo de desfocagem e uma paleta cromática gélida e quase funérea. A banda-sonora, quando não se rende à entrevista cabisbaixa de Rocco, cai num registo de amorfia sónica cheia de uivos eletrónicos indefinidos. Tudo isto resulta numa formalidade opressiva que vai sufocando um filme que, desde o inicio, padece de uma melancolia esmagadora e um desejo aterrador de se revoltar contra o erotismo que se poderia associar ao mundo da pornografia.

Felizmente, Rocco não se resume ao voz-off ilustrado, e temos várias instâncias em que a câmara segue a vida profissional de Siffredi e acompanha-o à volta do mundo, em sessões de casting e filmagens. Neste ambiente carregado de desenvergonhado erotismo e poucas ou nenhumas inibições, o trabalho dos realizadores é mais interessante, procurando uma apresentação destes ambientes como espaços de trabalho, não paraísos hedonistas ou infernos monstruosos de humilhação. Como tal, na primeira metade do filme, é precisamente nas cenas mais focadas na pornografia que o documentário revitaliza e ganha alguma energia, especialmente quando observa Gabby, o colaborador, realizador e primo de Rocco, cuja incompetência e falta de sentido de humor trazem umas necessárias doses de absurdo, comédia e rasgos de desapontamento ligeiro à ação que observamos.

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Mas, por muito que Gabby seja uma presença de interesse, são as mulheres da vida de Rocco que roubam o holofote a todos os homens do filme, incluindo a figura titular. Como num filme de Fellini, o fantasma da mãe é uma presença constante no discurso de Rocco, mas também a mulher do ator e suas colegas de trabalho se revelam figuras fascinantes, especialmente no que diz respeito à sua relação com o seu próprio desejo sexual e à comercialização das suas imagens e corpos. O píncaro deste domínio feminino sobre o filme vem sob a forma de Kelly Stafford, uma estrela britânica cuja relação profissional com Rocco foi sempre marcada por uma intensidade quase animalesca. No seu discurso, temos uma direta rejeição de qualquer tipo de moralismo corrosivo, sendo que, para ela mesma, o desejo sexual e vontade de ser dominada não implicam qualquer tipo de subjugação antifeminista, mas sim o contrário. Podemos discordar das suas palavras, mas há algo de refrescante ao testemunhar como ela rompe pelo filme adentro e oferece um novo contexto sobre a partDocLisboaicipação feminina no mundo da pornografia, algo que visivelmente incomoda muitos dos homens em cena, nomeadamente o tradicional Gabby.

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Stafford consome o último ato do filme com as suas lancinantes e frontais palavras, mas nem mesmo ela consegue atenuar o absurdo mesclado de tristeza que caracteriza essas derradeiras passagens. Decidido a reformar-se, Rocco vai até São Francisco filmar aquele que deverá ser o seu projeto final e aqui a ligação deste documentário a Fellini ganha dimensões quase paródicas. Preso a uma cruz, qual Cristo da pornografia, Rocco protagoniza um circo de bizarro simbolismo onde a sua redenção tem a forma de sexo hardcore filmado de um modo estranhamente púdico e quase abstrato pela parte dos cineastas franceses. Na sua conclusão, Rocco permanece um filme esmagado pelas suas próprias intenções e soturna seriedade, mas, mesmo assim, alguns elementos, como Stafford ou o cenário insólito, conferem-lhe uma energia preciosa que quase nos faz esquecer quão desinteressante a figura central do filme acaba por ser e quão falsos muitos dos momentos parecem devido ao estilo altamente polido e encenado que os realizadores escolheram para este retrato.

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O MELHOR: Todas as cenas de Kelly Stafford, especialmente aquelas em que ela ainda se encontra em Inglaterra e os cineastas simplesmente a seguem pela sua propriedade enquanto ela fala da sua perspetiva pessoal sobre o seu trabalho e sobre o sexo, de modo geral.

O PIOR: O modo como num filme intitulado Rocco, Rocco Siffredi é a figura mais aborrecida e cuja história de vida mais cai em lugares-comuns que parecem quase escritos por um guionista desinspirado. Acrescente-se a isto um moralismo venenoso quase anti-sexo e é difícil não desejar que o filme se tivesse decidido centrar em uma das várias personalidades periféricas à personagem central.


 

Título Original: Rocco
Realizador:  Thierry Demaizière, Alban Teurlai

DocLisboa | Documentário, Biografia | 2016 | 105 min

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