Saturnais

Saturnais, o “Lugar às novas” subiu à Comuna

Saturnais, que saiu ontem de cena da Comuna-teatro de pesquisa, explorou o transformismo masculino na sua busca pelo feminino não normativo.

Atingindo aquilo a que “nunca nenhuma mulher chegará”, a peça aborda o espectáculo drag e a procura pela catarse dentro e fora do palco incluso no universo diegético. Aqueles que já tiveram algum contacto com o panorama nacional da performance drag, ter-se-ão deparado com a existência do Finalmente Club. Um local onde a tradição drag lisboeta se afirma desde 1976, oferece, todas as segundas-feiras, um espaço para novos performers experimentarem o palco e testarem audiências. É chamado “Lugar às novas” e acabou por ser isso que, ao longo das três noites de apresentação de Saturnais, a Comuna-teatro de pesquisa alojou.

É sabido que, para além de produções próprias, a Comuna acolhe outras companhias, apostando especialmente nos últimos tempos em jovens artistas. Ser jovem e, principalmente, ser sangue novo no meio teatral não é tarefa fácil. Para além da apresentação de uma peça ser um feito de exposição de uma obra teatral, é também um ponto de afirmação da companhia, um depoimento e um testemunho da sua nota de intenções. Principalmente no caso dos colectivos que apostam em levar aos palcos textos da sua autoria, com encenadores e atores em início de carreira, ou que ainda não têm o seu nome sedimentado na memória de um público pouco acostumado ao seu trabalho.

Saturnais
Brandão de Mello e Hugo Teles em “Saturnais”

A premissa de “Saturnais” é a da procura da identidade que vai para além dos limites do próprio corpo, do binómio masculino e feminino, jogando com a flexibilidade das fronteiras de ambos os rótulos. Explora as definições de “ser”, “estar” e “ilusão” ao longo de diálogos entre dois performers. No entanto, esta conversa rapidamente se transforma num monólogo, sendo a existência da segunda persona, interpretada por Hugo Teles, uma ferramenta com o fim de entregar informação ao espectador. O público não descobre coisas acerca das personagens, os factos são-lhe entregues de bandeja entre performances drag.

Ao tratar um assunto tão sensível como é o da performance drag, os criadores acabam por caminhar sobre um frágil piso, podendo as suas acções ser facilmente tomadas como ofensivas. Para evitar tal infortúnio é necessário levar a cabo muitos testes de texto e interpretação, explorando todas as nuances da palavra e do corpo. O texto de “Saturnais”, pelo menos para uma mulher cis, não parece ofensivo, no entanto, a performance dos artistas, em drag, precisa de mais trabalho para além do apresentado. Brandão de Mello foi quem melhor conseguiu criar uma personalidade para a sua persona. Vai para além do que um espectador desatento vê nos primeiros 5 minutos de um episódio de “RuPaul’s Drag Race” durante uma sessão de zapping. O ator foge então ao que o tipo de público anteriormente descrito poderá entender como “tique”, ou “jeito”, conseguindo realmente criar uma personagem profunda. No entanto, as restantes personas parecem ferramentas para que Brandão de Mello possa articular os monólogos que lhe competem, entrecortados por interpretações musicais que tratam a afirmação pessoal dentro de uma sociedade castradora.

Saturnais
Hugo Teles em “Saturnais”

A acção teatral não flui e os tempos dos acontecimentos não estão balanceados ao longo da peça. Durante um momento em que o tempo diegético congela, é fundamental que até então tenha sido criada uma ligação emocional entre o espectador e as personas e que o público esteja perante uma imagem forte, algo que lhe deixe o coração nas mãos. No entanto, o espectador em “Saturnais” permanece durante longos momentos a olhar para um palco com atores que não estão ligados de corpo e alma à acção que estão a desempenhar. A repetição, tal como momentos intencionalmente introspectivos, é um elemento de encenação extremamente complexo: uma vez mal conseguidos, a força da cena perde-se e transfigura-se em monotonia e fatiga para o espectador. Infelizmente, foi o que sucedeu em “Saturnais”. São exemplos disto as representações mecânicas, repetitivas e propositadamente grotescas ao longo dos 4 minutos que compõem “I fink U freeky”, dos Die Antwoord. A personagem, interpretada por Daniel Dias da Silva, acaba por entrecortar a cena sem ser envolvida na mesma. Nota-se que houve uma tentativa da sua aparição espelhar um mantra, um ritual meditativo quase hipnotizante, no entanto ainda não estava bem conseguida. Sente-se que o trabalho em volta da personagem incorporada por Dias da Silva, apesar de um bom domínio do corpo, ainda não tinha sido dado como terminado: aparições descontextualizadas, com os tempos por marcar e dicção que dificultava a percepção. Tal performance oculta o texto de Laura Morais da Silva que, na verdade, é rico em conteúdo, intertextualidade e na utilização do poder da palavra. Para além de escolhas dramatúrgicas relativas ao fluir da peça, faltava a este ator trabalhar a articulação e interligação das diferentes intenções ao recitar o monólogo final, quebrando o texto em secções, dando-lhe a emoção necessária para que o espectador seja devidamente cativado com a potência que o texto proporciona.

O trabalho deste colectivo não é de abandonar enquanto espectador, muito pelo contrário. Saturnália apresentou-se como uma performance de estudo e experimentação por parte dos seus criadores e performers. O que faltou foi traquejo por parte dos mesmos, algo natural de sangue novo, que na próxima produção, poderá ser trabalhado e melhorado.

Se não é nas primeiras produções, quando é que um criador poderá testar, descobrir e abusar da própria criatividade?

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