Serra Pelada, em análise

Na tragédia épica que é Serra Pelada, Juliano Cazarré e Júlio Andrade são dois homens consumidos pela febre do ouro no Brasil dos anos 80.

serra pelada

Ao bom estilo de um filme noir, Serra Pelada inicia-se com um interrogatório. Em grande plano apertado vemos a face suada de Juliano Cazarré e é a partir das suas palavras que começamos a perceber a natureza da sua personagem e, mais importante, a natureza do filme cuja principal narrativa rapidamente se começa a evidenciar quando cortamos para o flashback, embalados pelo voz-off do protagonista a recordar-se do seu passado. Tal como já foi mencionado, este é um mecanismo típico do cinema noir, começar o filme com um momento de crise, usualmente uma espécie de interrogatório ou confissão, que passa rapidamente a servir de veículo à memória onde consta a história principal que assim já está estabelecida como uma tragédia. Imediatamente sabemos que a vinda deste homem à localização titular vai apenas trazer desgraça e corrupção e o filme em si é a exploração do seu definhar.

Apesar desse início, Serra Pelada está longe de ser um noir, ou, pelo menos, o realizador Heitor Dhalia vai buscar ferramentas narrativas e estilísticas a muitos outros géneros clássicos para além do noir. Desses géneros o mais evidente é o western, sendo que, aquando da escrita do argumento, Dhalia e sua coargumentista, Vera Egito, se inspiraram grandemente em The Man Who Shot Liberty Valance, uma das últimas obras maestras de John Ford. Só que, ao invés do velho Oeste norte-americano, aqui temos o Brasil na década de 80, quando a sede pelo ouro levou milhares de pessoas até Serra Pelada, onde se estabeleceu a maior mina a céu aberto do mundo. O desespero pela riqueza cega muitos homens e à volta do desespero humano forma-se uma comunidade onde a amoralidade é rainha e onde mesmo o homem mais reto se vê degradado pela ganância. No centro desse microcosmos está Juliano e outro homem, coprotagonista da narrativa e bússola moral de todo o filme, Joaquim (Júlio Andrade).

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O definhar de dois homens numa sociedade de parasitas durante os últimos anos de uma era, neste caso a ditadura militar no Brasil – esta não podia ser uma história mais cliché ou presa a fórmulas que foram aperfeiçoadas pelo western americano. Felizmente, Serra Pelada pode contar com duas eficazes prestações neste seu centro dramático humano. Cazarré e Andrade não fazem nada tão radical como subverter os clichés intrínsecos ao texto, mas constroem caracterizações coerentes e que dão ao filme tudo o que este lhes pede – não transcendem o material mas também não o desvalorizam. Cazarré é de especial destaque, lembrando um Humphrey Bogart brasileiro, como que uma versão mais musculada e sedutora do protagonista do Tesouro de Sierra Madre.

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Há que, no entanto entender, que este filme apenas se interessa na história humana como veículo de explorar as possibilidades dramáticas da Serra Pelada em si. Mais do que Juliano e Joaquim, é a serra que protagoniza o filme e injeta no projeto mais uma inspiração nos géneros clássicos de Hollywood. Neste caso trata-se do épico de grande escala e é precisamente nesse registo mais grandioso que a realização de Dhalia mostra o seu valor. Quando afastado da intimidade de diálogos amorosos com uma ex-prostituta ou acesas discussões no seio do mundo do crime, a câmara do brasileiro eleva-se até aos céus e olha para a escavação como uma pirâmide invertida, uma exploração cataclísmica dos recursos naturais pelo ser humano. As pessoas são reduzidas a formigas no meio da paisagem rochosa e as imagens, mais do que recordar qualquer familiar história recente, parecem remeter para os escravos no Egipto do Antigo Testamento.

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No entanto, como já se pode entender, esses momentos épicos são entrecortados com numerosas cenas de uma escala muito mais diminuta e é aí que se revela o verdadeiro valor cinematográfico deste cocktail de géneros que é Serra Pelada. Ao apelar ao épico, Dhalia investe numa linguagem cinematográfica de puro espetáculo e grandiosidade monumental, mas está sempre a contrastar isso com o drama humano. Drama esse, que é dominado por grandes planos meio televisuais e espaços escuros capturados com cores garridas, contraste elevado e uma trémula câmara ao ombro que está à procura de um registo pseudo naturalista ou de inspiração documental.

Seria de esperar que nada disto funcionasse e o resultado final não fosse mais que uma salganhada de incoerência estilística mas o facto é que miraculosamente tudo isto funciona em relativa harmonia. A disparidade relega o drama humano a assemelhar-se a um fragmento descontextualizado de algo muito maior e esse algo é mostrado com a imagética épica. Naquelas imagens quase bíblicas vemos uma imensidão de corpos em esforço e cada um deles é mais uma história como a que vemos aqui, mais um conto de tragédia e selvajaria que nasce da ganância humana.

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Mas, infelizmente, esse cocktail de géneros não resulta apenas num interessante jogo de contrastes estilísticos e fórmulas clássicas bem executadas. Recentemente, face a alguns grandes blockbusters de Hollywood, audiências em fúria com a opinião crítica têm apontado como o sexismo, racismo e homofobia de certos projetos é apenas o resultado de um filme que segue personagens amorais. Mas o que justifica a abordagem do realizador a esse material? Não poderia a mão por detrás da câmara orientar o modo como esses preconceitos são capturados e apresentados? Em Serra Pelada temos um filme semelhante a esses blockbusters, com personagens femininas reduzidas a objetos sexuais para satisfazer ou frustrar os protagonistas masculinos, personagens homossexuais a serem apresentados como grotescos parasitas sociais que merecem levar um tiro ou então pessoas de cor que, por alguma razão, são sempre vilificadas. Seria assim tão difícil olhar uma das figuras femininas como um ser humano tão complexo como seus amantes e pretendentes, por exemplo?

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No final, Serra Pelada é um épico um tanto ou quanto superficial que vale mais como um fascinante cocktail de géneros cinematográficos do que como uma prazerosa experiência dramática ou humana. Este tratamento grandioso de um evento ainda tão recente na história do Brasil é curioso. Afinal, este conto de hubris humana, exploração da natureza e selvageria gananciosa faz parte da história moderna dessa nação e muitos dos seus intervenientes ainda vivem. Tratar tal realidade como um mito cinematográfico é algo tão corajoso como discutível. Será que esta abordagem se justifica para além do interesse comercial? Será que criar esta pátina de glamour epicizante não distancia a audiência do que é uma realidade história que não deveria ser ignorada? Não são perguntas de fácil resposta e o que é mas inquietante em todo o filme é que Serra Pelada e seus cineastas parecem ignorar todas essas complexidades.

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O MELHOR: Numa apreciação estética há que salientar a deliciosa saturação cromática que dá uma qualidade irreal e quase sonhadora a todo o filme. De um ponto de vista mais narrativo, os atores são merecedores de apreço, especialmente Cazarré no protagonismo e Wagner Moura num vistoso papel secundário.

O PIOR: Personagens femininas que podiam ser interpretadas por bonecas insufláveis e a homossexualidade como indicadora de degredo humano são os mais deploráveis aspetos de um filme que, verdade seja dita, não tem escassez de problemas.


 

Título Original: Serra Pelada
Realizador:  Heitor Dhalia
Elenco: Juliano CazarréJúlio Andrade, Wagner Moura, Sophie Charlotte

Lanterna de Pedra | Drama, Western, Aventura | 2013 | 120 min

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