20º Queer Lisboa | Spa Night, em análise

Em Spa Night de Andrew Ahn, é retratado o conflito interno de um jovem coreano-americano cujos desejos homossexuais colidem com o tradicionalismo da sua vida familiar.

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Quando, enquanto audiência vamos ao cinema, procuramos muitas coisas diferentes, mas, usualmente, existe um desejo subjacente de nos encontrarmos a nós mesmos na grande tela. É por isso que os grandes blockbusters procuram ter pessoas, normalmente homens, comuns como seus protagonistas, para poderem ser atrativos ao seu público-alvo que se quer identificar com as histórias. Nas passadas décadas, as comunidades LGBT vieram a ganhar mais visibilidade e representação no cinema, mas, com novas propostas de Queer cinema também se estabeleceram novos paradigmas e padrões corrosivos, sendo que muitas comunidades que intercetam as realidades LGBT são esquecidas. Para retificar uma dessas faltas de representação, o cineasta Andrew Ahn apresenta, na sua primeira longa-metragem, um retrato de um jovem homossexual dentro da comunidade coreano-americana, num movimento quase autobiográfico da sua parte.

Spa Night, tal como o nome indica, foca-se bastante no espaço do spa coreano, algo que, para muitas famílias como a do realizador, é um símbolo de ligação à cultura da Coreia e a valores tradicionais de família e comunidade. É exatamente isso que Ahn estabelece quando nos apresenta às suas personagens na abertura do filme, onde nos deparamos com David, seu pai e mãe, de visita a um spa de luxo. O filme estabelece assim o spa como um templo para a família. E não que enganar, a família enquanto instituição e conceito está no centro deste filme, lembrando os reticentes dramas domésticos de Ozu, uma das grandes referências deste novo realizador que, tal como nos filmes desse mestre japonês, tece tragédia através de silêncios e serenidade resiliente.

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Depois da visita ao spa que abre o filme, rapidamente observamos a desgraça cair sobre as cabeças da unidade familiar, com a perda do restaurante que outrora havia sido gerido pela avó já falecida de David. Afundados numa grande precariedade económica, os pais do protagonista tentam desesperadamente encontrar novos empregos e, aceitando um gesto de venenosa caridade, a sua mãe começa a trabalhar no restaurante de uma das suas conhecidas da igreja. Essa mesma senhora é a mãe de um antigo amigo de David que agora estuda na Universidade da Califórnia do Sul, e as duas matriarcas depressa planeiam uma visita do jovem ao campus para ele conhecer a faculdade onde os pais esperam que ele consiga entrar. Os desejos de dar ao filho uma vida melhor guiam as ações dos dois progenitores, e, apesar de terem pouco dinheiro, decidem pagar dispendiosas aulas para que o filho esteja preparado para os exames de admissão.

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Na já referida viagem até ao campus, David passa uma noite na companhia do antigo amigo, embebeda-se com um grupo e, juntamente com outros três jovens, acaba por terminar a festa num spa coreano. Esse espaço, onde o trio cura a bebedeira, tornar-se-á no espaço principal do filme depois de David lá começar a trabalhar sem os pais saberem. Parcialmente, esta decisão é motivada pelo desejo de ajudar financeiramente os seu pais que andam a gastar tanto dinheiro com as infrutíferas aulas, mas algo mais está subjacente a esta decisão. Às escondidas de todos menos da audiência, David sente um inegável desejo pelo corpo masculino.

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O templo familiar converte-se assim num labirinto de desejos ilícitos, proibidos por uma vergonha internalizada e vontade de agradar à sua família tradicionalista. À medida que os dias e as noites passam, os impulsos de David fervilham sob a superfície da sua pele, consumindo o filme e quase tornando-o num thriller erótico. O facto de que, à noite, o spa coreano se torna numa sauna gay, numa zona de cruising, sem o consentimento do seu dono, ainda atira mais achas à fogueira dos desejos eróticos do protagonista e, de guardião passivo, ele passa a observador fascinado e finalmente torna-se num participante das atividades sexuais.

Ao longo de todo esse processo, a câmara vai-se aproximando cada vez mais dos corpos masculinos, começando por vê-los em planos gerais que os posicionavam como figurantes num expansivo tableau, e acabando em grandes planos apertados que descontextualizam ombros, clavículas, abdominais e joelhos do resto da pessoa. Para além de assim se manipular a perspetiva claustrofóbica da audiência, esta escolha estilística também remete para o modo como David observa o seu próprio corpo. Como um homem que sente desejo pelos corpos de outros homens, este jovem vê no seu próprio físico um reflexo dos impulsos que o excitam e fascinam. Ao longo de Spa Night, estamos sempre a ver David obcecado com o seu corpo, a tirar fotos na casa de banho à sua figura nua, a exercitar-se sempre que pode e a escrutinar o seu reflexo. Quando, depois de um encontro sexual interrompido, ele lava furiosamente o seu torso até sangrar, há a apoteose desta obsessão, desta visão do próprio corpo como criador, potenciador, reflexo e recetáculo de uma série de desejos proibidos.

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Considerando esse climático momento de autopunição é pertinente falar de como, longe de conjurar óbvios vilões, Andrew Ahn está mais interessado no complicado conflito interior de um jovem que vive entre a espada e a parede da tradição e dos seus desejos. Os seus pais, completamente ignorantes das proclividades homossexuais do filho, não são figuras de escárnio, mas sim pessoas que o amam profundamente e desejam vê-lo feliz, com um bom emprego, uma mulher coreana e vários filhos. Em suma, eles desejam para o filho a vida que não conseguiram ter para si mesmos e, por várias vezes, essa luta por garantir a David um futuro melhor é verbalizada, sublinhando a distância entre o desejo homossexual e esse perfeito quadro doméstico. Note-se por exemplo, como quase todos os homens homossexuais que estão presentes on e offscreen na narrativa são de etnias que não coreana, exteriores à comunidade, seus costumes e união familiar.

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Numa sequência tão bela quão dolorosa, David observa os seus pais num momento de raro júbilo a brincarem com um bebé durante uma cerimónia coreana de aniversário. O paradoxo da relação familiar torna-se óbvio, pois o maior desejo dos pais é ver a felicidade do seu filho, mas esse desejo é também uma das razões pela qual o filho se recrimina e se deixa consumir por uma esmagadora vergonha. Essa mesma vergonha torna-se uma carapaça debilitante para ele, uma segunda pele que, como a pele morta é esfregada no spa, tem de ser forçosamente tirada. Nesse sentido, Andrew Ahn acrescenta uma dimensão esperançosa ao final do seu filme. É certo que o plano ambíguo que encerra Spa Night pode sugerir uma terrível tragédia, mas o clímax da limpeza até carne viva de David contém a possibilidade uma interpretação despida de homofobia internalizada. No ato de se livrar da pele morta que envolve o seu corpo, David está possivelmente a sofrer uma metamorfose, a deixar para trás a vergonha paralisante e a abrir o seu ser a novas possibilidades de liberdade. Não se enganem, pois Spa Night é um filme difícil, cheio de ideias densas sobre identidade nacional, sexual e cultural, mas, no seu âmago, é um retrato simples e comovente de uma família em crise e de um jovem a tentar encontrar-se a si mesmo num mundo de barreiras e prisões invisíveis que, contudo, não são impossíveis de derrubar.

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O MELHOR: As maravilhosas três prestações no seu centro. Como David, o jovem Joe Seo é de particular louvor.

O PIOR: A ambiguidade do seu minuto final e possível sugestão de tragédia no final da história de David.


 

Título Original: Spa Night
Realizador:  Andrew Ahn
Elenco:
 Joe Seo, Haerry Kim, Youn Ho Cho, Tae Song
Queer Lisboa | Drama | 2016 | 93 min

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