The Tale

The Tale, em análise

Em “The Tale”, a realizadora Jennifer Fox desenterra os traumas do seu passado, oferecendo ao espetador um exercício em autorreflexão de lacerante sinceridade com uma mensagem particularmente urgente no nosso atual clima sociocultural. O filme é exibido pelos canais TVCine e Séries em Portugal.

“Nós contamos histórias a nós próprios, para conseguirmos viver.” Impor estruturas narrativas na realidade é uma forma de encontrarmos ordem no caos da vida, de entendermos o mundo que nos rodeia e a nós mesmos. Tornar a existência mundana em história também é uma ferramenta de autoproteção, resguardando-nos de realidades que ainda não estamos preparados para confrontar. Há quem chame a isso mentirmos a nós mesmos, mas o que é então a memória se não uma grande mentira? Afinal, cada pessoa lembra-se de maneira diferente e, no labirinto da memória, o reflexo esbatido que perdura de um momento perdido no tempo em nada se compara com a realidade visceral do evento em si.

Jenny Fox, a protagonista de “The Tale”, é uma mulher perdida no labirinto da sua memória que desesperadamente tenta encontrar a verdade que se esconde por detrás da ofuscação da narrativa construída por trauma e imaturidade. Pelo menos é esse o estado em que ela termina o filme, sendo que, no início, tal como a maioria de nós, ela está perfeitamente contente em deixar que a história ficcionada da sua vida permaneça inquestionada. Conhecemo-la a meio de filmagens na Índia, onde Jenny, uma realizadora de documentários, está a concretizar o seu mais recente projeto. Há algo claramente jubilante na sua vocação, quer esteja ela em filmagens ou a ponderar cortes na mesa de montagem. Só há algo que a desconcentra dessa plenitude profissional – as chamadas incessantes da mãe.

Ao vasculhar nos antigos pertences da filha, Nettie Fox encontrou um conto escrito quando Jenny tinha treze anos. Nesse texto, a adolescente relatava a história de um verão passado na companhia das duas pessoas mais importantes da sua vida. Elas eram a Sra. G., sua professora de equitação e a mulher mais bela que a pequena Jenny alguma vez tinha conhecido, e o encantador Bill, seu instrutor de corridas equestres. Mais especificamente, o conto documenta a sua “relação amorosa” com Bill, que era então um homem na casa dos 40. Como seria de esperar, Nettie fica horrorizada ao ler isso. No entanto, para Jenny, cuja visão ainda é toldada pela perspetiva de uma rapariga de 13 anos decidida a reescrever a sua experiência como algo admirável, essa “relação” foi algo belo.

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Todo o elenco é exímio, mas Elizabeth Debicki é particularmente espetacular.

Impulsionada pela insistência materna, a realizadora começa a exumar as memórias do passado e a dissecá-las. A autópsia mental revela enormes vácuos, inconsistências e contradições que ainda são exacerbadas pelas conversas que Jenny começa a ter com as pessoas do seu passado. Usando as técnicas de entrevistadora com os indivíduos que moldaram a sua juventude, ela começa a aperceber-se que talvez esse verão não tenha sido a história de amor com um homem mais velho em que a sua mente traumatizada insistiu durante anos. Talvez, essa “relação” tenha sido abuso, talvez Jenny não tenha sido a heroína da sua história. Talvez ela tenha sido uma vítima.

Nada disso é fácil de aceitar e o filme retrata com cáustica autenticidade o processo pela qual Jenny vê como todo o seu entendimento sobre o passado desmorona. Ela nega tudo, empurrando a verdade para longe de si e chega a afugentar o seu noivo de longa data quando este começa a aproximar-se demasiado do trauma que ela quer ignorar. Como que negociando com o seu passado, a realizadora examina e reinterpreta cenas calcificadas há anos na mesma imagem idealizada, interroga os intérpretes das suas memórias e lentamente vai-se perdendo na indignação desesperada de alguém que passa a entender a sua memória como um palácio de mentiras que ela contou a si mesma para se fazer sentir melhor.

Pela sua parte, Laura Dern comanda o ecrã no papel de Jenny e, em alguns instantes, o seu retrato é tão franco que se torna difícil de ver. Todo o elenco é notável, verdade seja dita e, apesar de Dern dar aqui o seu melhor desempenho desde “Inland Empire”, não é ela a grande revelação de “The Tale”. Esse título é reservado para Elizabeth Debicki no papel da Sra. G das memórias de Jenny. Com o seu ar patrício e postura tão elegante que é um gesto de condescendência silenciosa, Debicki dá vida à visão idealizada de uma mulher com uma face tão angular que parece afiada e que usa o seu magnetismo como uma planta carnívora usa o aroma para atrair a presa. Acima de tudo, ela permite-nos entender como alguém poderia cair nos seus encantos, ao mesmo tempo que nos permite vislumbrar a monstruosidade magoada que se esconde por detrás da fachada imperiosa.

Como Bill, Jason Ritter encontra um equilíbrio semelhante ao de Debicki, mas a sua presença é mil vezes mais nauseante que a da atriz. Contracenando com Dern, Ellen Burstyn como Nettie e Common como o noivo de Jenny são âncoras a manter a sanidade de Jenny e do filme, quando os horrores do passado ameaçam ser demasiados para a protagonista e o espectador suportarem. Quem certamente não apazigua ninguém é Isabelle Nélisse, que interpreta Jenny aos treze anos com toda a impetuosidade e arrogância de uma jovem que se julga mais matura do que realmente é. Uma discussão entre a voz adulta e a Jenny do passado é um dos momentos mais inquietantes do filme devido principalmente ao trabalho de Nélisse.

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Uma história poderosa cujo valor caucionário é, infelizmente, intemporal.

É curioso pensar quão exímia é a direção dos atores de “The Tale” quando a sua realizadora, Jennifer Fox, é uma cineasta especializada em cinema documental. Se as semelhanças entre ela e a protagonista do filme saltam à vista é porque toda esta obra é um perturbador exercício autobiográfico. Baseando-se no texto escrito por si mesma aos 13 anos e nas experiências que teve enquanto adulta a lidar com as verdades escondidas da adolescência, Jennifer Fox conta aqui a sua história com franqueza e honestidade tão poderosas como cáusticas. Segundo a realizadora, fazer o filme funcionou como um método pelo qual tomar final controlo sobre a sua narrativa, mas os métodos de “The Tale” muito transcendem o uso enquanto terapia para a sua realizadora.

Esta é uma narrativa urgente e expressa com incrível sofisticação estrutural. Fox desmantela os mistérios da memória humana, subjugando o modelo narrativo a mecanismos do documentário e empregando a repetição de imagens em progressiva evolução como ilustração do processo mental de Jenny. A nível formal, o seu trabalho é impecável, se bem que pouco vistoso. Fox pinta “The Tale” em tons de bege e âmbar, sugerindo o calor confortável do lar e a inofensiva imagética de dramas românticos. Até as suas composições são simples, sendo que a aparência convencional serve para seduzir a audiência a prestar total atenção ao drama humano. Face a esta obra que nunca sublinha a sua própria importância, o espectador deixa cair as suas defesas e é assim melhor apunhalado pela chocante realidade deste conto.

Antes dos seus direitos de distribuição terem sido comprados pela HBO, “The Tale” foi exibido no Festival de Sundance dia 20 de janeiro, coincidindo com uma série de marchas de mulheres por todo o mundo. Com isso em conta, assim como o círculo de notícias do mundo do entretenimento, a crítica internacional depressa assinalou a obra como o primeiro filme do movimento #MeToo. É claro que “The Tale” já estava em desenvolvimento muitos anos antes do escândalo de Harvey Weisntein rebentar, pelo que a sua existência em nada se correlaciona com esse movimento. A reação ao filme é que efetivamente reflete o tempo em que vivemos, pois é fácil imaginar as mesmas audiências que aclamaram este filme a denegrirem-no como um melodramático telefilme de segunda categoria se “The Tale” tivesse tido o infortúnio de estrear há uns anos. Enfim, independentemente do seu contexto cultural, “The Tale” é uma obra poderosa que merece ser vista e admirada, com uma mensagem caucionária de intemporal relevância.

The Tale, em análise
The tale critica

Movie title: The Tale

Date published: 17 de June de 2018

Director(s): Jennifer Fox

Actor(s): Laura Dern, Isabelle Nélisse, Elizabeth Debicki, Jason Ritter, Ellen Burstyn, Common, Frances Conroy, Jessica Sarah Flaum, Laura Allen

Genre: Drama, Mistério, Thriller, 2018, 114m,

  • Cláudio Alves - 90
90

CONCLUSÃO

“The Tale” é um belíssimo drama com uma história tão perturbadora como importante. É impossível exagerar a coragem de Jennifer Fox, que aqui expõe as partes mais negras da sua vida com tanta elegância cinematográfica como fogosa honestidade.

O MELHOR: A natureza inconclusiva do final. Na vida real, não há narrativas que terminem de modo racional e perfeito. Na maior parte dos casos, tudo acaba como aqui, em eterna dúvida, recriminação e desespero.

O PIOR:
As entrevistas entre passado e presente nem sempre resultam muito bem. É claro que quando resultam, como é o caso da última cena de Debicki, os resultados são apopleticamente fortes.

CA

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