20º Queer Lisboa | Théo et Hugo dans le même bateau, em análise

Depois de um escaldante encontro sexual anónimo, Théo e Hugo passam uma atribulada noite na companhia um do outro, no filme Théo et Hugo dans le même bateau.

théo et hugo dans le même bateau queer lisboa

Cenas de sexo explícito no cinema têm vindo a tornar-se uma das mais invariáveis constantes no circuito dos festivais. O próprio Queer Lisboa, onde foi exibido o filme que nos propomos aqui a analisar, vai ter uma masterclass exatamente sobre este tema da sexualidade explícita e suas representações cinematográficas. Independentemente de considerações sobre a sua raridade ou crescente número de instâncias, quando vemos realizadores a incluírem cenas assim nos seus filmes a maior parte das vezes estamos, como audiência, a ser deliberadamente provocados. Autores como Gaspar Noé ou Larry Clark procuram chocar um público burguês e convencional com as suas explorações do sexo, mas, especialmente no caso de sexo não simulado e dos filmes de Noé, estes trabalhos acabam por ser francamente anti-sexo. Por muito que jovens cinéfilos possam falar da carnalidade dos momentos e do seu valor politicamente incorreto, filmes como Love despem o sexo de qualquer erotismo, qualidade visceral ou preciosa humanidade, reduzindo-o a uma fria coreografia que tende a ser grotesca.

Tudo isto é uma forma de introduzir Théo et Hugo dans le même bateau, ou, mais especificamente, a sua gloriosa sequência de abertura, onde os cineastas franceses Olivier Ducastel e Jacques Martineau levam a sua audiência até à cave de um clube de sexo gay durante a noite parisiense e lá deixam que o seu filme se apresente, com uma sequência orgiástica de quase 20 minutos. O sexo é explícito e, na sua maioria, claramente não simulado, mas estamos bem longe do tipo de vilificação grotesca que já referimos na filmografia de Clark e Noé. Na verdade, esta sequência, que, tal como todo o filme, é feito em tempo real, é uma explosão de fogoso erotismo e sensualidade por onde, aos poucos, vamos encontrando as nossas personagens titulares. Entramos na orgia pela mão de um homem que vê as horas no seu smartphone, mas rapidamente a câmara encontra outro sujeito para mirar, um jovem que extasiado observa um casal nomeio do ato sexual. Por muito que outros homens o beijem, lambam ou chupem, os seus olhos não se desviam do casal, ou melhor, de um dos homens desse casal.

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Este homem que tanto observa o outro, chama-se Théo e, eventualmente, a sua fascinação vidrada é reciprocada pelo objeto dos seus desejos e, no meio dos outros corpos em êxtase carnal, eles conhecem-se no sentido bíblico da expressão. Para muitos, esta sequência será algo pornográfico e sem valor, mas a direção dos dois realizadores faz tudo para dissuadir o espetador casual de tal conclusão. O uso de luz colorida, azul e vermelha é de particular destaque, pintando os corpos excitados num modo que, longe de os reduzir a volumes descontextualizados, os faz vibrar com as emoções e sensações da cena, como que exteriorizando, de modo expressionista, o seu prazer. O som que afoga estes homens nas águas de batidas eletrónicas sugere o bater dos seus corações, a montagem estabelece relações de olhares e trocas de olhares que, juntamente com o primoroso trabalho de câmara, constroem um ballet de desejos silenciosos e à espera de serem saciados.

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O píncaro de toda esta orgia de sexo e virtuosidade cinematográfica ocorre quando as duas personagens titulares se olham, se separam dos seus outros parceiros sexuais e se focam apenas no corpo do outro. Indo buscar umas ideias a West Side Story, Ducastel e Martineau isolam os seus protagonistas no espaço das suas mentes, onde o resto do mundo se esvanece nas sombras e apenas existe o corpo um do outro. Este tipo de mecanismo fortemente artificial e estilizado é uma perfeita tradução da experiência psicológica, emocional e sensorial dos dois amantes e é necessário que percebamos essa componente quase irreal de todo o encontro para que, minutos mais tarde, entendamos a irresponsabilidade em evidência no seu comportamento. Não falamos propriamente do encontro sexual em si ou da orgia, mas sim do facto de que, ao penetrar Hugo, Théo não tenha usado um preservativo. Nas chamas da paixão o participante passivo nem se apercebeu disso mas, quando os dois abandonaram o clube e estão a ir, de bicicleta, a casa de um deles para continuarem as suas atividades, Hugo entra num acesso de pânico e fúria. Ele é seropositivo e assim Théo pode estar infetado.

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Esta reviravolta é como um balde de água fria que direciona o filme numa trajetória nova. Se, até agora, Théo et Hugo dans le même bateau tinha sido um espetáculo de sensualidade inebriante com diálogos apaixonados e anódinos, agora o filme desdobra-se numa mini-odisseia pelas ruas de Paris no final da noite, acompanhando os dois homens à medida que eles vão ao hospital, para que Théo receba medicação profilática e inicie um plano de tratamento preventivo pós-exposição. Ao longo do que resta da noite, o filme passa-se das 4h27 às 5h59 da manhã, eles os dois vão falando, partilham medos, ansiedades, desejos, projetos para o futuro assim como ressentimentos e paixões. Juntos, conhecem Paris à hora onde apenas os marginalizados caminham as suas ruas, mulheres, pretos, idosos com a mania das doenças e até um imigrante sírio, mas também se vão conhecendo um ao outro e, apesar das circunstâncias, a possibilidade do romance floresce entre os dois.

Com este tipo de proposta narrativa em mãos, é impossível não pensar logo em projetos semelhantes como a trilogia Before de Richard Linklater ou Weekend de Andrew Haigh. Infelizmente para Théo et Hugo dans le même bateau, esta comparação não favorece o projeto francês e muito disso se deve ao facto que, não obstante as suas intenções, Ducastel e Martineau não têm o tipo de domínio sobre o naturalismo híper verbal que tanto caracteriza o cinema de Linklater ou, num nível menos óbvio, a oeuvre de Haigh. Como consequência, os longos takes frontais e composições simétricas dos grandes planos servem para evidenciar a artificialidade e o desconforto de muito do diálogo que nunca flui de modo orgânico.

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A tornar a situação ainda mais complicada está um duo de atores excelentes que talvez não dominem muito bem os ritmos naturalísticos necessários para este tipo de exploração. Em todas as cenas em que a sua linguagem corporal e olhares é posta em evidência, Geoffrey Couët e François Nambot são soberbos. No entanto, quando o guião lhes pede para apoiarem o seu trabalho em prolongadas conversas, o trabalho destes dois aventurosos intérpretes torna-se muito menos convincente.

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Acrescente-se a isto umas tentativas de comentário social que são inegavelmente desastradas e mal escritas e temos um filme com graves fragilidades. No entanto, mesmo quando o filme não está a funcionar a todos os níveis há um poder formidável em ação. Veja-se, como exemplo, uma cena passada no primeiro metro do dia, onde o mais desastrado comentário social consegue transcender as suas falhas e tornar-se uma delicada instância de empatia \cinematográfica. No final, as glórias de Théo et Hugo dans le même bateau compensam as suas fragilidades, sendo que a orgia do início, o retrato de Paris a dormir e seu progressivo acordar, o florescer de uma ligação amorosa entre os dois homens do título e uma necessária visão não acusatória de promiscuidade homossexual são de um incalculável valor.

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O MELHOR: A cena de orgia que abre o filme e sua magnífica formalidade imersiva.

O PIOR: Todas as instâncias em que os dois protagonistas tentam falar sobre questões sociais.


 

Título Original: Théo et Hugo dans le même bateau
Realizador:  Olivier Ducastel, Jacques Martineau
Elenco:
Geoffrey Couët, François Nambot, Mario Fanfani, Claire Deschamps, Miguel Ferreira
Queer Lisboa | Drama, Romance | 2016 | 97 min

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