Tom of Finland, em análise

Retratando a vida de um dos maiores artistas de ilustrações eróticas gay de sempre, Tom of Finland é um docudrama no limbo entre o classicismo e a irreverência.

TOM OF FINLAND CRITICA

Excluindo o seu tema central, Tom of Finland de Dome Karukoski é um docudrama biográfico extremamente convencional. De facto, até os seus mecanismos formalistas mais peculiares, como a montagem cronologicamente confusa da primeira metade e o constante uso de flashbacks, são reminiscentes de outros biopics de prestígio com pátinas de falsa originalidade como La Vie en Rose. Mas, a verdade é que, por muito conservador que seja o seu estilo, esta é efetivamente uma obra sobre Touko Laaksonen que, sob o pseudónimo que dá nome ao filme, foi um dos mais influentes e importantes artistas de erótica homossexual no século XX.

O filme começa ainda nos anos da 2ª Guerra Mundial, quando Laaksonen combateu, como todos os militares finlandeses, pela causa nazi e onde o artista teve muitas das experiências que, no futuro, viriam a inspirar o seu trabalho. Um desses eventos foi a morte de um paraquedista soviético que Laakonsen assassinou e que, por meio de uma consciência pesada e intrínseca ligação entre vergonha e desejo, acabou por ser imortalizado na figura híper masculina de Kake, a principal personagem das ilustrações de Tom of Finalnd. Antes de nos mostrar esse sucesso, contudo, o filme conta a vida do protagonista na sociedade repressiva da Finlândia do pós-guerra e a agridoce relação com sua irmã Kaija. Pelo caminho, vemo-lo fazer cruising em parques vigiados pela polícia, testemunhamos o desabrochar do seu romance com Veli, um bailarino que também captura o interesse amoroso de Kaija, e a sua descoberta do sucesso popular e maior liberdade sexual nos EUA durante os anos 70 antes do flagelo da SIDA na década seguinte, uma época na qual os seus desenhos ganharam uma importância sociopolítica muito mais ativa que outrora.

TOM OF FINLAND CRITICA

Ainda hoje em dia, as obras de Tom of Finland constituem pedras basilares para a imagética associada, por exemplo, à subcultura BDSM dentro da comunidade LGBT+ masculina e são usadas em inúmeros tipos de merchandise. Para além do mais, apesar de ter sido originalmente ostracizado pelos seus conterrâneos, Laaksonen e a sua arte pornográfica vieram a tornar-se uma parte respeitada da história finlandesa moderna e sua influência cultural, sendo que o artista até já teve direito a ser retratado em selos comemorativos do aniversário da sua nação entre outras honras póstumas.

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Contudo, nada disso invalida quão a sua vida e a sua arte, identidade, desejos, gostos e predileções são ainda algo que raramente associaríamos ao cinema mainstream. Indo ainda mais longe, são algo que a sociedade ocidental contemporânea prefere ter escondido nas sombras e na intimidade secreta da vida privada de cada um. Veja-se, por exemplo, o modo como a televisão americana de sucesso tende, em casos como Modern Family, a dessexualizar as suas personagens queer de tal modo que quase nunca vemos qualquer mostra de afeto físico ou expressão de desejo sexual, ao contrário do que acontece com personagens heterossexuais dentro das mesmas histórias. Tudo isto para dizer que Tom of Finland é um filme subversivo, mesmo quando a sua abordagem tenda a disfarçar isso ou a superficialmente contrariar tais noções.

TOM OF FINLAND CRITICA

A representação de atos sexuais fora da ilustração é algo bastante notório, por exemplo. Com algumas exceções escondidas entre montagens ou pudicamente obscurecidas por silhuetas e composições estratégicas, praticamente sempre que algum homem neste filme vai ter sexo com outro homem, o máximo que vemos é um beijo ou um movimento sugestivo antes da cena terminar abruptamente. A nudez, por sua vez, é praticamente inexistente, com a exceção da segunda cena de Tom of Finland onde vários soldados correm despidos na direção de um lago parcialmente congelado. Isto parece indicar uma contradição da ideologia sexualmente liberal do filme, mas tais assuntos não são simples questões binárias. A própria figura titular de Tom of Finland representa uma conflagração complicada de ideias referentes ao desejo homossexual e seu lugar na sociedade.

Por um lado, Tom of Finland foi um homem e é um filme que celebra a liberdade sexual. As cenas em que o artista vê pela primeira vez as ruas coloridas da Califórnia e as orgias junto à piscina dos seus anfitriões americanos realçam isso mesmo, injetando dinamismo visual a um filme que tanto tempo passou a sufocar na atmosfera cinzenta de uma Europa reprimida. Ao mesmo tempo, há uma componente transgressiva na arte e na existência de Laaksonen que não existiria numa sociedade que aceitasse toda essa liberdade, sendo que parte do erotismo dos cenários imaginados nestes desenhos devém da sexualização subversiva de elementos iconográficos de opressão híper masculina como forças policiais e uniformes militares.

TOM OF FINLAND CRITICA

Mas, com tudo isso dito, não deixa de ser verdade que alguns dos momentos mais emocionalmente reverberantes do filme são situações em que essa transgressão deixa momentaneamente de estar presente na mente das personagens. Falamos do momento em que Touko e Veli compram cortinados amarelos de mãos dadas e, simbolicamente, confirmam a sua devoção um para com o outro ao mesmo tempo que declarativamente ignoram a criminalização dos seus desejos pelas forças regentes. Outro exemplo é a coda em que o artista está numa convenção em que fala de celebrar todo o tipo de pessoas, homens que gostam de homens, femmes, daddies, e outros, enquanto ao seu redor parece que as suas ilustrações ganharam vida numa multidão de fãs vestidos a rigor.

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Estes não são momentos de subversão dentro do filme, mas, aliados à estética convencional de Tom of Finland, acabam por ser peculiares gemas de transgressão cinematográficas. No final, por muito desinspirada e irritante que o formalismo seco e prestigioso do filme possa parecer, o facto de uma história destas poder ser contada nestes termos é algo espetacular. Caminhando na corda bamba entre assimilação cultural e valorização da diferença, o filme nem sempre sucede, mas não deixa por isso de ser valioso e inspirador. Pelo menos, na sua atitude positiva em relação ao sexo e a fetiches, Tom of Finland é uma brisa de ar fresco num mercado puritano onde tais permutações da sexualidade humana são quase exclusivas de narrativas perniciosamente moralistas como a saga 50 Sombras de Grey.

TOM OF FINLAND CRITICA

Com tudo isto dito, Tom of Finalnd é um filme com sérios problemas, nomeadamente ao nível de ritmo e estrutura. Este é o raro exemplo de uma obra cinematográfica que devia ser muito mais comprida do que é, sendo que provavelmente era precisa mais uma hora para se conseguir desenvolver de modo satisfatório todos os elementos da história, desde factos históricos a dinâmicas interpessoais. Isso é um testamento à qualidade do que está em cena, especialmente ao trabalho dos atores que, como no caso de Pekka Strang como Touko, Jessica Grabowsky como Kaija e Lauri Tilkanen como Veli, conseguem delinear complexas relações e dimensões interiores que vão muito além do que o texto lhes oferece. Enfim, nem tudo é perfeito, mas uma coisa é certa, este filme pode abrir os olhos a muitas pessoas, nem que seja para a arte deliciosamente provocadora de Tom of Finland, que, como as palavras finais da obra nos recordam, ainda vive, mesmo depois da morte de Touko Laaksonen em 1991.

 

Tom of Finland, em análise
Tom Of Finland

Movie title: Tom of Finland

Date published: 14 de July de 2017

Director(s): Dome Karukoski

Actor(s): Pekka Strang, Lauri Tilkanen, Jessica Grabowsky, Seumas F. Sargent, Jakob Oftebro, Taisto Oksanen, Niklas Hogner

Genre: Drama, Biografia, 2017, 115 min

  • Claudio Alves - 70
70

CONCLUSÃO

Tom of Finland é um bom filme, tão beneficiado como fragilizado pela sua convencionalidade, e que, nas mãos de um realizador mais seguro e ambicioso, talvez pudesse ter sido um novo clássico do cinema LGBT+.

O MELHOR: A celebração de tipos de pessoas que raramente são representados com tanto respeito e reverência no grande ecrã.

O PIOR: A arritmia crónica da narrativa e o modo como essa catástrofe estrutural corrói muitos dos seus elementos mais interessantes, como é o caso da relação entre o artista, sua irmã e as ambições artísticas dos dois.

CA

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