Retrospetiva Jane Campion | Two Friends (1986)

A perda de uma amizade adolescente é a tragédia central à modesta e belíssima primeira longa-metragem de Jane Campion, Two Friends. Apesar de ter sido originalmente feito como um telefilme, este projeto acabou por ser exibido em cinemas, começando no Festival de Cannes de 1986.

 


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Amizades que duram desde a infância e se estendem pelas antípodas da idade adulta são algo que existe muito no cinema. Na vida fora da tela, a situação é um pouco diferente. Afinal, quantos de nós já tivemos grandes amigos, na infância ou na adolescência, que, com o passar do tempo, fomos perdendo? Quer seja por distância física, por tempo perdido, por crescimento pessoal ou outras razões, é rara a pessoa que não possa olhar para o seu passado e nele encontrar um amigo que, talvez sem a pessoa se ter apercebido sequer, desapareceu da sua vida. A fragilidade dos laços de afeto que nos ligam uns aos outros é talvez uma das tragédias mais banais da vida humana, mas isso não invalida o seu impacto ou a facada de melancolia que, ocasionalmente, pode ser desferida no coração de alguém perdido na nostalgia de um passado há muito deixado à deriva nas marés do tempo.

Na sua primeira longa-metragem, a cineasta neozelandesa Jane Campion focou-se nesta mesma tragédia humana, que de trágico só tem a melancolia que gera e a sua inevitabilidade diabólica. Para quem conhecesse as curtas-metragens da realizadora, tal temática não seria nada surpreendente. Afinal, a câmara de Campion sempre se mostrou interessada em capturar as minúcias da interação humana e o poder titânico de palavras nunca ditas e ações nunca feitas. Nesse sentido, é um pouco surpreendente que Two Friends seja o único argumento original que Campion alguma vez filmou sem o ter também escrito. A autoria do guião é de Helen Garner cujo trabalho não é particularmente extraordinário, se descontarmos a sua insana estrutura.

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Resumidamente, Two Friends conta a história de como, ao longo de nove meses, Kelly e Louise, duas melhores amigas de quinze anos, se afastam uma da outra até ao ponto em que a sua amizade é nada mais que um fantasma anódino. Não há nada de muito radical ou original nesta premissa, mas a forma como Garner e Campion estruturaram a apresentação de informação é uma bizarra mostra de génio dramático. O filme começa com os pais de Louise a irem ao funeral de uma jovem rapariga em junho. O evento fá-los refletir sobre a antiga melhor amiga da filha e, seguidamente, testemunhamos pequenos momentos na vida de ambas as jovens: Kelly numa existência quase nómada passada nas ruas e Louise na sua escola privada. Esta passagem do filme culmina com uma carta que Kelly envia à sua antiga melhor amiga que, por sua vez, não mostra grande interesse nas palavras da rapariga que, alguns meses antes, era o centro da sua vida. Daí, o filme retrocede para o mês de fevereiro, observamos cronologicamente os eventos desse mês na vida das duas raparigas e depois saltamos novamente para trás até janeiro, depois dezembro e, finalmente, outubro, uma altura em que as duas jovens ainda eram felizes.

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Algo que temos de esclarecer é que nem Campion nem a sua argumentista têm grande interesse em criar nesta narrativa uma situação de puzzle à la Christopher Nolan. Aliás, rapidamente se desvenda a chave para a separação das duas amigas, como que para dissuadir a audiência de tentar resolver o mistério da amizade perdida. Two Friends está, pelo contrário, muito mais interessado em levar os seus espetadores a participarem num simples exercício de observação, confiando que a complexidade das interações em cena e sua visceral humanidade sejam suficientes para capturar a atenção e imaginação das audiências.

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Veja-se, por exemplo, o modo como o estilo formal de Campion reflete essa mesma intenção. Tal como aconteceu com a sua curta-metragem Passionless Moments, a cineasta construiu Two Friends como uma colagem de momentos montados de tal modo que se torna óbvio que não existe qualquer relação direta de causa-efeito no seu desenrolar ou qualquer tipo de preocupação em manter uma coerente linha de continuidade espacial. Por outras palavras, este é um filme composto por cenas curtas que são filmadas, na sua grande maioria, com um só plano. Mesmo quando, nas partes mais tardias do filme, Campion inclui cenas com quatro planos distintos, há uma economia impressionante na sua edificação de cada instante. Criam-se assim tableaux do quotidiano cheios de significado que convidam o espetador a investigar as suas complexidades, deixando os seus olhos vaguear segundo o seu próprio ritmo pessoal.

Assim, a formalidade nunca trai o argumento, mas molda-o ao atenuar alguns possíveis píncaros dramáticos. O momento em que o pai de Kelly lhe diz que não quer que ela vá para o colégio privado de Louise, por exemplo, seria um instante de fogoso melodrama nas mãos de muitos outros cineastas. Neste caso, trata-se de uma modesta discussão familiar, filmada num só plano de costas para os intervenientes. O impacto emocional vem do facto de sabermos as consequências desta escolha, de estarmos cientes das implicações de tudo o que não é dito ou expresso pelas personagens. Há quem encontre nesta recusa do dramatismo textual, uma negligência da parte de Campion para com o subtexto social do filme (é claro que outro fator que separa as amigas é o facto de Kelly vir de uma família com muitos menos meios financeiros que Louise), mas o que a realizadora efetivamente evita é tornar qualquer uma das suas personagens em símbolos representativos de algo maior que elas mesmas. Tanto Kelly, como Louise e seus familiares são indivíduos tridimensionais, complicados e ocasionalmente contraditórios que nunca poderiam ser reduzidos a uma simples metáfora para um argumento de disparidades sociais. Não se trata de um apagamento de subtexto, mas sim de uma forma mais elegante e humana de o traduzir cinematicamente.

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Pela sua parte, o elenco é excelente na sua materialização destas personalidades distintas. As protagonistas são especialmente astutas na criação das duas jovens. Kelly pode ser mais pobre, rebelde e vestir-se segundo os rescaldados ditames do punk dos anos 80, mas a sua atitude ponderada face às reações que as outras pessoas têm do seu comportamento revela uma alma mais madura que a de Louise, cuja infantilidade petulante se torna evidente, mesmo que o seu comportamento tenda a ser mais recatado e conservador que o da amiga. O próprio arco emocional do filme reflete essas diferenças, passando mais tempo com Louise, ao mesmo tempo que é Kelly quem se afirma como o centro do drama. Numa das primeiras cenas do filme, a da leitura da carta de Kelly, Campion mostra-nos como Louise perde interesse nas palavras escritas da amiga e vai tocar piano. Ao mesmo tempo, a audiência continua a ouvir os conteúdos da correspondência narrada, em voz-off, por Kelly. Temos aqui a representação simultânea e quase combatente de duas perspetivas diferentes de duas pessoas desunidas. Este é o melhor momento de Two Friends e um dos primeiros grandes rasgos de génio na filmografia de Jane Campion.

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No final, Two Friends volta a mostrar-nos uma carta de Kelly para Louise, mas agora estamos ao lado da escritora. No auge da sua inocente amizade, as palavras de Kelly são ilustradas através de uma juvenil sequência de fantasia, onde Campion quebra o discurso estético do filme. Há uma alegria vibrante nesses instantes, e o filme termina pouco depois, num freeze-frame sorridente das duas jovens, inseparáveis e ignorantes da efemeridade da sua união. O cinema pode preservar tal momento para a eternidade, mas o coração humano não parece capaz de tais feitos. Como o início do filme nos salienta ao situar-se num funeral, Two Friends não é nenhuma investigação misteriosa ou uma autópsia, mas sim um elogio fúnebre a uma amizade que morreu. Essa sorridente imagem final e a jovial fantasia que a precede, não são nada mais que a foto que estaria junto ao caixão e as coloridas flores que a emolduram, para que todos se possam recordar momentaneamente de tudo aquilo que o tempo nos roubou, de tudo aquilo que se perdeu.

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Depois de Two Friends, Jane Campion viria a realizar mais uma longa-metragem ainda na década de 80. Desta vez, o projeto seria feito com o intuito direto de estrear nos cinemas e acabou por marcar a primeira vez que Jane Campion viria a competir na secção principal do Festival de Cannes. Não percas a próxima análise da nossa retrospetiva.


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