A Vida de Uma Mulher, em análise

Cronicando as desgraças de uma Baronesa na França do século XIX, A Vida de Uma Mulher é um admirável filme de época realizado por Stéphane Brizé.

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Até agora, a carreira do cineasta francês Stéphane Brizé tinha sido caracterizada por modestos dramas contemporâneos. O seu último projeto antes de A Vida de Uma Mulher foi mesmo um sôfrego exercício em realismo social chamado A Lei do Mercado. Premiado em Cannes, o filme deu a Brizé uma projeção internacional que nenhum dos seus outros trabalhos tinha até aí alcançado, pelo que as expetativas se encontravam elevadas para a obra seguinte do realizador. Surpresa das surpresas, o cineasta seguiu essa apoteose pessoal da pesquisa sobre mágoas intrinsecamente atuais, com o seu primeiro filme de época, uma adaptação do primeiro romance completado de Guy de Maupassant.

A história começa em 1819 e acompanha a vida da Baronesa Jeanne Le Perthuis des Vauds ao longo dos seguintes 27 anos. Quando a encontramos pela primeira vez, a jovem de 20 anos está de regresso à casa paterna após ter terminado os seus estudos num convento. Certo dia de verão, a chegada de um atraente Visconde falido à vizinhança altera o percurso da vida de Jeanne. Ela casa-se com Julien de Lamare por amor e com o consentimento dos seus pais que, mesmo assim, a alertam para a diferença financeira entre a filha e seu pretendente que passará a estar dependente da fortuna dos Le Perthuis des Vauds.

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Rapidamente o inverno chega às paisagens normandas onde o filme se desenrola e com o frio vêm também as primeiras sugestões de infelicidade matrimonial. Julien é um marido negligente para com a sua esposa, deixando-a sozinha numa casa gélida que ele não quer ver aquecida por dispendiosa lenha, assim como a proíbe sequer de ir visitar os vizinhos sem uma carruagem adequadamente marcada pelos símbolos heráldicos da família do seu novo senhor.  Numa noite particularmente agreste, a protagonista percorre a casa em busca do auxílio da sua criada Rosalie, uma amiga de infância e a única companhia humana que Jeanne tem na sua solidão, e acaba por ser testemunha da infidelidade de Julien. Fortemente sugerido pelas forças religiosas locais, o perdão acaba por se manifestar entre o casal, mas Julien não altera a sua atitude, traçando um fim trágico para a sua pessoa.

A anterior adaptação cinematográfica deste romance oitocentista deixou-se ficar por aqui no que diz respeito ao seu enredo, ignorando a segunda metade da obra de Maupassant, mas Brizé não leva a cabo tais excisões narrativas. O filme continua a acompanhar Jeanne, testemunhando a sua devoção para com o filho que teve com Julien, Paul de Lamare. Infelizmente, esta heroína literária continua a não ter muita sorte nas suas relações familiares e sofre o abandono filial acompanhado pelo definhar vertiginoso das suas fortunas. No final, a jovem que outrora percorreu a horta do pai com um sorriso na cara, torna-se num espectro enegrecido de lunático desespero maternal que vive às custas da caridade e consciência pesada de Rosalie.

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O leitor mais furiosamente anti spoilers poderá manifestar-se contra tal sumarização do enredo do filme, mas, para além de se basear num clássico literário com mais de um século de existência, A Vida de Uma Mulher constitui uma experiência cinematográfica onde a assimilação do enredo pela parte do espetador é dos seus elementos mais facultativos. A própria montagem, que é de longe o mais radical elemento do filme, vai contra noções clássicas de sequencialidade narrativa. Por exemplo, as imagens lamacentas da desgraça futura de Jeanne muitas vezes rompem com os quadros de felicidade inocente do início, do mesmo modo que o idílico romantismo dos primeiros meses de casamento entrecorta as passagens mais trágicas do resto do filme.

Há neste estilo de montagem, levado a cabo pela notável Anne Klotz, a sugestão da vida enquanto um encadeamento de momentos dramaticamente aleatórios que, no entanto, estão sempre ligados ao que veio antes e que virá depois. A complacência de Jeanne para com as irresponsabilidades financeiras do filho parece um eco revoltoso contra a frugalidade agressiva de Julien, enquanto as tardes passadas na companhia dos pais tornam-se num tónico nostálgico para o sofrimento da Baronesa na meia-idade empobrecida. Não estamos perante nenhum tipo de pesquisa psicológica sobre as mecânicas comportamentais desta mulher, mas sim a testemunhar uma observação passiva da sua existência, que pinta um retrato em grossas pinceladas de emoção sublimada.

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Mesmo a um nível menos preocupado com a estrutura macro do filme, esta intencionalidade impressionista é impossível de ignorar. A descoberta da traição de Julien, por exemplo, é feita num corte violento para uma cena quase abstrata de corpos a correr sob a luz débil do luar. A montagem prima a reação, o rescaldo, a recuperação emocional do choque, do mesmo modo que a maravilhosa prestação de Judith Chemla no papel principal é uma coleção de escolhas reativas aos tormentos da história. Isso deve-se grandemente à obra original de onde o filme foi adaptado, um típico testemunho oitocentista dos sofrimentos de uma mulher escrito por um homem que parece não conseguir imaginar a sua heroína como algo mais que uma figura a ser ciclicamente vitimada, uma parente afastada da Isabel Archer de Henry James ou da Fantine de Victor Hugo.

Com isso dito, Brizé consegue evitar tornar o seu filme em somente uma coleção dos melhores momentos do romance ou uma tradução estéril das suas ideias levemente misóginas. É certo que o uso constante de grandes planos, o formato 4:3, a sonoplastia rica em sons naturais e a reconstrução fiel, mas nunca ostentosa, do ambiente de época remetem para uma abordagem realista e íntima – uma transladação da estética habitual do realizador para um costume drama. No entanto, essa intimidade é deliberadamente superficial, nunca tentando perscrutar os mistérios interiores de Jeanne, deixando-se ficar pela admitida observação distante da resiliência e definhar da heroína na face de todas as suas mágoas e repressões sociais. Não é uma abordagem perfeita, mas é relativamente admirável.

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O que tal distância, paradoxal à intimidade imagética e interpretativa, também possibilita é o uso de um grande romantismo transversal aos tableaux mais naturalistas de A Vida de Uma Mulher. Quando é feliz, a vida de Jeanne é solarenga, cheia de flores, verdura, e raios de sol a trespassar a objetiva da câmara com rasgos de doirado. Quando é desesperada, a paisagem envolvente torna-se chuvosa, as suas roupas empapadas e escuras parecem querer ancorá-la na lama e o mar agita-se em crispações cinzentas. Não é nada subtil, mas tais escolhas estilísticas sugerem que A Vida de Uma Mulher podia quase ser um filme mudo rico em lirismo visual, o que, para uma adaptação literária tão presa a grandes diálogos sobre questões morais e religiosas acerca de verdade e perdão, é algo quase miraculoso e um testamento aos talentos do seu realizador.

 

A Vida de Uma Mulher, em análise
A Vida de uma Mulher

Movie title: Une Vie

Date published: 18 de August de 2017

Director(s): Stéphane Brizé

Actor(s): Judith Chemla, Jean-Pierre Darroussin, Yolande Moreau, Swann Arlaud, Nina Meurisse, Clotilde Hesme, Finnegan Oldfield

Genre: Drama, 2016, 119 min

  • Claudio Alves - 73
  • José Vieira Mendes - 70
72

CONCLUSÃO

Apesar de um trabalho exímio de montagem, A Vida de Uma Mulher não é uma adaptação da obra de Guy de Maupassant particularmente extraordinária ou surpreendente. Não deixa, contudo, de ser uma experiência cinematográfica comovente, ocasionalmente inteligente e inegavelmente bela.

O MELHOR: O trabalho já muito elogiado de Anne Klotz.

O PIOR: A verbalização da moral do filme numa desajeitada platitude proferida aquando do agridoce final de A Vida de Uma Mulher.

CA

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