Viver na Noite, em análise

Viver na Noite é um bom filme de gangsters, que consagra um Ben Affleck multifacetado com queda para a realização.

A moda dos atores virarem realizadores já não é de agora, mas não são muitos aqueles que se aventuram a dirigir e contracenar nos seus próprios filmes. Cedo, Ben Affleck, se terá deixado seduzir por um tipo de multifacetismo incaracterístico, talvez por não gostar de ser guiado por guiões alheios, talvez por se querer achar uma espécie de rei a travar as suas próprias batalhas. Brincadeiras especulativas à parte, a verdade é que Affleck, de facto, já possui um punhado de bons filmes sob a sua supervisão e, Viver na Noite, é mais uma segura rendição cinematográfica a juntar ao seu valoroso palmarés. Contudo, para esta fita “gangsteriana”, Affleck volta a beber da fonte inspiracional que o lançou a olhar para a objetiva da câmara em “Gone Baby Gone”, adaptando, mais uma vez, um argumento baseado no best-seller de Dennis Lehane – que aqui se debruça no antagonismo mafioso desses Loucos Anos 20.

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E para aqueles que apreciam um bom pedacinho de história, a fita de Affleck situa-se num tempo em que as pessoas apanhavam os cacos da Primeira Grande Guerra e só queriam viver de forma desenfreada; na vertigem do excesso; no auge da criminalidade; na fugacidade dos prazeres mais mundanos. Sobrevive-se de dia para se viver na noite; quebram-se as rotinas e as regras; veste-se a pele do lobo e da ovelha tresmalhada; brinca-se aos polícias e ladrões para ver quem é mais Al Capone e atinge o Sonho Americano. Numa Boston, assim, tão proibida, é precisamente contra qualquer tipo de ordem superior, que Joe Coughlin (Ben Affleck) – um “Irishman” cansado de ser escuteiro – decide enveredar pelo ramo da libertinagem, aquele que não costuma permitir um quadragésimo aniversário, mesmo que se tenha o apelido sortudo de um superintendente dos “Boston’s Finest” (Brendan Gleeson).

Affleck volta a beber da fonte inspiracional que o lançou a olhar para a objetiva da câmara em “Gone Baby Gone”, adaptando, mais uma vez, um argumento baseado no best-seller de Dennis Lehane.”

E os sarilhos logo vêm ao seu encontro como um carma inevitável, escondendo o descontrole e o medo numa gola de cabedal vincada para dentro e uma boina da classe operária que torna o olhar mais dramático. Mas, ao que parece, é este tipo de drama que apela a Affleck, deixando-se imbuir por esta linguagem obscurantista repleta de frenesim, que Dennis Lehane esculpe como um rastilho de pólvora. E Coughlin vai deixando arder os pavios certos nos segmentos narrativos mais oportunos, colocando-se destemidamente no epicentro de uma contenda entre fações da máfia italiana e irlandesa, assedegados em fazer fortuna com o tráfico clandestino de rum, cuja comercialização legal havia sido banida pela famosa Lei Seca. Mas lá voltamos nós aquela cama mal feita por todos os “Coughlins” que por aí andam a tropeçar em clichés atrativos, os mesmos que na demanda pelo poder encontram sempre um negócio de saias; um imbróglio emocional como se uma loiraça tivesse de ser o derradeiro troféu sem a qual o dinheiro não tem o mesmo valor. Emma Gould (Sienna Miller) é esse tipo de problema, só porque é a miúda de um barão mafioso, Albert White (Robert Glenister), e o resto que se segue poderão adivinhar…

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Sim, Ebulição! – dizem vocês e diz Affleck, que nos deixa em total desassossego daqui em diante, distribuindo toda aquela impertinência contida no seu rosto habitual de póquer, comummente associado à incapacidade de Affleck conseguir desvairar num mau da fita. Mas se o perfil do ator poderá beneficiar outro tipo de papéis, a resposta não é conclusiva, contudo responderemos nas palavras do realizador, que “os homens poderosos não necessitam de ser cruéis”. Não sabemos se Affleck é do tipo romântico, mas de certo que a sua visão açucarada desta Boston delinquente é como uma carta de amor aos clássicos dos anos 30 e 40 e, tal como em qualquer romance assolapado, existe sempre intriga, traição e violência – que aqui são explorados com enormíssima astúcia e pertinência. Basta Joe Coughlin cair nas redes de Maso Pescatore (Remo Girone) – o “Godfather” lá do sítio – que o coloca a administrar o seu negócio de licores em Tampa (Flórida) ao lado do seu parceiro espirituoso Dion Bartolo (Chris Messina), para enxergarmos o glamour e pinta daqueles antepassados que, fazem agora de Coughlin, um Lou Bega em potência.

“Coughlin vai deixando arder os pavios certos nos segmentos narrativos mais oportunos”.

Ele e Dion tomam completamente de assalto os bares e discotecas, metem no bolso o chefe da polícia local, Chief Figgis (Chris Cooper), que só oferece resistência aos intentos capitalistas de Coughlin, quando a sua frágil e inocente filha Loretta (Elle Fanning) decide começar a pregar a palavra do Senhor contra os malefícios do Homem. E enquanto houver álcool para consumir de penálti e subornos a entrarem e saírem pela porta do cavalo, é assistir a um Affleck fervilhante que se entende às mil maravilhas com as patetices quase sérias do seu “caramango” Messina, aqui um autêntico mecenas patrocinador moral de toda esta empreitada rumo ao enriquecimento ilícito. Até aparecer a bela Graciela (Zoe Saldana) para o fazer assentar e esquecer amores mal curados do passado, enquanto negoceia com o seu irmão um monopólio para si próprio.

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Mas o argumento, redigido por Affleck, não se afigura tão linear e tão egocêntrico como poderá soar à primeira vista, já que Affleck oferece a carpete e o relógio para cada personagem brilhar e exaltar na encarnação das suas personagens fictícias, dentro deste guião dinâmico com múltiplos focos de interação pessoal. Logo no arranque da fita, Affleck amarra o seu discurso para deixar que a voz paternal e autoritária de um Brendan Glesson ecoe numa sala iluminada pela beleza irreverente de uma Sienna Miller sem papas na língua; ou afasta-se por completo das luzes da ribalta para dar tempo de antena a uma Fanning angelical e mordaz, que injeta profundidade e conteúdo a um enredo com demasiadas notas superficiais. De resto, a sua persona nunca atinge a maturação prometida, eclipsando-se logo após o primeiro embate existencial com Coughlin, produzindo um efeito perfurante apenas por escassos instantes. E até mesmo a graciosidade de Saldana, embora ofereça à ação uma dose de entusiasmo ao ritmo de um jive no último terço da metragem, não chega para materializar os  intentos políticos de Graciela, resumindo a sua causa diplomática à construção de um albergue para mulheres e crianças cubanas desfavorecidas.

Affleck oferece a carpete e o relógio para cada personagem brilhar e exaltar na encarnação das suas personagens fictícias.”

Não é por isso de estranhar, que com a sobrelotação de intervenientes a reclamar um pedaço de atenção, a “única” pecha digna de registo, tem que ver com a forma como estes saem da grelha sob o pretexto mais apressado como se fossem esquecidos pelos superiores interesses de um “script” que se desfoca com a sua flexibilidade, ainda que nunca perca Coughlin do seu campo de visão. Mas não nos interpretem mal, pese embora estes percalços no seu caminho, Viver na Noite oferece-nos um “rodeo” de cenas memoráveis como aquela imagem de uma cruz em chamas mirada por três cavaleiros do Ku Klux Klan, ou os açoites copiosos na berma da cama do Chefe Figgis, pelas transgressões ingénuas da sua filha Loretta.

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A fotografia de Robert Richardson (O Aviador/Hugo) ajuda Affleck a respeitar a presença de cada peculiar intervenção, privilegiando os planos de imagem próximos da leitura labial, aonde, por vezes, a colocação da diversidade de sotaques possa minar ligeiramente a clareza do discurso. Mas Richardson gosta de iluminar convenientemente o seu objeto primacial, sugando para o ecrã toda a emoção facial, que Affleck bem tenta espremer em cada “take”. Sem dúvida, que estamos perante um filme com uma imagética atraente e luxuosa, aonde o lusco-fusco do fim de tarde num iate, se veste com todo o aprumo superlativo do guarda-roupa vibrante de uma Jacqueline West (O Renascido/Argo); por entre as ruas assaltadas de Boston e os charutos de Cuba; Affleck tenta retratar aquela época histórica com um filtro e uma roupagem contemporânea. Harry Gregson-Williams encarrega-se de infundir no ambiente uma pujança negra e calculista, que possui uma certa qualidade romântica no seu substrato, invocando diferentes atmosferas num controle exímio da cadência dos acontecimentos.

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Viver na Noite não será, com toda a certeza, o melhor trabalho do ator americano na cadeira de cineasta, mas também não cremos que seja o pior, encontrando-se a caminho da grandeza. É ambicioso, tem uma escala e amplitude respeitável para uma temática desta natureza, quiçá uns furos acima de outras fitas do género, mas esforça-se demasiado em querer aglutinar com fluidez demasiadas peças numa só engrenagem. Contudo, os prós tendem a suplantar os contras, muito por causa das prestações de altíssimo nível, e mesmo aquelas de curta passagem deixam marca. Viver na Noite é uma obra bastante sólida, regada com perseguições automobilísticas excitantes e rixas furiosas de limpar o sebo, que nos deixam na ponta do assento com elevadas doses de adrenalina, suspense, e umas quantas surpresas inesperadas pelo meio.

P.S. – “This is heaven, right here. We’re in it now.”

O MELHOR – As interpretações de bom nível quer dos intervenientes a tempo inteiro, quer dos que aparecem pontualmente; atmosfera rica, luxuosa, com grande atenção ao detalhe; diálogos que não se esgotam na superficialidade da temática, possuem uma mensagem moral inerente à finalidade última do enredo; bons “set-pieces” de ação com reviravoltas e pontos de suspense bem colocados que servem os intuitos sombrios da trama.

O PIOR – Casting demasiado numeroso com diversas intervenções acaba por prejudicar a fluidez e consistência do guião; o aparecimento e desaparecimento algo forçado de certas personagens despoja a narrativa de alguma pujança a espaços; relativa falta de clareza na colocação dos diversos sotaques.



Título Original:
Live by Night

Realizador:  Ben Affleck
Elenco: Ben Affleck,  Chris Copper, Zoe Saldana, Elle Fanning
NOS | Drama, Crime2017 | 128 min

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