A Dupla Vida de Véronique, Mini-Crítica
<<Ciclo Krzysztof Kieslowski | Três Cores: Azul, Mini-Crítica>>
A Dupla Vida de Véronique é um sonho sobre a Europa preservado em cristalino âmbar. Esta obra-prima de Krzysztof Kieslowski existe à parte do tempo e da realidade material, num plano onde o misticismo, a magia e o espiritual são inseparáveis companheiros da existência humana.
Após a finalização da sua magnum opus, Dekalog, Kieslowski filmou A Dupla Vida de Véronique. No seguimento de ideias características da sua filmografia, o autor polaco concebeu uma obra onde a inefável ligação entre seres humanos, suas ações e a humanidade que os engloba tem lugar de destaque. Ele fez isto a partir da história improvável de duas mulheres aparentemente idênticas, Véronique e Weronika, uma francesa e outra polaca. Kieslowski desfragmenta a mesma alma em duas figuras humanas, que, para além de partilharem nomes quase idênticos, partilham a mesma atriz, Irène Jacob. O seu encontro fugaz tem algo de metafísico e o subsequente desenvolver das suas vidas inexplicavelmente ligadas é tão complexo na sua simbologia como belo na sua relativa simplicidade humana.
A Dupla Vida de Véronique desenvolve-se assim num jogo de símbolos e reflexos sobre reflexos, criando um mundo de misticismo e autorreflexão espiritual. Na indefinição e intrínseco mistério, tanto do enredo como das figuras centrais, Kieslowski abre as portas à análise e ponderação da audiência, simultaneamente convidando-a a se deixar levar pela hipnótica beleza desta ambígua e narrativamente opaca pintura cinematográfica.
Uma dimensão simbólica difícil de ignorar é a existência das duas figuras centrais como personificação da Europa. Kieslowski foi sempre um realizador fortemente político, e os seus derradeiros filmes têm como tema unitário a Europa contemporânea à sua criação. Um continente recentemente unificado depois de décadas de separação e onde germinavam sonhos esperançosos de um futuro idealizado. Véronique e Weronika veem o mesmo destino trágico a abater-se sobre si, como que a uni-las espiritualmente. As suas escolhas são distintas e por consequência também o é o seu final, mas mais não se poderá dizer sem revelar demasiado a quem não tenha visto ainda o filme, e há poucos prazeres cinemáticos tão intensos como descobrir a intrínseca beleza humana contida na opaca história deste filme.
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O filme não impressiona somente pela sua complexa conceptualidade, sendo que a um nível interpretativo e formal é difícil encontrar qualquer imperfeição. De particular destaque é a música simplesmente divinal de Zbigniew Preisner e a fotografia de Slawomir Idziak, que captura o mundo do filme de luxuriantes filtros, que tornam a Europa da Dupla Vida de Véronique num mundo quase fantasioso e místico, onde a inexplicável magia do enredo parece ser perfeitamente orgânica. No final, esta obra contém em si uma estranha magia cinemática, invulgar e transcendente na sua humanidade, e preciosa na sua delicadeza.
O PIOR – Alguma da simbologia de Kieslowski tem a tendência a cair no óbvio, mas, mesmo assim, há algo de imensamente belo em momentos tão declarativamente simbólicos como a criação de uma marioneta à imagem de Véronique, numa expressão de amor.
O MELHOR – A música de Preisner é de uma indescritível beleza e avassalador poder, como se o compositor polaco tivesse capturado em forma musical o grito de liberdade de uma Europa unificada, simultaneamente destruída e renascida das cinzas das injustiças passadas.
CA
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