Quarta Divisão, em análise

poster quarta-divisao Titulo: Quarta Divisão

Realizador: Joaquim Leitão

Atores: Carla Chambel, Sabri Lucas, Paulo Pires, Cristina Câmara, Adriano Luz

ZON | 2013 | Drama | 116 min

Classificação

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Tino Navarro na produção e Joaquim Leitão na realização. E pronto, quem quisesse preencher uma quota de “Críticas a Filmes Nacionais” poderia ficar pela referência ao regresso desta dupla que trouxe grandes sucessos, de crítica e bilheteira, como ‘Uma Vida Normal’ (1994), ‘Adão e Eva’ (1995), ‘Tentação’ (1997) e ‘Inferno’ (1999).

Estaria então expresso o maior argumento para promover a ida dos portugueses ao cinema, com o intuito de verem uma produção nacional. Estaria, se o filme não fosse ‘A Quarta Divisão’ e se não houvesse uma parafernália de argumentos a favor de um filme que milita, destacadamente, na Primeira Divisão do cinema português contemporâneo. Querem saber porquê? Então venham connosco por aí abaixo…

O filme começa com o alegado desaparecimento de Martim Cabral e Melo, uma criança de 9 anos, do colégio privado que frequentava. Descendente de uma família rica e poderosa, conforme se pode antever pelo burguesismo da conjugação de apelidos, a comunicação do desaparecimento é feita pela sua mãe (Cristina Câmara) à subcomissária da brigada de investigação criminal da 4ª divisão da PSP, Helena Tavares (Carla Chambel), uma espécie de anti-heroína policial, conhecida pela frieza emocional ao lidar com criminosos, aplicando-lhes uma severa austeridade com a qual o comum cidadão português poderá estar mais facilmente de acordo, quando comparada com a que advém de S. Bento ou do Santo Condestável.

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Esta comparação não serve propósitos de propaganda cinematográfica ao filme escrito e produzido por Tino Navarro, já que o próprio argumento se alicerça no caos social do Portugal atual, através da enunciação do desconforto, descrédito e desprezo que os próprios agentes policiais sentem no seio de uma crise para a qual há muitas provas e ainda mais vítimas. Greves, manifestações e Assembleia são palavras que se repetem nos primeiros 20 minutos de filme, tendo o condão de fornecer elementos que não só aprofundam a psique das personagens, como também humanizam aqueles que, geral e constantemente, são demonizados nos dias em que as cidades portuguesas enchem as suas ruas de descontentamento, impaciência e, por vezes, radicalismo. E quem quiser pensar mais sobre esta propositada e feliz falta de subtileza argumentativa na caracterização do contexto social português, decerto interrogar-se-á se Gorki não estaria efetivamente certo, quando disse que se o trabalho for prazer a vida é bela, contudo se for imposto a mesma não é mais que escravidão.

Mas voltando ao filme, desde o primeiro contacto entre Helena e a mãe do desaparecido, Olga Cabral e Melo, que o espectador fica com a sensação de que há uma intriga mais íntima, familiar e profunda neste caso policial. Isso pode ser motivo para que subitamente nos tornemos também “detetives” deste caso cinematográfico que propõe uma interação com o público, que deveria ser mais recorrente no Cinema Português. Mais intensa se torna essa sensação ao travarmos conhecimento com o taciturno e arrogante Felipe Cabral e Melo (Paulo Pires), um antigo juíz, agora feito um alto gestor da banca. Com possíveis aspirações a Ministro da Justiça, a personagem simboliza, em termos redutores, a subversão humana que dinheiro, fama e poder recriam ciclicamente. Apesar de tudo, o filme não cai no cliché de descrever a sua relação com o filho Martim como distanciada e desapegada, mostrando a real preocupação de um pai que vive para o filho, sem prejuízo de mediatizar ainda mais o seu nome dadas as circunstâncias.

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A complexidade narrativa da trama começa a crescer a par da investigação, o que é deveras surpreendente para um filme que milita deliberadamente no circuito comercial. Essa teia é bem construída, não tanto pelo argumento de Navarro, que está longe da perfeição, mas sim pela montagem de Joaquim Leitão, que confere um ritmo de premência e instabilidade lúcidas face a uma investigação que tem tudo para resultar em desilusão e depressão. É que embora este seja um filme que assumidamente milita no circuito comercial, acaba por veicular valores e mexer em feridas sociais, construindo uma identidade própria no panorama nacional, firme e crua, que inequivocamente o torna mais completo, ainda que com algumas pretensões moralistas, talvez dispensáveis.

Os níveis de interpretação do elenco são díspares, com Carla Chambel a ter uma prestação boa e eficiente em grande parte do filme, por oposição a Cristina Câmara, cujo trabalho em ‘Tentação’ e ‘Inferno’ (só para mencionar antigos trabalhos com Leitão) deixam saudades. Paulo Pires merece uma menção honrosa por todo o trabalho corporalmente expressivo da sua atuação, assim como Sabri Lucas, que interpretando Carlos, o parceiro de Helena, ascende a um nível muito mais meritório do que o de simples suporte à protagonista, sendo muitas vezes o filtro racional que compensa a sensibilidade emocional e tenacidade desta última, na prossecução de um verosímil e intricado processo de investigação. Adriano Luz como comissário da PSP acaba por ser uma escolha acertada, dada a falta de profundidade de uma personagem marcada pelo estereótipo da burocracia e dos jogos de poder da administração interna; um ator com menos talento transformaria a personagem em algo aberrante de assistir nas poucas cenas em que aparece.

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Contudo, é exatamente por estar bem interpretado em diversas situações difíceis e sensíveis, com uma projeção de voz e dicção de fazerem orgulhar a Língua Portuguesa (tão recriminada pela sua artificialidade na grande tela), que certas cenas a que já estamos habituados a assistir nos media e na cinematografia mais ousada das produções europeias e do circuito independente americano, nos deixam inquietos e apreensivos; a atmosfera do filme quando a investigação começa a entrar nos meandros da pedofilia é prova disso. E o que não poderíamos pensar que fosse algo de novo, único e chocante, afinal fomenta o receio de que uma realidade que supostamente já conhecemos, esteja demasiado próxima e sem limites para a sua perversidade e imoralidade.

A fotografia do filme é extremamente competente, com especial saliência estética nas partes do terceiro acto rodadas nos Açores e a banda sonora excede todas as expectativas, ora nas transições, ora intensificando, estabilizando ou suavizando os registos mais dramáticos da história. Aliás, na realidade toda a sonoplastia é um mecanismo de climatização fílmica, dada a sua presença tão autêntica.

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Para finalizar, há questões que simplesmente não podem deixar de ser levantadas e discutidas, como  elevar a experiência de ver um Filme Português, realmente bom e focado em sê-lo, à categoria de “interessante”, “repetível”, quiçá “fantástica”. Já foram dados alguns argumentos para que vão ver o filme e quem se dignar a considerar a hipótese de dar 6,60€, sem descontos, por um bilhete para o mesmo, irá certamente perceber que, por entre as suas pontuais falhas, existem outros tantos a apontar em seu favor, dado o contexto do Cinema em Portugal.

Adotando uma visão economicista, se a atividade de consumo significa dar “ordens de produção”, então justifica o gasto, e bem, saber que parte do valor do bilhete vai para “alguéns” que ainda têm a esperança de ajudar este país a evoluir para um patamar cultural, apenas por negligência crua e indesculpável não ocupado há mais anos. Dá para sentir que se fez uma pequena parte por algo que se gostava de ver Mais, Maior e Melhor.

Parafraseando o primeiro filme policial de Joaquim Leitão, em muitos aspectos Portugal não tem queixas para mostrar; tem apenas vítimas. Artistas acabam por ser os que estão na linha da frente, todavia as piores vítimas são sempre aquelas que teimam em nem sequer pensar na hipótese de o serem. Aquelas que tão habitualmente fazem por destruir, desvalorizar, desqualificar, desabonar e devastar a débil existência do Nosso Cinema, que mais frequentemente se deve, não à falta de qualidade, mas sim à falta de oportunidade e, sobretudo, de vontade; vontade de credibilizar aquilo que já sofreu a rotulagem de deformidade. E é exactamente por causa deste limbo cultural em que se encontra a nossa mentalidade, no geral, que a única conclusão que se pode tirar é, e perdoem-me o cliché, que essas vítimas… Somos nós.