Gravidade, em análise

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  • Título Original: Gravity
  • Realizador: Alfonso Cuarón
  • Elenco:  Sandra Bullock, George Clooney
  • Género: Drama, Ficção Científica, Thriller
  • CTW | 2013 | 90 min

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Se se debate com problemas de ansiedade, aconselhamos que prossiga com precaução ao longo do visceral novo filme de Alfonso Cuáron – o game changer de que se fala e que lhe restaurará a crença nas infinitas possibilidades do Cinema.

Há pouco mais de 50 anos, o espaço era sinónimo de possibilidade e esperança. Ansiávamos o infindável desconhecido desde que a evolução nos permitiu encarar o céu, e desde aí olhávamos, sem realmente vermos, e deixávamo-nos encantar pelo universo de cenários, hipóteses e eventualidades. O limite já não era o céu, mas o infinito.

Quando em 1961 o primeiro homem foi enviado para o espaço, outras dimensões começaram a ser desenvolvidas e histórias como nunca tínhamos ouvido começaram a ser contadas. De repente, a infinitude do espaço oferecia também um vazio imenso, e um lugar aterrorizador sem vida ou possibilidade dela, e onde o silêncio absoluto é a única companhia.

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Gravidade” explora todas essas dimensões, fazendo-se regir, acima de tudo, pelo medo de morrer num buraco negro, na solidão, sem uma alma para fazer o nosso luto.

A Dra. Ryan Stone é uma brilhante engenheira médica na sua primeira missão espacial, com o astronauta veterano Matt Kowalsky, no comando do seu último voo antes de se reformar. Mas numa caminhada espacial que se adivinhava de rotina, dizer que as coisas começam a correr mal seria um descomunal eufemismo. Aos poucos, o medo transforma-se em absoluto pânico, a tranquilidade é substituída pelo caos, e a beleza etérea pela destruição. Não há descanso, alívio ou rede de segurança. Apenas o vazio.

Serão escritos livros, teses e ensaios sobre a mestria de “Gravidade”, desde a fabulosa mistura de som, aos efeitos visuais impecáveis que lhe emprestam um aspeto foto-realista inacreditável… o filme de Alfonso Cuarón é uma série interminável de decisões inspiradas que se transforma num produto único, diferente de qualquer outra coisa que já tenhamos visto.

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Não obstante as boas indicações dadas pela sua rica e diversificada filmografia – na qual se incluem o sensual road movie “E a tua Mãe Também” e o fabuloso thriller “Filhos do Homem” – nada podia preparar-nos para o nível de engenho e profundo conhecimento do meio que Cuarón demonstra em “Gravidade”.

O realizador mexicano também não é propriamente um estranho às possibilidades da tecnologia, se recordarmos que realizou aquele que é considerado por muitos como o melhor filme da saga Harry Potter – “Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban”. Não obstante, não traz a bagagem de um Steven Spielberg ou James Cameron, com longas carreiras de virtuosismo técnico com espelhado sucesso na bilheteira. Apesar das provas dadas em produtos da mais alta qualidade como “E a Tua Mãe Também” e “Filhos do Homem”, é realmente intrigante o que Cuarón conseguiu fazer, reinventando as possibilidades do que um filme dos grandes estúdios pode oferecer. O que daqui se conclui é que “Gravidade” não foi apenas feito por um realizador. Foi conjurado por um feiticeiro.

A sequência inicial de 13 minutos sem cortes vai obriga-lo a recolher o queixo do chão e repô-lo no seu lugar original. Na verdade, a duração dos planos de uma forma geral aumenta a pressão no peito do espectador que se remexe no lugar, ao lado de Bullock, para ganhar fôlego. Quando estamos à beira de um ataque de pânico, Cuarón corta a cena, e conseguimos finalmente respirar. Os planos fluídos orientam-nos por um espaço onde não há limitações de movimento ou posição e sentimos que a câmara pode ir a qualquer lugar. É esmagador começar sequer a imaginar como a maior parte das cenas terão sido concebidas…

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Todavia, “Gravidade” não é apenas magnificência visual e técnica – além da envolvente aventura de sobrevivência, o quadro geral reflete uma metáfora maior sobre o percurso e existência humanos – as adversidades, o ponto de rutura e a possibilidade de renascimento. Stone anda à deriva, de uma forma metafórica e literal, e precisa de voltar a assentar os pés no chão e renascer, emergindo da sopa primordial e reaprendendo a sua posição no mundo.

Eventualmente, e depois de uma primeira parte de cortar a respiração – literalmente – “Gravidade” orbita num sentimentalismo exagerado que quer, à força de histórias de vida devastadoras e cenas inspiradoras pouco subtis, infundir numa história simples, poderosa e delicada nas suas totais significâncias e significados, um peso emocional quase intrusivo. São os “Hollywodismos” a meterem-se no caminho, e um filme tão excitante e possante não precisava disso.

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Mas no final de contas, estas acabam por ser queixas relativamente menores, que apesar de lhe recusarem o apelo máximo e chamado perfeito, não lhe negam o estatuto absolutamente estelar.

No elenco, Clooney empresta a Kowalsky o seu charme próprio e mistura a quantidade certa de humanidade e coragem improvisada. Sem falhas, o galã não é, contudo, a atração principal. Na interpretação que já é destacada como “a performance da sua vida”, Sandra Bullock contrabalança na perfeição os sentimentos de medo e coragem, numa entrega física e emocional notável transpostas para uma interpretação contida mas poderosa, e da qual, certamente, ainda ouviremos falar muito este ano.

A recomendação de ver “Gravidade” em IMAX ou, pelo menos em 3D, é imperativa. De cabeças cansadas da repetida utilização leviana da tecnologia, garantimos – foi para isto que o 3D e o IMAX nasceram. A sua viagem vai além das maravilhas técnicas de “A Vida de Pi” ou mesmo “Avatar”, simplesmente porque nestes casos, estávamos sempre cientes da presença da tecnologia. Em “Gravidade” a tecnologia é invisível. Não seria surpreendente descobrir que, afinal foi mesmo filmado no espaço, qual milagre primoroso e artístico – tudo é real, fotográfico, afinal todos estamos a sentir o que ali se passa. Entretanto, todos sabemos que tal é impraticável, mas aí jaz a beleza que julgavamos perdida do meio.

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Todos os dias ouvimos dizer que o Cinema, como o conhecíamos, morreu. De alguma forma, e por razões várias que não vale a pena enumerar como uma lista de compras, o Cinema vinha perdendo o seu grande encanto para a grande audiência.

Percorremos um longo caminho desde a mítica sessão de “Chegada de um Comboio” dos Lumière, do final do séc. XIX. Num plano de 50 segundos, um comboio avança em direção diagonal à câmara, chega a uma estação e recebe passageiros. Numa reação que hoje nos parece curiosa e inacreditável, os espectadores saíram em pânico e a correr do cinema, simplesmente porque não estavam prontos para a fantasia da ilusão cinematográfica.

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Mais de um século depois, deixamos de crer nas suas possibilidades e nos mundos que cria. Deixamos de ver a sala de cinema como um lugar único, onde tudo desaparece e nos submergirmos num universo único e inalcançável por qualquer outro meio. No fundo, deixamos de acreditar.

Gravidade” é a bomba de oxigénio que pode fazer ressurgir o Cinema no lugar onde pertence – entre as estrelas, inserido num fantástico mundo de possibilidades que nos poderão arrebatar. Transcende a forma de um filme e torna-se uma experiência – uma experiência absolutamente visceral. Nesse sentido, mesmo com as suas falhas, é, em absoluto, uma revelação e uma restauração da fé.

Hoje voltamos a acreditar.

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