lindos dias

Lindos Dias!, à procura de um positivismo beckettiano

Um novo olhar sobre a peça “Happy Days” de Beckett subiu ao palco no teatro S. Luiz e Sandra Faleiro tenta trazer uns Lindos Dias(!) meta-teatrais numa estrutura que se desmorona.

Um despertador toca e Winnie (Cucha Carvalheiro), presa pela cintura, ergue-se do topo dos destroços de um velho teatro. O cenário da peça de Beckett é alterado e a diegese toma lugar numas ruínas. Só esta mudança deixaria Samuel Beckett às voltas na tumba sendo o dramaturgo conhecido pelo seu quase fascismo artístico. Todas as suas peças foram orquestradas com o maior cuidado para que cada elemento tenha um específico impacto junto do espectador. A peça “Happy Days”, de 1960, chega a indicar em que zonas do texto deverá a atriz respirar e quantos segundos terá cada pausa no discurso. O escritor irlandês, premiado em 1969 com o Nobel da literatura, descreveu claramente o cenário da peça, sendo este drasticamente alterado na encenação que no domingo abandonou os palcos da sala estúdio Mário Viegas do teatro municipal São Luiz. No entanto, se todos os clássicos forem seguidos à risca, não se tornarão os teatros em museus em vez de serem um centro de criação artística?

lindos dias
Lindos dias!

A peça “Lindos Dias!” segue, textualmente, a melancolia do caminhar para a morte patente na maior parte das obras de Beckett. No entanto, nesta encenação, Sandra Faleiro tenta realçar uma posição política perante as políticas teatrais vigentes acabando por despir a diegese da sua génese: o absurdo e vazio da existência humana. Winnie é, neste revisitar de Beckett, retratada como uma personagem que contempla o seu próprio estatuto de persona enquanto é engolida pelo teatro ficando apenas a sua cabeça descoberta. É escolhido um tom otimista obstinado e a componente trágica do original texto tragicómico é propositadamente abandonada, sendo antes escolhida a farsa teatral. A representação por parte de Cucha Carvalheiro (Winnie) e Luís Madureira (Willie) explora a ironia através de clown, tentando incitar o riso sob o pretexto de que “o homem é o único animal que ri pois é o único que tem a consciência da própria morte”. Um equilíbrio difícil de atingir entre o teatro do absurdo e o naturalista é este em que “Lindos Dias!” joga.

É alcançado um positivismo através da performance que se torna paradoxal com o próprio texto original reproduzido em cena: Beckett explora de forma dilacerante o rastejar de Willie pelo palco e a tentativa de Winnie de estabelecer uma relação com o seu marido. A solidão é algo que está constantemente a ser puxada à fala neste monólogo, não do ponto de vista técnico, mas do ponto de vista situacional. Na peça original, Winnie nunca consegue encontrar felicidade no presente, apenas nos dias que passaram ou que virão. Beckett brinca com o poder das palavras quando escreve “esperar pelo dia, é o que me vale quando me sinto em baixo” ou “que lindo dia terá sido este!”. Por outro lado, Sandra Faleiro usa estas mesmas frases para construir, juntamente com Cucha Carvalheiro, uma personagem que pensa num futuro feliz, numa melhoria de situação. Há, portanto, uma dissolução da personagem original de Winnie e é escolhida uma leitura sobre o texto onde esta mesma persona trata o envelhecimento e o modo como ocupa o tempo até ao fim da sua própria existência com otimismo.

lindos dias
Lindos dias!

Esta encenação, nas palavra dos próprios artistas, tenta não passar uma mensagem clara, deixando a peça em aberto para que o próprio publico decida o que quer ver e ao que pretende dar valor. Apesar disso, esta coprodução entre o S. Luiz e Causas Comuns acaba por fazer uma leitura literal do original de Beckett, esquecendo toda a ironia e a sua intenção crítica. É uma adaptação do original de Beckett o que, na verdade, não é algo a repreender pois resulta apenas uma escolha dramatúrgica. Quer a obra de arte seja do agrado do leitor/espectador/ouvinte/etc., ou não, o momento de exposição a uma obra dramática de ficção trata-se de um momento de partilha entre o receptor e o emissor. O modo cuidadosamente selecionado para contar uma certa narrativa incute no público uma percepção das personagens e dos próprios acontecimentos que é, a partir da dramaturgia, manipulado pelo criador. O momento de exposição a uma obra é uma ocasião em que o público tem contato como uma projeção da realidade do autor num outro conceito de real. Esta é uma oportunidade de transmutação de experiências entre pelo menos três indivíduos, ou três coletivos: o criador original, o primeiro receptor que, por sua vez divulgou a sua percepção acerca da obra, e o público alvo final. Este ciclo não tem propriamente um fim no último elo da corrente, pois o público alvo poderá continuar a produção dramática perpetuando o divulgar de uma obra sob opções dramatúrgicas inevitavelmente diferentes.

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