Cécile, interpretada pela cantora-atriz Juliette Armanet. ©2025TopShot Films-Les Films du Worso-Pathé Films-France3 Cinéma

“Partir un jour”, de Amélie Bonnin, o filme de abertura é uma comédia agridoce sobre regresso, memória e as canções que nos habitam | Diário do Festival de Cannes 2025 (Dia 2)

Partir un jour”, de Amélie Bonnin, foi o filme escolhido para abrir a edição de 2025 do Festival de Cannes. Trata-se de uma comédia agridoce onde as canções da cultura popular francesa e não só, pontuam uma história de regresso, reconciliação e transformação, protagonizada pela cantora Juliette Armanet.

O Festival de Cannes 2025 arrancou oficialmente há pouco com um toque de nostalgia pop e emoção contida com Partir un jour, a primeira longa-metragem da realizadora francesa Amélie Bonnin. A abrir oficialmente esta 78.ª edição do maior festival de cinema do mundo, chega-nos um objecto cinematográfico pequeno e uma experiência rara num festival às vezes até tão sisudo: uma comédia dramática que mistura melodias da cultura popular com dilemas íntimos, numa história sobre regressos, reconciliações e identidades por definir.

Partir un jour
Bastien Bouillon e Juliette Armanet, os dois protagonistas. ©2025TopShot Films-Les Films du Worso-Pathé Films-France3 Cinéma

Um história de encontros desencontros

No centro da narrativa de Partir un jour está Cécile, interpretada pela cantora e agora também atriz Juliette Armanet. Depois de vencer o programa Top Chef e prestes a inaugurar um restaurante gourmet em Paris, com o namorado, vê os seus planos abruptamente interrompidos por um telefonema: o seu teimoso pai, um dono de restaurante de estrada (La Escale, onde param a maioria camionistas) e exímio cozinheiro na sua terra natal, sofreu um ataque cardíaco. É o início de um regresso não só físico, mas emocional, de Cécile, à pequena aldeia onde cresceu e de onde quis fugir a todo o custo. Entre reencontros com o passado — nomeadamente com Raphaël, um amor de juventude interpretado por Bastien Bouillon — e a descoberta de uma gravidez inesperada, Cécile vê-se confrontada com memórias que julgava esquecidas e perguntas difíceis sobre o que significa vencer, envelhecer e pertencer.

VÊ TRAILER DE “PARTIR UN JOUR”

Uma homenagem musical à memória coletiva

Inspirado numa curta-metragem homónima de 2022, premiada com um César, Partir un jour transforma-se agora numa obra mais ampla e complexa, mantendo o mesmo espírito lúdico. O título remete diretamente para uma canção dos 2Be3, um ícone da pop francesa dos anos 1990, e as referências musicais espalham-se por todo o filme, com temas de Dalida, Nougaro, Stromae, Yannick Noah e até Céline Dion. Mas mais do que um musical tradicional, esta é uma história onde as canções emergem organicamente — por vezes de forma inacabada — como prolongamento emocional das personagens. Amélie Bonnin define o filme como um “padrão da cultura popular”, evocando influências como É Sempre a Mesma Cantiga, de Alain Resnais, ou Les Chansons d’amour, de Christophe Honoré. Tal como nesses filmes, as sequências musicais não exigem fantasias nem grandes coreografias: são discretas, humanas e profundamente tocantes.

Partir un jour
Cécile (Armanet) depois de ganhar o Top Chef. ©2025TopShot Films-Les Films du Worso-Pathé Films-France3 Cinéma

As mulheres aos 40: outras narrativas possíveis

Ao trocar os papéis da curta original — onde era um homem quem regressava à terra natal — Bonnin afirma a necessidade de explorar experiências femininas com a mesma profundidade. Cécile é uma mulher de quase 40 anos, com sucesso profissional, que carrega dúvidas, feridas e desejos ainda por realizar. “Há questões que só poderiam ser contadas por uma mulher”, explica a realizadora, que já tinha sublinhado no seu discurso de agradecimento nos Césares: “Pode-se ter quase 40 anos, filhos, cabelos brancos e ainda sentir que tudo está a começar” e essa é a base de Partir un jour.

Partir un Jour
Dominique Blanc, interpreta a mãe de Cécile. ©2025TopShot Films-Les Films du Worso-Pathé Films-France3 Cinéma

Um elenco muito afinado

Juliette Armanet, que já se destacava na curta-metragem Partir un jour, revela aqui um surpreendente talento como atriz, dando corpo e voz a uma mulher em transição. Ao seu lado, Bastien Bouillon (reconhecido por A Noite do Dia 12 e Conde de Monte Cristo) oferece uma prestação contida mas intensa, enquanto François Rollin e Dominique Blanc interpretam os pais de Cécile com uma carga emocional que oscila entre a dureza e a ternura. A realização é complementada pela direção de fotografia sensível de David Cailley, que capta a melancolia dos lugares e a textura do tempo com uma luminosidade quase táctil. Já a montagem aposta em justaposições temporais subtis, onde o passado e o presente coexistem sem rupturas.

Partir un jour
Uma história de amores do passado. ©2025TopShot Films-Les Films du Worso-Pathé Films-France3 Cinéma

Uma abertura muito promissora

Com Partir un jour, Amélie Bonnin torna-se apenas a quarta mulher a assinar o filme de abertura do Festival de Cannes. A escolha é simbólica e significativa: marca não só uma aposta em novos talentos do cinema francês, mas também uma celebração das histórias íntimas que se escrevem a partir de canções, encontros e despedidas. Num festival onde tantas vezes se celebra o grandioso, Bonnin propõe um cinema da intimidade, da memória e das notas que ficam no ouvido — e no coração — muito depois de o genérico final terminar.

JVM


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