O Ouro, 1ª e 2ª Temporada – Análise
O roubo que construiu parte da nova Londres e envergonhou a polícia britânica: “O Ouro”, as duas temporadas estão terminadas na RTP2 e agora para ver na RTP Play.
São duas temporadas de crime, corrupção e moralidade frouxa, inspiradas no lendário assalto de Brink’s-Mat. “O Ouro” não é só televisão de luxo: é uma viagem à Grã-Bretanha dos anos 80, onde milhões em ouro ajudaram a levantar arranha-céus icónicos e a enterrar reputações.

O assalto que mudou a história criminal britânica
Em novembro de 1983, seis homens armados entraram num armazém junto ao aeroporto de Heathrow. Esperavam encontrar um milhão de libras em moeda estrangeira. O que encontraram mudou para sempre a história criminal britânica: 6.800 barras de ouro, avaliadas em 26 milhões de libras (cerca de 127 milhões de euros, ajustados à inflação). O maior assalto do género no país e o início de uma história onde o crime se funde com a alta finança, o mercado imobiliário e um rasto de mortes dignas de um romance policial.
Do ouro sujo aos arranha-céus de Canary Wharf
O assalto de Brink’s-Mat não foi apenas um ‘golpe perfeito’ de ladrões de bairro. Foi também a porta de entrada para uma nova era do crime organizado: sofisticado, global e lavado em escritórios de advogados tão respeitáveis quanto cúmplices. Parte do ouro foi derretido e regressou discretamente ao comércio legítimo; outra parte alimentou um esquema internacional de branqueamento de capitais que ajudou a financiar a regeneração dos Docklands: a zona portuária degradada que viria a transformar-se no reluzente Canary Wharf, símbolo do capitalismo londrino. Ironicamente, a ‘cidade nova’ nasceu com dinheiro sujo.
Primeira temporada: o charme (perigoso) dos vilões
Quarenta anos depois, “O Ouro” (The Gold), série britânica da BBC transmitida na RTP2 e disponível no streaming da RTPplay, pega nesta história e dá-lhe forma em duas temporadas que misturam fidelidade histórica com licença dramática. A primeira resolve o assalto logo nos primeiros minutos: o que interessa é a transformação do ouro em dinheiro limpo e o jogo de gato e rato entre a polícia, liderada pelo incorruptível Brian Boyce (Hugh Bonneville) e uma galeria de vilões com mais charme do que moral.
A reconstituição dos anos 80 é exímia, evitando o carnaval de ombreiras e mullets e apostando numa banda sonora certeira (Joy Division, The Cure, Echo & The Bunnymen). O discurso de classe, por vezes martelado demais, tenta pintar Kenneth Noye (Jack Lowden) como um ‘Robin Hood de Kent’, mas sem apagar o facto de que estamos perante um assassino violento.
Segunda temporada: mais sombria, mais realista
A segunda temporada afasta-se do romantismo criminal. O foco desloca-se para John “Goldfinger” Palmer (Tom Cullen) e Charlie Miller (Sam Spruell), dois sobreviventes do assalto que tentam gerir fortunas ilícitas entre jatos privados, negócios de timeshare e encontros perigosos com mafiosos russos. É mais lenta, mais sombria e mais desencantada e talvez por isso mais interessante: aqui, a vida de luxo vem com prazo de validade e consequências fatais.
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Neil Forsyth e a licença criativa ao serviço do drama
O criador, Neil Forsyth, não esconde que moldou a história para efeito dramático: fundiu personagens reais, simplificou a cronologia e inventou alguns episódios. Mas o essencial está lá, a corrupção policial, os laços maçónicos, o alcance internacional do dinheiro sujo e o facto de metade do ouro nunca ter sido recuperado. O resultado é uma obra televisiva de grande fôlego, que funciona tanto como thriller policial como retrato social.
Curiosidades e Fatos Reais Sobre o Assalto de Brink’s-Mat
O crime do século — Em 26 de novembro de 1983, seis homens armados invadiram o armazém da Brink’s-Mat, junto a Heathrow, esperando encontrar cerca de 1 milhão de libras em moeda estrangeira. Saíram com três toneladas de ouro, avaliadas na altura em 26 milhões de libras — o maior assalto do género na história britânica.
Metade do ouro desapareceu para sempre — A polícia recuperou apenas cerca de metade do valor. O resto foi derretido, vendido ou investido em negócios legítimos — de imóveis a esquemas de timeshare — e, segundo alguns investigadores, continua a circular no mercado.
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O dinheiro que construiu Canary Wharf — Parte dos lucros ilícitos foi investida na reabilitação dos Docklands, ajudando a erguer o novo distrito financeiro de Londres. Ironia máxima: o símbolo do capitalismo britânico nasceu, em parte, com dinheiro do submundo.
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A maldição de Brink’s-Mat — Mais de 20 pessoas ligadas direta ou indiretamente ao assalto foram assassinadas ou morreram em circunstâncias suspeitas, dando origem à expressão “a maldição de Brink’s-Mat”.
Conexões maçónicas e corrupção policial — A investigação revelou ligações perigosas entre alguns envolvidos e elementos das forças policiais, incluindo suspeitas de proteção de criminosos por parte de membros da maçonaria.
Do crime à cultura pop — Além de “O Ouro” (The Gold), o caso inspirou documentários, livros e foi citado em investigações jornalísticas como os ‘Panama Papers’, que revelaram empresas offshore usadas para esconder parte do dinheiro.
O detalhe incómodo — Estima-se que qualquer peça de ouro vendida no Reino Unido depois de 1983 possa conter vestígios do ouro de Brink’s-Mat. Ou seja, talvez uses no dedo ou ao pescoço um bocadinho do crime do século…sobretudo se por acaso compras-te essa peça de joalharia em Londres.
JVM
“O Ouro”, 1ª e 2ª Temporada — Análise
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José Vieira Mendes - 90
Conclusão:
“O Ouro” (1ª e 2ª Temporada) é uma extraordinária viagem televisiva que combina o prazer do policial clássico com a intriga de um escândalo real que moldou a Londres moderna. Duas temporadas para ver de seguida e perceber que, se o crime não compensa, pelo menos dá histórias tão boas que nem a BBC resistiu a dramatizar.
Overall
90User Review
( votes)Pros
O Melhor:
- Interpretações de Hugh Bonneville, Tom Cullen e Sam Spruell.
- Ritmo certeiro na primeira temporada e densidade dramática na segunda.
- Contexto histórico bem integrado, sem perder tensão dramática.
Cons
O Pior:
- Subtexto de luta de classes demasiado sublinhado na primeira temporada.
- Alguns episódios da segunda podiam perder gordura.