Monstros no ecrã e a tragédia de Lisboa fora dele | Festival de Veneza 2025 (Dia 9)
No Festival de Veneza 2025, não há como separar cinema e realidade. O Lido tremeu com os filmes que expõem monstruosidades escondidas dentro de nós, mas também com a notícia que abalou todos: o trágico acidente no Elevador da Glória, em Lisboa. O choque atravessou oceanos, abriu telejornais em Itália e deixou jornalistas e críticos em Veneza consternados. Entre a ficção e a tragédia real, este está a ser um dia muito pesado e inesquecível.
Hoje no Festival de Veneza 2025, antes de se falar de cinema, falou-se de Lisboa. A tragédia no Elevador da Glória não foi só manchete em Portugal: foi capa nos jornais italianos, destaque nas televisões internacionais e tema dominante nas conversas entre colegas de imprensa aqui em Veneza.
Lisboa em luto, o Lido de Veneza consternado
É raro ver o Lido silenciar-se por um acontecimento externo. Mas hoje sentiu-se um nó coletivo na garganta. A ideia de que um ícone lisboeta — um dos símbolos mais fotogénicos da nossa cidade — transformou-se em imagens de morte, que nos deixaram a todos atordoados. A solidariedade entre colegas portugueses e estrangeiros foi sincera e imediata. A dor, partilhada.
“Elisa”: o monstro que fala connosco
Do lado do cinema no Festival de Veneza 2025, o primeiro choque foi “Elisa”, do italiano Leonardo Di Costanzo, em competição. A protagonista — interpretada por uma poderosa e convincente Barbara Ronchi — cumpre pena por ter matado a irmã e queimado o cadáver. Não se lembra de quase nada. Ou não se quer lembrar.
Acompanhada por um criminologista (Roschdy Zem), Elisa reconstrói memórias, aceita a culpa e, quem sabe, descobre o primeiro passo da redenção. É um filme denso, quase teatral, que expõe a monstruosidade não como fenómeno externo, mas como ferida interna.
Di Costanzo, já obcecado pelas prisões em “Ariaferma”, vai mais longe: aqui não há muralhas nem guardas como desculpa, só a brutalidade nua de alguém aparentemente banal capaz de um ato extremo. O filme levanta perguntas desconfortáveis: como lidamos com quem cometeu o impensável? Podemos perdoar? E queremos mesmo fazê-lo?
“Nühai (Girl)”: crescer no silêncio
Depois, veio o silêncio ao Festival de Veneza 2025. Mas não o silêncio respeitoso do luto, o silêncio corrosivo do abuso e violência doméstica. “Nühai (Girl)” marca a estreia na realização de Shu Qi, atriz taiwanesa que decidiu escrever um argumento durante anos até se atrever a filmá-lo. A história segue uma pré-adolescente que vive numa casa onde o pai é agressor, a mãe é vítima e a infância é anulada.
O encontro com outra rapariga, Li Lili, abre uma brecha de liberdade e rebeldia. É um filme íntimo, quase observacional, onde os gestos dizem mais do que as falas. Shu Qi filma os espaços e os ruídos quotidianos — uma ventoinha, um fecho de saco, o zumbido de insetos — como se fossem personagens. Não é um cinema de grandes explosões dramáticas, mas de pequenas rachadelas num muro de opressão. E é por isso que incomoda: porque mostra como se cresce no medo, no silêncio, na invisibilidade.
Monstros dentro e fora do ecrã
O que une “Elisa” e “Nühai”, os dois filmes de hoje da competição do Festival de Veneza 2025? A ideia de que o monstro raramente é uma criatura fantástica. O monstro pode ser uma irmã que mata outra. Pode ser um pai que bate na mãe e viola a filha. Pode ser o silêncio cúmplice de uma sociedade que não quer ver o que é obvio.
No Festival de Veneza 2025, hoje o cinema foi espelho da monstruosidade íntima, enquanto Lisboa nos lembrava que a tragédia também acontece, quando menos se espera e logo num dos símbolos mais belos da nossa vida urbana. Um elevador transformado em luto é tão monstruoso como um crime sem motivo ou uma infância roubada.
Entre Veneza e Lisboa
Este diário dos últimos do Festival de Veneza 2025, infelizmente não é só sobre filmes. É sobre como a vida invade sempre a sala escura. O Elevador da Glória desceu abruptamente em Lisboa, e nós, no Lido de Veneza, sentimos também o impacto. Falou-se mais de Lisboa nos corredores do festival do que de qualquer estrela de Hollywood. É um lembrete cruel: não precisamos de procurar monstros em filmes italianos ou taiwaneses.
Eles estão à nossa volta. Às vezes na violência de uma casa, às vezes na falha de um sistema urbano, às vezes em guerras que devoram crianças. O cinema só nos ajuda a ver melhor aquilo que já está diante dos olhos. Hoje, no Lido, vimos monstros. Mas o pior deles não foi projetado num ecrã.
JVM