Nicolas Cage é o surfista ©NOS Audiovisuais/Divulgação

O Surfista – Análise

Em “O Surfista” do realizador australiano Lorcan Finnegan, Nicolas Cage apanha porrada na areia, perde a prancha e a dignidade, e ainda descobre que as praias já têm dono. Soa familiar? Depois de sucessivos adiamentos à data de estreia, chega finalmente às salas.

Imagina isto em “O Surfista”: vais passar o dia à Praia da Princesa, na Costa da Caparica, ou uma qualquer outa da Costa vicentina onde há boas ondas e levas contigo o teu puto para lhe ensinar a fazer surf e mostra-lhe que és o maior pai-surfista do mundo. Estacionam o carro a custo, equilibram as pranchas às costas…e de repente aparecem uns gabirus ou melhor um segurança de colete amarelo, com crachá de ‘Resort Ocean View Exclusive Living’, e avisa: “Desculpem lá, mas esta praia é privada é só para residentes do resort”.

Protestas porque a praia sempre foi pública, é aquela que frequentas desde a tua infância e adolescência e ainda levas porrada por cima. É exagero? Talvez. Mas pode vir a acontecer um dia destes por aqui??? É mais ou menos este o ponto de partida de “O Surfista”, o novo filme do australiano Lorcan Finnegan, com Nicolas Cage, estreado no Festival de Cannes 2024 na sessão da meia-noite e salvo erro no Motel X do mesmo ano.

Trata-se de um filme de verão, que chega finalmente às salas já com o outono à porta — mas quando começa verdadeiramente a época de surf, das marés-vivas e das boas ondas —, depois de vários adiamentos. Porém podia perfeitamente ter sido rodado em Tróia, Comporta ou Melides, mais abaixo ou mesmo na Caparica, sem quase mudar uma vírgula.

Cage em modo despejo solarengo

Em “O Surfista”, Nicolas Cage é curiosamente um agente imobiliário de meia-idade bem-sucedido, já com a alma em leasing, que regressa à terra natal para ensinar o filho a surfar. Só que a praia da infância já tem dono: um gangue local de surfistas musculados e ressentidos, os Lunar Beach Boys, liderados por Scally (o entretanto falecido Julian McMahon), uma mistura de coach motivacional com psicopata de ginásio diz-lhe: “Não vives aqui. Não surfas aqui.”

E pronto: Cage perde a prancha, o carro, a paciência e a dignidade. Passa a dormir no banco de trás do carro transformado em sucata, a beber água de poças, a ser corrido da areia como quem é expulso de um resort turístico por não ter pulseira VIP. É como se tivesse comprado um pack ‘praia privada’ na Remax e descobrisse tarde demais que não vinha incluída a chave do portão.

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O Cage Movie™ no seu esplendor

Nicolas Cage
Nicolas Cage e a crise de meia idade ou a armar-se em surfista ©NOS Audiovisuais/Divulgação

A delícia de “O Surfista” está em ver o próprio mito Cage ser posto à prova e a afazer de si mesmo. O ator é hoje um género em si mesmo: há comédias, há dramas, há thrillers… e há Cage Movies™. Este é dos bons. Um verdadeiro exorcismo solarengo onde ele passa de pai surfista para mártir da areia, humilhado em slow motion ao som de discursos tribais.

Se Burt Lancaster, em “Mergulho no Passado” (The Swimmer, 1968), atravessava piscinas suburbanas em busca da identidade perdida, Cage mergulha aqui nas praias privatizadas, de onde é corrido como um turista pobre. Não é um filme só sobre território: é sobre o direito a existir sem precisar de cartão de residente no “Beach Club”.

A praia é deles, o ridículo é nosso

O Surfista
Ao fundo Scally (o falecido Julian McMahon), uma mistura de coach motivacional com psicopata ©NOS Audiovisuais/Divulgação

“O Surfista” é um filme ao mesmo tempo violento e cómico, é uma comédia negra sobre exclusão que faz pensar nos novos senhores da areia, resorts, condomínios de luxo, empreendimentos turísticos para estrangeiros ricos que fecham caminhos, vedam acessos e vendem-nos sol português a preço de ouro.

É claro que “O Surfista” não fala da Comporta nem de Melides, nem da Caparica. Mas até podia. E se Nicolas Cage aparece aqui como santo padroeiro dos humilhados, talvez o filme funcione como aviso: um dia ainda vamos precisar dele a defender o último areal público da Costa com a mesma fúria com que leva pancada de um grupo de surfistas lunáticos com nomes estrangeiros ou de um grupo de seguranças matulões e violentos do Pragal ou da Cova da Piedade.

O Surfista — Análise
  • José Vieira Mendes - 75

Conclusão:

“O Surfista” é daqueles filmes que só podiam existir com Nicolas Cage: absurdo, delirante, violento e ao mesmo tempo hilariante. Lorcan Finnegan transforma uma simples disputa por ondas numa parábola sobre território, pertença e exclusão e fá-lo com humor negro e suor em slow motion. É um filme de meia-noite, mas também um espelho do mundo em que vivemos, onde as praias estão a ser privatizadas e a dignidade despejada a pontapé. Cage, mártir da areia, mostra-nos que a crise de meia-idade pode ser tão ridícula como trágica. E é exatamente por isso que o filme funciona tão bem.

Overall
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Pros

O Melhor: Nicolas Cage a transformar-se, outra vez, em género cinematográfico próprio; o humor negro escondido entre as cenas de pancadaria; a metáfora universal: a praia como território vedado, tão australiana como portuguesa; a realização de Lorcan Finnegan, que sabe misturar delírio solarengo com sátira social.

Cons

O Pior: Há momentos em que o exagero roça o ridículo, mas convenhamos, é isso que também lhe dá graça; personagens secundárias pouco exploradas, quase figurantes de luxo no ‘Cage Show’; quem procurar realismo vai sair da sala a resmungar: mas este filme é para quem gosta de delírio, não de lógica.


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