CineEco ’25 | Entrevista a Renato Barbieri, realizador de Tesouro Natterer
Johann Natterer é a figura de destaque de “Tesouro Natterer”. O documentário brasileiro apresenta-nos a vida e a obra deste naturalista austríaco. Mais precisamente, a obra, mas logo percebemos que, neste caso, são indissociáveis, pois a sua própria vida é a verdadeira obra. Ora, durante 18 anos de expedição (1817-1835) no Brasil, ele colecionou mais de 55 mil objetos naturais e etnográficos, que enviou para Viena. Hoje, esse espólio constitui a Coleção Natterer e está preservado no Museu de História Natural e no Museu do Mundo daquela cidade.
“Tesouro Natterer” teve a sua estreia nacional na 31.ª edição do CineEco (2025), onde integrou a competição de longas-metragens em língua portuguesa. A MHD entrevistou o realizador, Renato Barbieri, que nos revelou o que o levou a fazer este filme, explicou por que escolheu destacar as peças de uma única etnia — num acervo que abrange 69 [etnias] — e partilhou ainda outras informações, curiosidades sobre o projeto.
“os brasileiros entenderem a sua própria história”

MHD: O que te inspirou a querer fazer um documentário sobre este naturalista?
O meu filme foi feito basicamente em cima do acervo da coleção Natterer, por isso se chama “Tesouro Natterer”. Eu vejo aquela coleção como um tesouro — um tesouro para o Brasil, para os brasileiros entenderem a sua própria história e para os povos indígenas representados: são 69 povos indígenas representados na coleção Natterer.
Então a motivação foi o acesso ao acervo. Se eu não tivesse acesso ao acervo, não teria nem como fazer esse filme. Por isso é que foi tão difícil e batalhado conseguir acessar o acervo.
MHD: E, do que entendi, o trabalho deste naturalista ainda não tinha sido assim tão investigado quanto isso… Ou nem sequer investigado de todo?

Não, era completamente desconhecido. O naturalista Johann Natterer é completamente desconhecido no Brasil. Ninguém tem conhecimento da existência dele e muito menos da coleção dele. Então nós [ele e Andrea Fenzl, guionista do filme] estamos trazendo para o Brasil, pela primeira vez, o conhecimento deste acervo precioso.
MHD: Como é que foi o processo de pesquisa para reconstruir a trajetória do [Johann] Natterer? Percebi que encontraram o Kurt Schmutzer [historiador e biógrafo do naturalista] já a meio das filmagens de Tesouro Natterer.
O filme sempre foi pensado em cima da jornada do Natterer pelo Brasil. E nós tínhamos muito poucas informações, informações precisas sobre a vinda dele ao país. Tínhamos as cartas escritas em alemão gótico e a gente não conhecia ninguém no Brasil que pudesse traduzir do alemão gótico para o alemão contemporâneo. E aí no meio do processo destes 21 anos de realização do filme, quando a gente já vai mais ou menos no 15.º ano dos 21, o Kurt publicou a tese dele.
Então nós tivemos acesso à tese, em alemão inclusive. Eu tive acesso à tradução em português e aí o filme expandiu em termos de informação, conceito, e eu tive acesso inclusive às cartas do alemão gótico para o alemão contemporâneo e para o português, porque eu não falo alemão.
“a terra indígena Munduruku que merecia ser visitada”

MHD: Ouvi-te dizer de que se trata de um acervo enorme e que, por isso, tiveram de escolher algumas peças para serem exibidas no filme. Quais foram os critérios que utilizaram para decidir quais seriam as peças a aparecer?
Primeiro a gente teve que fazer uma decisão difícil: quais etnias a gente iria mostrar? Porque seria impossível mostrar as 69 etnias. Então teve um trabalho de qual indígena [?] que a gente levaria para a Viena para conhecer a coleção Natterer, para olhar a coleção da sua etnia.
Isso foi muito difícil de entender. A gente acabou ficando no final em dúvida entre três etnias: os Sateré-Mawé, os Baniwa e os Munduruku e optou pelos Munduruku por uma pesquisa de locação. A gente achou que era a etnia, a terra indígena Munduruku que merecia ser visitada e [e em seguida] levar o indígena Munduruku para Viena.
Depois, em posse dessa decisão, a gente tinha que definir quais peças das etnias selecionadas a gente selecionaria. A Andrea [Fenzl], que assina o roteiro e produção também e curadoria das peças nesse sentido que estão no filme, foi para a Viena e fez uma pré-seleção mais larga. Eu e ela refinamos essa pré-seleção e definimos as peças que iríamos filmar e conseguimos autorização para isso.
MHD: Na minha perspetiva, o filme introduz a questão de se os países colonizadores devem — e, se sim, como — devolver o acervo que têm dos povos que colonizaram. Eu sinto que apresentas esta questão, mas depois ela acaba por não ser assim tão desenvolvida. É estratégica a decisão de não explorar tanto esta temática?

A repatriação das peças é um tema complexo e o filme aponta para isso. Inclusive o Hans Munduruku [o indígena convidado para visitar a coleção Natterer da sua etnia em Viena] reivindica que as peças voltem para o Brasil por várias vezes e a curadora [Claudia Augustat, curadora das coleções da América do Sul no Museu do Mundo, em Viena] mostra-se interessada em fazer essa devolução porque ela acha importante que parte dessas peças voltem para o Brasil.
Agora, para voltar você precisa fazer uma articulação institucional importante porque as instituições que vão preservar essas peças (…) Porque você tem que repatriar e preservar. Não adianta você repatriar e abandonar. Isso acontece muito também.
“pegaram fogo às peças todas, as milhares de peças do Museu Nacional “

MHD: Sim, esse era o receio dele [do Hans Munduruku]: que o Brasil não valorizasse e não preservasse tanto a coleção como a Áustria o estava a fazer.
(…) Porque o Brasil tem um processo de colonização interna pós-independência. A gente vive um neocolonialismo interno. Então não adianta trazer as peças para elas sumirem também. Como pegaram fogo às peças todas, as milhares de peças do Museu Nacional [do Brasil] por falta de manutenção de parte elétrica e tal.
Então o Brasil tem que se preparar para receber estas peças. Então não é simplesmente repatriar e botar no fogo.

MHD: A minha questão era mais no sentido de que esta temática acaba por não ser tão desenvolvida no documentário… Ou seja, foi uma decisão deliberada não explorar tanto este aspeto no filme, mas sim a obra que o Natterer fez em vida? Era esse o principal objetivo?
Sim e em posse desse conhecimento você começar um trabalho de repatriação. Sem conhecimento você não tem nem o que repatriar. Você nem sabe que existem as peças.
Então a gente está trazendo a consciência nacional que essa coleção existe e que sim, que precisa ser feito um trabalho nacional agora para repatriá-las. E não cabe a mim, enfim, como realizador, fazer o trabalho de repatriação.

MHD: Claro. O que eu queria perceber era o teu posicionamento em relação a isso.
MHD: Por fim: tens alguns projetos em vista para o futuro? Vão ao encontro deste tema como continuação ou serão novos projetos também de âmbito histórico? Se é que podes revelar alguma coisa sobre isso.
Sim. Eu tenho uma ligação muito forte também com a África e a África diaspórica. Então eu já fiz alguns trabalhos na África, documentários, e das afinidades históricas, culturais e afetivas do Brasil com alguns países africanos.
E agora nós estamos fazendo um novo trabalho que está em pós-produção que se chama “A África Dentro da Gente”, que eu filmei no Brasil, em diversos estados brasileiros, mas também no Mali e no Senegal. Então é um filme que vai falar dessa origem comum a toda a humanidade africana. Vai estrear para o ano que vem, em 2026.

