“Complô” é o retrato íntimo e político de Ghoya. ©Magenta/Divulgação

Complô – Análise

Em “Complô”, João Miller Guerra filma o rapper Ghoya como quem escreve um poema político em carne viva: um retrato íntimo, lúcido e poético de quem nasceu em Portugal mas ainda espera ser reconhecido como cidadão inteiro.

“Complô”, de João Miller Guerra, é um documentário que se infiltra nas veias abertas de Portugal e encontra nelas o sangue de Ghoya, rapper, ativista e homem sem Estado, órfão de um país que insiste em chamá-lo estrangeiro. Não é apenas um retrato musical. É um espelho. E, como todos os bons espelhos, devolve-nos mais do que queremos ver.

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O filme estreou no FIDMarseille — um dos templos do cinema documental de autor — antes de chegar ao DocLisboa 2025, onde integrou a Competição Portuguesa. E a escolha não é inocente: “Complô” fala de pertença, de feridas coloniais e de uma liberdade que se conquista com palavras. Ghoya (Bruno Furtado) é o centro magnético de um filme que não o santifica nem o vitimiza. João Miller Guerra filma-o com proximidade e respeito, deixando-o respirar, falar, rimar, falhar, amar, resistir.

Complô
Ghoya é rapper, ativista e um homem sem Estado. ©Magenta/Divulgação

A poesia da resistência

“Órfão de um país onde nasceu, órfão do Estado. Encarcerado metade da vida, sempre livre.” Assim se apresenta o protagonista, e esta contradição resume a pulsação do filme. A câmara de Vasco Viana move-se como se escutasse, não como quem espia. Cada plano é uma respiração longa, às vezes tensa, outras vezes doce, um cinema da escuta e da paciência.

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Miller Guerra não faz jornalismo nem militância filmada. Faz poesia documental. Há em “Complô” uma musicalidade subterrânea: o ritmo das rimas, dos gestos, das pausas, das paredes que cercam e das janelas que se abrem. O realizador recusa a espetacularização da pobreza e do crime e, ao fazê-lo, desmonta o preconceito com que a sociedade branca olha os corpos negros filmados.

Portugal visto das margens

O que o filme mostra é essencialmente de um país que fala de igualdade mas pratica fronteiras invisíveis. Ghoya nasceu cá, cresceu cá, trabalhou cá, mas continua a ser tratado como um “imigrante”, um erro jurídico com raízes coloniais e consequências humanas. O documentário revela o absurdo de um sistema que distribui cidadania a uns e não distribui a outros como castigos.

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Entre a burocracia e o rap, “Complô” mostra um homem que tenta ser reconhecido, não por fama, mas por direito de cidadania. A certa altura, Ghoya explica mesmo: “Fui abandonado por Cabo Verde e por Portugal.” É uma frase absolutamente devastadora. Não há exagero nem dramatismo, apenas a lucidez de quem sabe que o racismo institucional não precisa de gritar para ser eficaz.

A colaboração como método

João Miller Guerra filma com empatia, mas também com humildade. Não é o realizador branco que “dá voz ao outro” é alguém que partilha o microfone. “Eu nunca quis ser um observador externo”, diz ele. E cumpre: “Complô” é uma construção coletiva, feita de confiança, de longas conversas e de um olhar partilhado sobre o que significa viver à margem.

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O filme alterna entre o quotidiano e o estúdio, entre o silêncio e o som. A montagem de Pedro Cabeleira — que se revela não só como realizador, mas como um extraordinário montador — é precisa: mantém a tensão emocional sem perder o pulso poético. Há planos que lembram um diário íntimo, outros que parecem performances. Tudo vive num equilíbrio frágil entre realidade e metáfora, entre o que é dito e o que é sentido.

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Complô
“Complô” é um filme sobre uma geração de afro-descendentes. ©Magenta/Divulgação

A ferida coletiva

Mais do que um filme sobre o intérprete Ghoya, “Complô” é um filme sobre uma geração. Uma geração de jovens afrodescendentes que nasceram em Portugal mas que continuam presos ao limbo legal de uma lei anacrónica.

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“Quando o Estado te chama estrangeiro, mesmo que tenhas aprendido o hino e pagues impostos, o que resta? Resta a arte. Resta a rima. Resta o microfone como documento de identidade”. A certa altura, Ghoya diz que “a prisão começa no bairro onde se nasce”. É talvez a frase que melhor resume a ferida estrutural que o filme expõe: o encarceramento social, cultural e político de quem nunca teve direitos às mesmas chaves. A liberdade, em “Complô”, não é uma metáfora é uma conquista diária.

A beleza do que resiste

O documentário é político, sim, mas também é profundamente belo. Há até uma certa ternura crua e ao mesmo tempo cúmplice no modo como Miller Guerra observa o artista: como pai, como criador, como homem em luta consigo próprio, com os seus fantasmas e com o país. Os momentos de silêncio são tão poderosos como os versos do rap que rasgam o ar. E há uma luz — mais uma vez diga-se, filmada com a subtileza de Vasco Viana — que parece nascer de dentro, como se cada plano procurasse redenção.

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A poesia visual de “Complô” lembra que o cinema pode ser resistência, mas também cura. É um filme sobre um país em falta, mas também sobre o poder transformador da palavra. E quando a palavra vem misturada com a batida em forma de rap — sincera, ferida, raivosa, bela —, o cinema torna-se palco e trincheira.

Complô
O artista, como pai, como criador, como homem em luta consigo próprio. ©Magenta/Divulgação

Um espelho necessário

“Complô” é o retrato de um homem e de uma nação que ainda não se olha ao espelho. É cinema político sem panfleto, arte sem verniz, emoção sem manipulação. Neste filme João Miller Guerra confirma-se — recordo por exemplo “Li ké Terra” (2010) e “Fora de Vida”, feitos em parceria com Filipa Reis — como um dos olhares mais atentos e humanos do documentário português contemporâneo.

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E Ghoya, o seu protagonista, transforma-se em símbolo de algo maior: a resistência poética de quem insiste em existir, mesmo quando o país insiste em não ver. Este “Complô” não é uma conspiração é uma revelação. A de que o cinema português, quando se atreve a sair do centro e filmar as margens, reencontra sempre o coração do país.

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Complô — Análise
  • José Vieira Mendes - 70

Conclusão:

“Complô” é o retrato íntimo e político de Ghoya — rapper, activista e cidadão sem país — filmado por João Miller Guerra com uma delicadeza feroz. O documentário expõe as contradições de um Portugal que fala em “igualdade” mas pratica fronteiras invisíveis, acompanhando o artista entre rimas, silêncios, cicatrizes e resistência. Sem vitimização nem heroísmo, o filme é pura poesia documental: um espelho onde o país se vê, mesmo quando preferia olhar para outro lado. “Complô” confirma que o cinema português fica mais vivo quando arrisca olhar para onde dói. Miller Guerra filma Ghoya com respeito e verdade, revelando um país que ainda falha na sua própria promessa democrática. É um filme necessário, porque transforma feridas em linguagem, silêncio em política, e um homem numa metáfora luminosa da liberdade possível.

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Pros

O melhor: a intimidade sem voyeurismo, a montagem poética e a fotografia luminosa dão ao filme uma força política rara. E no centro está Ghoya — frágil, poderoso, magnético — a pulsar em cada plano.

Cons

O pior: quem esperar explicações claras pode perder-se; os silêncios podem cansar; e a indignação que o sistema provoca sobra para o espectador e embora essa ferida seja, também, o motor do filme.


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