"Onde Aterrar", o novo filme de Hal Hartley depois de 10 anos. ©Leopardo Filmes/Divulgação

“Onde Aterrar” — Análise

Quando a vida pesa, alguns vão ao terapeuta, outros fazem maratonas…em “Onde Aterrar”, Hal Hartley preferiu candidatar-se a jardineiro de cemitério e filmar sobre isso. A sua reflexão cómica, melancólica e absurdamente lúcida chega esta semana, 4 de dezembro, às salas de cinema.

Certos cineastas regressam ao activo como quem volta de um retiro espiritual com barba longa e um livro sublinhado de Kierkegaard na mala. Hal Hartley de 66 anos e a idade dele explica muito sobre “Onde Aterrar” (Where to Land). Hal Hartley, veterano do indie nova-iorquino e mestre da ironia contemplativa, regressa depois de mais de dez anos de silêncio com este seu novo filme, provando que envelhecer também pode ser um acto cinematográfico. E regressou sem adereços, apenas com a coragem de assumir que o tempo passou, que mudou e que o cinema — esse monstro caprichoso — já não lhe deve nada e ele nada deve ao cinema.

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Joseph Felton
Joseph Fulton — alter-ego discreto de Hartley, interpretado por um Bill Sage. ©Leopardo Filmes/Divulgação

Um realizador cansado do mundo… e do seu próprio cinema

“Onde Aterrar” parece, à superfície, uma anedota prolongada: Joseph Fulton — alter-ego discreto de Hartley, interpretado por um Bill Sage com as rugas bem colocadas — é um realizador reformado que decide abandonar as neuroses do meio e candidatar-se a jardineiro de cemitério. Não é uma crise espiritual, nem um gesto hippie. É apenas um homem que quer sentir as mãos sujas de terra, chegar cansado ao fim do dia e ocupar a cabeça com qualquer coisa que não seja… a própria cabeça. Mas bastam três passos em direcção a essa vida simples para que tudo à volta se torne complicado. Ele escreve o testamento, fala com uma advogada, menciona o novo emprego e em meia hora depois todo o Upper West Side, conclui que Joseph está a morrer. Nova Iorque tem sempre uma opinião pronta, mesmo quando ninguém a pediu.

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VÊ TRAILER DE “ONDE ATERRAR”

O velório antes da morte (ou como estragar uma tarde tranquila)

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Segue-se, então, o velório improvisado mais desajeitado da história recente do cinema: amigos, vizinhos e familiares aparecem para se despedir dele com abraços nervosos, filosofias baratas e aquela ansiedade pateta típica de quem nunca sabe como lidar com mortalidade alheia. Hartley filma tudo com uma melancolia cómica deliciosamente afinada: meio sorriso, meio luto, tudo muito humano. A narrativa de “Onde Aterrar” avança com a lentidão confortável de uma caminhada ao frio na West Side. Os diálogos são naturalistas, quase murmurados, e a montagem — cheia de cortes secos, sem apaixonamentos — mantém o filme vivo, orgânico, respirável.

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Filosofia ambulante num bairro onde já ninguém olha para o céu

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Joseph caminha, encontra pessoas, conversa. Discute religião, política, mortalidade, propriedade, amor, fracasso. Nada se resolve, ninguém aprende uma grande lição, como na vida real. Mas cada encontro deixa um pequeno estilhaço de verdade, desses que só magoam quando pensamos neles horas depois. Em “Onde Aterrar” Hartley filma Nova Iorque sem vaidade: cemitérios, bares exíguos, apartamentos apinhados de livros, ruas onde as pessoas passam sem destino aparente. Nada de glamour, apenas textura, humanidade, aquela normalidade imperfeita que o cinema tantas vezes evita. A banda sonora, também dele, funciona quase como monólogo interior: piano dissonante, bateria tímida, loops que acompanham o pensamento, nunca a emoção fácil.

Onde Aterrar
Hartley filma tudo com uma melancolia cómica. ©Leopardo Filmes/Divulgação

Envelhecer com graça, filmar com ternura

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“Onde Aterrar” não é para quem procura conflitos, mortes súbitas, reviravoltas de argumento ou lágrimas catárticas. É para quem gosta de acompanhar uma personagem a aprender, sem grandes conclusões, a lidar com a finitude. Hartley filma como quem escreve testamento: com ironia, com clareza, com um pudor bonito. Tudo parece pequeno, mas tudo fica. Como uma pedra que guardamos no bolso e só notamos dias depois. Afinal onde vamos mesmo aterrar um dia?

JVM

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Onde Aterrar— Análise
  • José Vieira Mendes - 75

Conclusão:

Hal Hartley volta à ribalta com um filme discreto, íntimo, reflexivo e cheio de pequenas verdades. “Onde Aterrar” é menos uma narrativa e mais uma conversa prolongada sobre o que somos, o que deixamos e o que ainda levamos connosco sem perceber. Tem humor, melancolia e aquela honestidade que só um cineasta sem pressa — e sem medo — consegue filmar. Não muda o cinema. Mas muda, ligeiramente, a forma como olhamos para o dia seguinte ou melhor viver um dia de cada vez.

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Overall
75
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Pros

O melhor: o tom certeiro: essa mistura rara de humor melancólico, diálogos despidos de artifícios e um olhar humano, directo e sem floreados sobre envelhecer, morrer e continuar; Bill Sage está irrepreensível e Hartley filma com a serenidade de quem já não precisa de provar nada.

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Cons

O pior: o minimalismo assumido: há quem estranhe a falta de picos, de drama, de aceleração. Nada acontece “a sério”. Mas quem aceita o ritmo calmo e existencial do filme percebe que é aí que ele se dobra para o lado do sublime.


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