Astérix na Lusitânia | A poção mágica da saudade
Do garum ao fado, da calçada ao caos, Portugal ganha o seu retrato mais certeiro em “Astérix na Lusitânia”: um país tão trágico-cómico que até os romanos desistem da guerra para ouvir Amália. Nas livrarias desde quinta desta semana.
Do fado ao garum, da calçada ao bacalhau, o novo álbum “Astérix na Lusitânia” transforma Portugal numa deliciosa caricatura de si próprio: um país tão poético e absurdo que até os romanos acabam deprimidos ao som de Amália. Porque a tristeza e a melancolia pegam-se e o destino não marca hora.
A poção mágica chama-se saudade

Chegaram à calçada, provaram o vinho verde, tropeçaram nos azulejos, ouviram Amália e aprenderam uma palavra intraduzível que serve para tudo: saudade. No álbum nº 41 da saga, “Astérix na Lusitânia”, o argumentista Fabcaro e o desenhador Didier Conrad criam um retrato hilariante e afetuoso de Portugal: um país onde o humor e a melancolia andam de braço dado, e onde até os romanos descobrem o prazer de sofrer com estilo.
É um álbum curto, sim, mas cheio de achados: da fadista Amália à rapariga chamada Saudade, passando por um molho de peixe fermentado (garum), feito por cá que move a intriga e um punhado de piadas que cheiram a Lisboa.
A calçada como tapete vermelho
Astérix e Obélix desembarcam perto de Olissipo, na altura “era o maior porto comercial do mundo romano, onde além do famoso garum se comercializava todo tipo de mercadorias como: vinho, sal e cavalos”. A primeira vinheta é um postal perfeito: sol, varandas com peixe a secar e azulejos que fariam um qualquer influencer dos dias de hoje perder o fôlego.
E o milagre acontece em “Astérix na Lusitânia”: o país que adora discutir a sua própria imagem vê-se ao espelho em modo cartoon e, surpresa, fica-lhe bem. “Astérix na Lusitânia” ri-se connosco, não de nós. É o tipo de piada que só resulta quando o retratado reconhece o retrato e brinda de volta.
Garum, política e abril em vinheta

O pretexto é digno de novela histórica-política e de noticiário contemporâneo: Malmevês, pequeno artesão de garum (molho de peixe muito apreciado por César, que por acaso tem ainda uma fábrica em ruínas ali em Soltroia e vale a pena visitar), é acusado de tentar envenenar o imperador e atirado para uma prisão romana. Por trás da conspiração está Lupus, magnata mediático e aspirante a Berlusconi, interessado em monopolizar o negócio. A partir daqui, em “Astérix na Lusitânia” Portugal ganha contornos de sátira política: há “plataformas de compliance”, burocracias, passwords infinitas e até uma prisão política onde se ouve um preso gritar: “O povo unido jamais será vencido”. A inscrição “MCMLXXIV” aparece numa referência ao preso. Abril está lá, em discretas legendas, a soprar liberdade no império romano.
Das Azenhas do Mar a Olissipo
Os gauleses chegam por mar a uma aldeia piscatória que parece saída das Azenhas do Mar: casinhas na falésia, gaivotas, varandas, peixe no estendal e mar azul de catálogo turístico. De lá seguem até Olissipo, apresentada além do maior porto comercial do mundo romano, como centro de trocas, mexericos e vinho. Conrad ilustra o percurso com detalhe de calceteiro e humor de arqueólogo de bolso: o Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros e as cetárias da Península de Troia piscam-lhe o olho, lembrando que por detrás da piada há pesquisa. “Astérix na Lusitânia” é banda desenhada com pé na História e mão no sketchbook.
Bacalhau, azulejo e ProtoGalp

Portugal reduzido a cliché em “Astérix na Lusitânia”? Sim, mas com elegância. Há lojas de azulejos e bacalhau em cada esquina como hoje as lojas de souvenirs, calçada em cada canto, bacalhau em cada página e pastéis de nata em modo granada. Surge um posto ProtoGalp, um eléctrico XXVII a chiar pelas colinas, puxado por cavalos, franceses auto-caravanistas em plena queixa existencial e uma secretária chamada Benfica que dá lições de eficiência administrativa ao governador Interêsseirus. Obélix prova o vinho verde e sentencia: “puxa ácido”; olha para o peixe seco e suspira: “estes lusitanos têm um problema com a alimentação”. E nós, leitores, rimos com a sensação de que o retrato é exagerado mas enfim, certeiro.
O PSI-XX e a Tasca do Vasco
Enquanto Obélix se delicia na Tasca do Vasco, o governador promove orgias de networking na sua galera de luxo. À mesa sentam-se o empresário Donodistotudus e o banqueiro Credissuix, estrelas do PSI-XX – Pessoas Socialmente Influentes. A sátira é óbvia: a Lisboa romana já tinha lobbies, influencers e jantares secretos à beira-Tejo. E cá em baixo, nas tascas, reinam nomes como Bigodês, Barrigudês e Vinhorosés, que fariam R. Goscinny rir de orelha a orelha.
O fado como arma de destruição melancólica

O ponto alto de “Astérix na Lusitânia” chega quando o fado entra em cena. Obélix, entre copos e suspiros, tenta dançar ao som de Amália e desiste a meio, vencido pela melancolia coletiva. “É mais forte do que nós”, explicam-lhe. Mais tarde, disfarçado de lusitano, o gaulês enfrenta uma legião romana… cantando. Os romanos param, olham o chão, pensam no sentido da vida e baixam as armas. É a mais bela piada do álbum: o fado como arma de desmotivação massiva.
Conrad, herdeiro fiel de Uderzo
Em “Astérix na Lusitânia”, Didier Conrad continua o milagre: ser Uderzo sem o copiar. O traço é redondo, vivo e cheio de ritmo; as cores têm luz de fim de tarde e o Tejo brilha como se fosse personagem principal. Olissipo respira, e cada figurante tem um gesto, uma história, um sotaque. Há amor neste desenho, o mesmo amor que os fãs sentem quando reconhecem o estilo sem o ver fossilizado. Conrad moderniza sem trair, ilumina sem apagar.
Rir de nós é o nosso desporto nacional

Os clichés estão lá, mas o riso é cúmplice. Fabcaro não zomba: acaricia com ironia. O vinho verde, o bacalhau, a saudade e o ó pá ganham nova vida pela graça do exagero. A secretária Benfica é homenagem, não troça; Viriato surge com ternura histórica e CR7 com uma discreta aparição por causa certamente dos direitos de imagem; e até os traidores têm graça, continuam a existir, mas já dão boas personagens. No fundo, “Astérix na Lusitânia” confirma o que sempre suspeitámos: Portugal é um país desenhado por alguém com talento para a comédia e paciência para o desalento.
O garum e a globalização
No fim, percebe-se o truque: o garum é metáfora da modernidade. O pequeno artesão contra o império corporativo, o produto local contra o marketing global, o sabor real contra a embalagem. A Lusitânia, afinal, era já um laboratório de globalização antes da palavra existir. Rimo-nos de tudo — das senhas, do peixe seco, dos vinhos azedos e dos impérios — porque é essa a nossa poção mágica: rir para não chorar.
Curtinho, mas com sabor

“Astérix na Lusitânia” é um dos vários álbuns de viagem da dupla de gauleses e de Ideafix, mas este com alma de crónica, humor de tasca e poesia de postal ilustrado. É curto, mas fica-nos no ouvido como um refrão: “ai, meu amor”. Quando os gauleses partem, Lisboa continua, com o eléctrico a chiar, a calçada a brilhar, o Tejo a fingir Atlântico. E nós ficamos a brindar: Par Toutatis… e à nossa!
JVM
“Astérix na Lusitânia” | A poção mágica da saudade
Veredicto:
Par Toutatis, é para ler, reler e oferecer aos amigos, com um pastel de nata (de preferência, não atirado).
User Review
( votes)Pros
O melhor:
- Benevolência mordaz: rimo-nos, mas com ternura.
- Fado como arma de dissuasão emocional.
- O garum como metáfora económica e política.
- A arte de Conrad: moderna, viva, sem trair Uderzo.
Cons
O menos bom:
- Clichés em modo “fast-forward”: quer-se mais páginas.
- Gargalhadas cronometradas: quando aquece, já acabou.

