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Atores de Hollywood respondem à criação da primeira atriz gerada por Inteligência Artificial

Nos últimos dias, Hollywood foi apanhada de surpresa com uma figura que parece saída de um pesadelo digital com filtro de Instagram: uma “atriz” feita inteiramente por Inteligência Artificial. Digo “atriz” entre aspas porque, convenhamos, chamar-lhe isso é um abuso linguístico que devia dar direito a multa.

Criada pela atriz e comediante holandesa Eline Van der Velden, esta “atriz” tem uma conta no Instagram, dá entrevistas simuladas, grava vídeos cómicos e, claro, fala de “emoções reais”. Só há um problema: ela não sente absolutamente nada. É um boneco digital construído sobre milhares de performances humanas, um Frankenstein de dados com sorriso de catálogo.

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A IA Tilly Norwood é mesmo uma atriz?

Tilly Norwood - Inteligência artificial
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A resposta curta: não. A longa: nem de perto.  Segundo a BBC, Van der Velden criou a Inteligência Artificial Tilly Norwood como “um trabalho criativo, uma peça de arte”. Mas a própria definição de “atriz” implica algo que Tilly não possui, experiência, emoção e presença. Como salientou a SAG-AFTRA, ela “não tem experiência de vida para retirar, não tem emoção e, pelo que vimos, o público não quer conteúdo gerado por computador desligado da experiência humana”.

E têm razão. A interpretação é um ato humano, visceral, cheio de imperfeições e instintos. Tilly, por outro lado, é o equivalente digital de um eco, uma simulação daquilo que nunca viveu. É uma Inteligência Artificial bonita, mas sem alma. E por mais que o seu criador insista que é uma forma de arte, o que está a acontecer aqui é o uso indevido de trabalho humano: performances, rostos e vozes que serviram de alimento a um algoritmo.

Isto faz lembrar aqueles bloopers da Pixar em que o Woody e o Buzz faziam piadas de bastidores no fim do filme, a fingir serem atores reais, só que agora é como se o Woody e o Buzz fossem mesmo os verdadeiros atores, e o Tom Hanks e o Tim Allen meros figurantes descartáveis. Por esta lógica bizarra, Tilly Norwood é uma artista, e não os milhares de intérpretes reais que foram canibalizados digitalmente para lhe dar vida.

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Hollywood deve mesmo aceitar isto?

Tilly Norwood -Inteligência artificial
© Particle6 Productions

A reação foi, previsivelmente, um tsunami. Emily Blunt descreveu Tilly como “aterradora” e para as  agências “pararem de nos tirar a nossa ligação humana”, Whoopi Goldberg afirmou no programa The View que “os humanos movem-se de forma diferente, as nossas caras movem-se de forma diferente”, e Natasha Lyonne apelou a um boicote a qualquer agência que represente este tipo de criação.

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O sindicato SAG-AFTRA também foi claro: usar Tilly em produções pode violar os contratos conquistados depois da greve de 2023, a mesma que paralisou Hollywood durante meses precisamente por causa do medo da IA. “Isto não resolve problema algum”, disseram, “cria o problema de usar performances roubadas para tirar trabalho aos atores.”.

E há aqui um ponto crucial, o problema não é a tecnologia em si, mas a forma como é usada. Criar ferramentas que auxiliam o processo artístico é uma coisa; fabricar um “ser” que imita o resultado humano sem o contexto, emoção ou ética que o sustenta é outra. É um espetáculo mórbido de eficiência sem consciência.

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Até onde vai esta encenação digital?

Van der Velden afirma que a sua empresa, a Particle6, pretende expandir o conceito e até lançou uma “agência de talentos” para atores de IA, chamada Xicoia. Aparentemente, há estúdios dispostos a experimentar esta nova forma de casting. Mas aqui surge uma questão filosófica: o que é que o público quer ver? Um algoritmo a fingir que sofre, ou uma pessoa que sofre mesmo? A história do cinema é feita de suor, lágrimas e improviso. Nenhum código pode substituir isso.

Logo, mesmo o CGI precisa de uma alma humana por trás, como os animadores que deram vida ao Gollum, ou à tristeza encantadora de Wall-E. Portanto, chamar “atriz” a Tilly é insultar a palavra. É um pouco como chamar “chef” a uma impressora 3D de pizzas. Pode reproduzir a forma, o cheiro até, mas nunca o sabor exato.

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Assim, a criação de Tilly Norwood é menos uma revolução e mais um sintoma de uma era obcecada por imitar a humanidade sem compreendê-la. Talvez o futuro nos traga ferramentas fascinantes, mas se continuarmos a confundir cópia com criação, o cinema corre o risco de se transformar num circo gigantesco sem atores, sem emoção e, pior ainda, sem propósito. Achas que uma inteligência artificial pode ser atriz ou isto é apenas uma paródia mal disfarçada do que significa ser humano?


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