Cinema Ideal em risco de fechar as portas. ©Cinema Ideal

Cinema Ideal fora de foco | O ICA corta o apoio para um novo projector digital

O corte brutal de um apoio simbólico expõe o desprezo do Estado pelas salas independentes. O Cinema Ideal, símbolo da exibição de cinema português em Lisboa, é obrigado quase a fechar por causa do ICA desprezar um apoio crucial.

O Cinema Ideal sempre foi mais do que uma sala de cinema. É um bastião da exibição independente e de cinema português em Lisboa. Foi reaberto em 2014 com capital privado, recuperado com suor e ideias, para resistir frente a uma cultura diga-se sempre em regime de sobrevivência. Agora, o ICA deu-lhe um golpe de misericórdia: reduziu-lhe drasticamente um pedido de apoio para trocar o projector — equipamento essencial — como se fosse supérfluo.

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O velho cinema do Loreto
É uma das salas mais antigas de Lisboa. ©Arquivo MHD

Não é apenas o valor que importa: é a mensagem. Quando se pede um apoio para manter vivo o que é um símbolo vivo da cultura, e o Estado responde com migalhas ou silêncio, entende-se logo qual é o papel que atribuem à cultura em Portugal: espetáculo de vitrine, propaganda, sem substância.

Uma longa história de descaso programado

O ICA (instituição pública criada em 2007 para apoiar cinema e audiovisual) tem andado há anos num compasso de espera: regulamentos caducos, critérios herméticos, programas que beneficiam por vezes grandes estruturas em vez de pequenos agentes. Enquanto o Estado anuncia concursos milionários — sim, por vezes há verbas, como os 30,6 milhões para cinema e audiovisual em 2025 — as salas independentes, como o Cinema Ideal ficam à espera de migalhas. A distribuição das verbas supostamente do tal PPR, parecem privilegiar quem já está ‘no círculo’, quem já ocupa cadeiras sociais e institucionais.

Cinema Ideal
Uma das casas do cinema independente e português é Cinema Ideal. ©Arquivo MHD

Recentemente, agentes culturais exigiram que a Casa do Cinema de Coimbra entrasse num programa de exibição do ICA, denunciando critérios que excluem associações apenas pela forma jurídica. Essa discriminação institucional é evidente: muitas salas estão fora por não serem ‘empresas’ com balanços corporativos, mesmo que façam (ou venham a fazer) exibições constantes e de qualidade.

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O Ideal premiado e desacreditado

O próprio Cinema Ideal foi reconhecido num gesto quase final pela ex-Ministra da Cultura, Dalila Rodrigues — recebeu Medalha de Mérito Cultural do Estado — o que supostamente significaria uma honra e um compromisso institucional, para o futuro. Mas a medalha é simbólica; não alimenta projectores nem programação. Serve para discursos e fotos. Quando chega a hora de decidir orçamentos reais e apoios cruciais para o seu fucionamento, desaparece.

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É muito difícil manter uma sala independente viva, agora tornou-se quase heróico. Com bilhetes que mal cobrem despesas fixas, programações feitas no limite, e o Estado que insiste em decidir quem merece subsistir, o Ideal torna-se alvo literalmente ideal — perdoem-me o trocadilho — do descaso e incúria institucional.

A confluência fatídica: fusões ministérios e cultura em penúria

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O golpe político foi um equívoco: fundir o Ministério da Cultura com Desporto e Juventude foi mais do que simbólico foi digamos estratégico. A cultura virou uma actividade secundária de gabinetes de assessores e funcionários que pedem visibilidade fácil e resultados rápidos (campeonatos, programas jovens, eventos). A profundidade cultural, a resistência artística, o ‘risco’ deixou de ter lugar no radar, destes ‘políticos culturais de passagem’.

Cinema Ideal
O Cinema Ideal precisa de um novo projector digital de cinema. ©Arquivo MHD

A Ministra da Cultura (Desporto e Juventude) pronunciou-se aliás sobre como evitar ‘ditaduras do gosto’ e promete regulamentações transparentes. Mas no terreno, o ICA  por exemplo, continua a operar com critérios feitos há décadas, onde privilégios valem mais que mérito, e quem está fora da ‘bolha do poder’ acaba esquecido ou desvalorizado.

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Quando a sala pede luz e recebe silêncio

O Cinema Ideal apresentou candidatura ao programa AdHoc do ICA para trazer uma luz nova ao seu ecrã ou melhor um novo projector para a icónica sala de cinema. A ideia: substituir o equipamento moribundo, — tem 10 anos e a tecnologia evolui ao mesmo tempo que até se tornou mais acessível — assegurar que rotinas de exibição não naufragassem e qualidade melhora-se. A resposta? Um corte drástico que não chega para o essencial. O recado é claro: o Estado prefere que a sala esmoreça e baixe o ecrã.

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logotipo
©Cinema Ideal

Alguém dirá: “Eles deviam arranjar outro projector por conta própria”. Sim, mas já fizeram isso antes. Mas um Estado que oferece medalhas e nega apoios essenciais deslegitima-se. Se a cultura só conta para cerimónias e discursos, então certifiquemo-nos de que os discursos caiam em ruína também. Volta Dalila, apesar do teu mau-feitio, estás perdoada!

Um convite quase para fechar

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Mandar reduzir um apoio simbólico para um novo projector digital para o Cinema Ideal, não é só uma decisão técnica: é um convite velado ao silêncio, à desistência, ao encerramento. É dizer: “Vocês não interessam.” A ironia? Um dos cinemas independentes de Lisboa e dos que mais discursa sobre resistência cultural é convidado a calar-se.

Mas o Cinema Ideal não é apenas uma sala; é memória, é ato de coragem, é convite à reflexão sobre os filmes do mundo. Se sobreviver for um ato subversivo, então que o mantenhamos vivo. Pois o Estado que ignora salas como esta, parece que prefere uma cultura domesticada e nós não queremos isso.

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