Utøya 22 de Julho | © Alambique Filmes

Utøya, 22 de julho, em análise

O cineasta norueguês Erik Poppe assina, em “Utøya, 22 de julho”, um dos dois filmes estreados este ano sobre as ações terroristas de Anders Breivik. O seu objetivo era evitar o esquecimento da tragédia e não permitir que ela se tornasse num abstrato na mente coletiva.

A 22 de Julho de 2011, Anders Behring Breivik deixou um carro-bomba no distrito governamental de Oslo, junto ao edifício onde se situava o escritório do primeiro-ministro trabalhista Jens Stoltenberg. Cerca de 20 minutos depois das três da tarde, o engenho explodiu, resultando na morte de oito pessoas, no ferimento de mais duas centenas de indivíduos e em enormes danos materiais. Aproximadamente duas horas depois do incidente na capital norueguesa, Breivik, vestido com um uniforme da polícia, chegou à ilha de Utoya, onde decorria um campo de juventude organizado do Partido Trabalhista, o Arbeiderpartiet. Durante 72 minutos, ele fez da ilha o cenário para um massacre sem precedentes na história da Noruega, matando 69 pessoas, entre elas dezenas de crianças, ferindo 66 e deixando para trás 517 sobreviventes traumatizados para o resto da vida. Estima-se que um em quatro noruegueses conhecia alguém afetado pelos ataques.

Sete anos depois deste pesadelo trazido ao mundo pelo extremismo de direita, somos confrontados com dois filmes muito diferentes que se propõem a dramatizar a tragédia. Na Netflix, temos um épico tripartido com mais de duas horas realizado por Paul Greengrass. Nas salas de cinema, temos um espetáculo de cinema imersivo que o norueguês Erik Poppe filmou num só plano e assim tentou colocar sua audiência no inferno vivido pelos muitos adolescentes atacados por Breivik nessa fatídica data. Verdade seja dita, os dois projetos são tão colossalmente diferentes que compará-los parece algo obsceno, mas é também um exercício que evidencia as ramificações concetuais subjacentes às escolhas de cada realizador.

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O filme é um exemplo de bombástico virtuosismo formal.

Como esta é uma análise de “Utoya, 22 de Julho” e não do filme americano, foquemo-nos na obra de Erik Poppe. Antes de nos apresentar qualquer recriação dos eventos em Utoya, o cineasta norueguês começa o seu filme com uma montagem de imagens documentais da explosão em Oslo. De imediato, o espectador é confrontado com a imagética que inundou os noticiários no verão de há sete anos atrás, sendo relembrado do choque verídico antes de encaminhar por uma reprodução dramática dos eventos desse dia. Essa reprodução toma a forma de um plano contínuo que dura até ao fim do filme, sem cortes, sem pausas, sem fôlego. A partir daqui a câmara torna-se uma personagem, seus movimentos são os gestos de mais uma alma abandonada no inferno da ilha, sempre a olhar nervosamente em volta.

Referindo-se a cinema que representa em si temas políticos, o vanguardista francês Jean-Luc Godard disse que um tracking shot é uma questão de moralidade. O realizador referia-se ao modo como o cineasta pode manipular a direção do olhar do espectador e através do movimento da câmara ditar em demasia o modo como alguém encara a imagem carregada de significado potencialmente político e polémico. Godard acreditava que o espectador deve ver aquilo que quer e que estes mecanismos manipuladores podiam constituir roubos imorais da liberdade daquele que vê um filme. Em “Utoya, 22 de Julho”, Poppe nunca nos dá escolha e dita a própria caracterização do nosso olhar, promovendo um envolvimento emocional que suplanta qualquer análise dos factos em cena que transcenda a tensão imediata e visceral.

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De um certo ponto de vista, tal abordagem pode ser encarada como uma tentativa de negar a linguagem cinematográfica do thriller e do horror. Afinal, o medo e o suspense são géneros fortemente apoiados na criação de tensão por meio de montagem. Ao excisar montagem em prol de um plano prolongado por mais de uma hora, Poppe reforça a ideia que esta experiência imersiva não tem como objetivo o entretenimento modulado por manipulações cinematográficas, mas sim o choque e a intervenção ativista. Concetualmente, isto faz sentido, só que na prática tais boas intenções não tiram ao filme o sabor agre do choque gratuito. Inadvertidamente, este cineasta norueguês pode bem ter criado o mais perturbador filme de terror do ano, reduzindo uma tragédia real a uma máquina de sustos e lágrimas.

Ainda em questões de moralidade, este foco na experiência visceral do terror de Utoya não só limita a leitura que o espectador possa ter do fado dos adolescentes, como também nos leva a ignorar deliberadamente a complexidade política dos eventos. Breivik é um lobo mau somente visto como um vulto à distância, caçando personagens fictícias cujas experiências se baseiam em descrições detalhadas dos sobreviventes, mas não correspondem a nenhuma vítima ao certo. Somos convidados a descartar a retórica do assassino sem a ouvirmos e chorar face ao horror de um menino chacinado na praia, de uma rapariga que recebe uma chamada da mãe nos minutos após dar o último suspiro e discussões sobre futuros que talvez nunca vão acontecer a serem feitas sob a alçada de uma chuva de balas. Tudo isso ofusca qualquer ideologia.

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Será moral recriar este horror em cinema?

Só os créditos com os seus textos informativos nos motivam a abrir diálogo acerca da infeção corrosiva dos extremismos de direita que vão ganhando cada vez mais popularidade tanto na Noruega como no resto do mundo. Poppe diz que este filme é uma ferramenta de choque para evitar o esquecimento e limitar que estes movimentos políticos se espalhem e ganhem poder. Contudo, o espetacular gesto de bravura cinematográfica que constituiu a construção cénica revela-se como maior inimigo dos seus esforços idealistas. Saímos do filme a pensar na emoção angustiante pela qual os adolescentes passaram em Utoya e não nos sintomas sociais que explodiram nesse pesadelo. Ainda por cima, tal como as primeiras palavras do filme nos indicam, nós nunca vamos compreender. Qualquer presunção de que entendemos melhor o sofrimento destas pessoas é uma perigosa e errónea ilusão.

Nada disso invalida seus méritos técnicos ou o dramatismo do seu exercício interpretativo. Este é um filme rodado num plano de espantosa complexidade, dependente do trabalho naturalista do seu elenco juvenil e de uma precisão formalista raramente vista até nas maiores produções de Hollywood. Poppe merece muita admiração por tais feitos, mas, como final elegia cinematográfica aqueles que perderam a vida nos ataques do 22 de julho de 2011, o filme americano, não obstante suas numerosas fragilidades, é o projeto superior. Nem que seja porque, ao contrário de “Utoya, 22 de julho”, o filme de Greengrass tem a coragem de olhar o mal na cara, de dar voz aos seus ideais malignos e encontrar a sua origem em toda uma sociedade doente. Dar voz e tempo de antena a tais retóricas do mal pode parecer pior opção que o silêncio, é claro. Contudo, para nos manifestarmos contra um inimigo temos de o conhecer e não só os efeitos devastadores do seu ato violento.

Utøya 22 de Julho, em análise
Utøya, 22 de julho

Movie title: Utøya 22. juli

Date published: 15 de November de 2018

Director(s): Erik Poppe

Actor(s): Andrea Berntzen, Aleksander Holmen, Solveig Koløen Birkeland, Brede Fristad, Elli Rhiannon Müller Osbourne, Jenny Svennevig, Ingeborg Enes, Sorosh Sadat, Ada Eide, Mariann Gjerdsbakk, Daniel Sang Tran, Torkel Dommersnes Soldal, Magnus Moen, Karoline Petronella Ulfsdatter Schau, Tamanna Agnihotri

Genre: Drama, Thriller, 2018, 93 min

  • Cláudio Alves - 65
  • José Vieira Mendes - 60
63

CONCLUSÃO:

A nível de ideologia ativista e discurso concetual, “Utoya, 22 de Julho” é um projeto que quase se sabota a si mesmo. Apesar disso, a espetacularidade dos seus mecanismos de horror merece admiração, assim como a eficiência bem oleada de todos os intervenientes no exercício, com especial destaque para o elenco juvenil e sua dolorosa articulação emocional.

O MELHOR: O virtuosismo formal em evidência.

O PIOR: A natureza vagamente gratuita da dramatização imersiva de tais horrores.

CA

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