A Volta ao Mundo em 80 Filmes

Seguindo os passos de Phileas Fogg vamos dar a volta ao mundo, mas ao invés de 80 dias a nossa viagem vai ser feita em 80 filmes, de 80 nacionalidades diferentes.

Apesar de vivermos numa época de globalização e em que assumimos estar ligados a todo o mundo a toda a hora, a verdade é que, em termos cinematográficos, é raro o cinéfilo que se aventure para além de um limitado número de cinemas nacionais. Obviamente, a hegemonia de Hollywood leva a que o nosso consumo seja dominado por filmes norte-americanos e anglófonos mas isso não implica que esse seja o único cinema em existência.

E não estamos somente a falar do cinema europeu que é uma presença regular de qualquer festival desta arte, ou mesmo do cinema japonês, que desde os anos 50 se tornou num foco asiático para grande parte dos cinéfilos ocidentais. Esses cinemas são importantes, é óbvio, mas esta nossa adorada sétima arte existe e floresce em quase todo o mundo, desde as mais empobrecidas nações do terceiro mundo até às mais poderosas potências económicas.

a volta ao mundo em 80 filmes

Esta lista de oitenta títulos não é e não tem pretensões em ser uma compilação dos melhores filmes de todo o mundo. Pelo contrário, esta seleção está mais próxima de uma lista de recomendações que poderão ajudar algum cinéfilo curioso a descobrir o cinema de origens muitas vezes ignoradas.

Por consequência, os nossos critérios de escolha não se focaram somente na qualidade das obras mas também noutros fatores como a sua importância face à história do cinema dos países em questão ou o modo como representa algum aspeto da realidade dessa nação. Isso não quer dizer que, em alguns casos, não tenhamos optado por evidenciar o trabalho de um autor célebre em detrimento de quaisquer outras considerações culturais ou sociais – afinal em 80 países e 80 filmes tinham de haver algumas exceções aqui e ali.

Na sua totalidade, a lista abrange seis continentes, 80 nacionalidades e inclui filmes desde 1920 até 2015. A sua organização é bastante simples, estando os títulos ordenados alfabeticamente, pelo que não estranhem ver Portugal ao lado do Peru.

Eis então a nossa exploração dos cinemas de 80 países diferentes e a África do Sul é o primeiro país a ser visitado.

Segue em frente e boa volta ao mundo!




ÁFRICA DO SUL

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Come Back, Africa (1959) de Lionel Rogosin

É peculiar começarmos esta volta ao mundo com um filme de um cineasta americano, mas Come Back, Africa é uma obra de considerável importância histórica, cultural e social. Depois de voltar da 2ª Grande Guerra, Lionel Rogosin decidiu dedicar a sua vida artística a explorar e lutar contra as injustiças sociais e intolerâncias do mundo, querendo, como seria de esperar, abordar o horror do apartheid na África do Sul. Este seu filme de 1959 foi uma das primeiras obras de cinema a trazer aos olhos dos americanos e de muitos europeus uma realidade humana daqueles que eram discriminados nesse nojento regime de segregação racial. Por isso o filme merece ser admirado, mesmo que, talvez pelas suas intenções fogosas e grandes ambições, padeça de uma certa falta de aprumo cinematográfico e algum infeliz exotismo da vida das suas personagens. Com tudo isso em conta, há que dizer como uma prolongada sequência de discussões filosóficas e interlúdios musicais noturnos é uma das mais belas passagens do cinema dessa época passada.




AFEGANISTÃO

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Osama (2003) de Siddiq Barmak

A narrativa de Osama, que acompanha uma menina que se disfarça de rapaz para tentar encontrar trabalho no Afeganistão sob domínio Taliban, já marcaria este filme como uma obra-de-arte de incomensurável valor humano, mas o projeto mais célebre de Siddiq Barmak não se fica por aí. O argumento e seus importantes temas serve de base a um sublime e delicado retrato singular que oscila entre diferentes níveis de realidade, documentário e perspetiva subjetiva da protagonista, para criar um efeito avassalador na audiência. É um milagre de cinema como máquina de empatia que, mesmo assim, demonstra uma surpreendente subtileza, mesmo nos seus momentos mais marcadamente enfurecidos com o mundo de chauvinismo e repressão feminina em evidência.




ALEMANHA

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O Gabinete do Dr. Caligari (1920) de Robert Wiene

O Expressionismo Alemão é um dos mais importantes movimentos artísticos do início do século XX e também na história do cinema, tendo também a rara honra de que os seus códigos estilísticos e soluções plásticas ainda são bastante relevantes mesmo no panorama atual de cinema. A mais vistosa apoteose do Expressionismo em terras germânicas é esta absoluta obra-prima de Robert Wiene onde os mais negros aspetos da psique humana são transplantados para o mundo exterior onde tudo se assemelha a um pesadelo materializado de ângulos bizarros e aguçadas sombras. A cenografia de Caligari, concebida por Hermann Warm e filmada por Willy Hameister, é um dos maiores triunfos do cinema mudo com as sombras a serem pintadas nas superfícies numa mostra de desavergonhada e inebriante artificialidade. Para além de tudo isto, temos de agradecer a este filme muita da linguagem clássica do cinema de terror – há quem até diga que esta é a primeira obra desse género.




ANGOLA

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Sambizanga (1972) de Sarah Maldoror

Mesmo nos dias de hoje, o cinema português tem uma enorme relutância em olhar criticamente para o nosso passado colonialista, sendo que temas como a Guerra Colonial raramente são abordados com o tipo de franqueza e urgência que vemos em Sambizanga, uma das obras seminais do cinema angolano. Este filme realizado e escrito por Sarah Maldoror, que havia assistido na realização d’A Batalha de Argel e cujo marido era um líder da Resistência Angolana, conta-nos a história de um jovem casal que vê as suas vidas destruídas por uma série de terríveis injustiças durante 1961. A proximidade dos cineastas ao seu tema e a energia enfurecida que é latente a todo o projeto não invalida o seu impacto humano ou seus pontuais momentos de avassaladora beleza. De destacar está a muito rara presença de uma perspetiva feminina num cenário revolucionário e uma tocante e dolorosa cena em que um grupo de prisioneiros limpa a face ensanguentada de um cadáver.




ARÁBIA SAUDITA

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O Sonho de Wadjda (2012) de Haifaa Al-Mansour

Independentemente da sua qualidade enquanto uma obra da sétima arte, O Sonho de Wadjda mereceria um lugar de destaque nesta lista de recomendações simplesmente pela sua importância histórica no panorama do cinema internacional. Este é supostamente o primeiro filme a ser totalmente filmado dentro da Arábia Saudita contemporânea para além de, ainda mais miraculosamente, ser o primeiro filme de sempre a ser realizado por uma mulher dessa nacionalidade. Mesmo sem essas considerações esta é uma obra com intenções de clara nobreza, focando-se na história de uma jovem rapariga de 11 anos que sonha em ter uma bicicleta, algo que lhe é proibido devido ao seu sexo. Podemos acusar o filme de uma demasiada modéstia e pacificidade, mas na sua quietude gentil este trabalho consegue ser docemente subversivo e incalculavelmente valioso.




ARGÉLIA

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Crónica dos Anos de Brasa (1975) de Mohammed Lakhdar-Hamina

A Batalha de Argel de Gillo Pontecorvo pode ter mais fama e um legado mais impressionante, mas Crónica dos Anos de Brasa tem a grande mais-valia de ser um retrato dos esforços revolucionários pela independência argelina que foi concebido por argelinos e cuja perspetiva está intrinsecamente ligada à cultura e sociedade que toma como seu sujeito. O uso da narrativa individual conjugada com um enfoque na coletividade da revolta anticolonialista resulta numa obra que desafia de modo virtuoso as usuais gramáticas visuais e estruturais do cinema político. Este filme, vencedor da Palme d’Or em Cannes, é portanto um objeto de grande importância representacional, sendo também uma história de revolução contada ao pouco usual nível das comunidades rurais, mais empobrecidas e removidas do febril ambiente urbano desse tão mais famoso filme sobre a luta argelina pela independência face aos franceses.




ARGENTINA

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A História Oficial (1985) de Luis Puenzo

Vencedor do Óscar para Melhor Filme numa Língua Estrangeira de 1985, A História Oficial é um filme que peca em alguns momentos por uma abordagem demasiado didática mas que, de modo geral, se afirma como um poderoso retrato humano e, por consequência, uma pintura das cicatrizes de uma inteira nação. A narrativa deste filme centra-se na experiência de Alicia, uma professora argentina durante os anos 80, que começa a questionar as origens da sua filha adotiva e vai descobrindo os horrores da ditadura militar que ela, durante anos, tem vindo a ignorar. Suportado por um soberbo elenco, com especial destaque para Norma Aleandro e Chunchuna Villafañe, o drama deste filme é tão melodramático como cortante, mostrando como uma mulher foi cúmplice na criação da sua própria prisão de ignorância que, apesar de tudo, se mostra menos dolorosa que a necessária verdade.




ARMÉNIA

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A Cor da Romã (1969) de Sergei Parajanov

A Cor da Romã é um dos mais curiosos paradoxos na história do cinema. Por um lado, esta obra de Sergei Parajanov é o máximo exemplo do chamado cinema avant-garde, sendo abstrato, inescrutável e cheio de simbolismos obscuros. Por outro lado, esta é uma obra de imensa simplicidade e desprovida de quaisquer pretensiosismos – afinal, o próprio realizador colocou uma mensagem, no início do filme, que explica o pensamento por detrás do seu alienante estilo – traduzir de modo cinemático a experiência de ler a poesia do autor arménio Sayat Nova. Para audiências abertas a este tipo de abordagem, A Cor da Romã é um dos mais belos e invulgares filmes algumas vez feitos, partindo de rígidos tableaux reminiscentes de iluminuras medievais para trazer ao grande ecrã o lirismo setecentista desse poeta cujo trabalho é inseparável da sua nacionalidade e cultura. Ver esta magnificência é como observar um tipo de cinema realmente inovador que, infelizmente, nunca ganhou o tipo de relevância e legado que merece.




AUSTRÁLIA

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Piquenique em Hanging Rock (1975) de Peter Weir

Em 1900, três jovens estudantes e uma professora do Appleyard College desaparecem misteriosamente durante um piquenique feito em comemoração do dia de S. Valentim em Hanging Rock, uma formação de rocha vulcânica. É esta a premissa de onde se desdobra o mais estrondoso e peculiar filme de Peter Weir, Piquenique em Hanging Rock, onde o cineasta usa uma base narrativa de mistério para construir uma obra que praticamente poderia ser chamado um anti-mistério. Aqui a ambiguidade e a incerteza são de maior interesse que quaisquer conclusões finais e esse sentido de incerteza não se resume somente ao desaparecimento, mas também aos recantos mais obscuros da psique humana. Apesar de ter frustrado muitos críticos, distribuidores e espetadores aquando da sua original passagem pelos cinemas, esta obra veio a ganhar o respeito da cinefilia com o passar dos anos, sendo hoje justamente reconhecido como um dos grandes triunfos da New Wave Australiana.




ÁUSTRIA

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A Pianista (2001) de Michael Haneke

Nas últimas décadas, a produção cinematográfica austríaca tem-se vindo a evidenciar como a rainha do cinema de crueldade, sendo Michael Haneke o seu mais célebre autor e provocador. Outras obras na filmografia deste cineasta poderão ser mais chocantes, mas A Pianista é a sua mais cruel criação, pegando num estudo de personagem e injetando-o com uma toxicidade assombrosa. A ajudar Haneke está Isabelle Huppert na mais espetacular prestação da sua carreira como uma professora de piano corroída pela repressão sexual e tornada numa monstruosa visão de quem simultaneamente nos queremos distanciar por nojo e medo e aproximar devido à abjeta fascinação. Pelo caminho, estes dois génios do cinema moderno, acabam por construir um dos mais frios retratos alguma vez feito de uma cidade, mostrando Viena como um mundo de fachadas requintadas onde auditórios enormes são catedrais de cultura ao mesmo tempo que são teatros de miséria humana estudiosamente ignorada até que é tarde demais.

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BÉLGICA

JEANNE DIELMAN a volta ao mundo em 80 filmes

Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975) de Chantal Akerman

Poucos filmes na história do cinema têm um título tão apropriado como a máxima obra-prima de Chantal Akerman, uma das mais importantes autoras do cinema europeu, pois este é, na sua forma mais essencial, um documento sobre uma mulher e o espaço em que ela habita. A partir de uma gramática cinematográfica que relembra a mestria doméstica de Ozu, Akerman constrói um épico de quase quatro horas sobre o mais mundano e entediante dos quotidianos, hipnotizando a sua audiência com ritmos repetitivos e uma abjeta falta de drama. No entanto, para realmente se apreciar a genialidade deste monumento, há que se generosamente render à proposta estilística e sua austeridade, pois é apenas quando já estamos imersos e atordoados pela normalidade na tela, que se revela o génio de Jeanne Dielman, um filme onde um jantar queimado tem a intensidade que o fim do mundo tem em outras obras menos impressionantes ou essenciais.




BIELORÚSSIA

a volta ao mundo em 80 dias vem e ve idi i dmotri

Vem e Vê (1985) de Elem Klimov

Existem filmes cuja magnificência cinemática é de tão alta ordem e especificidade audiovisual que tentar traduzir o seu impacto em palavras é pouco mais que um exercício em completa e inquestionável futilidade – perdoem-nos a futilidade, portanto. Vem e Vê, o último e melhor filme de Elem Klimov, é uma dessas obras, sendo também um dos mais brutais retratos cinematográficos da guerra, seu horror e efeito devastador na mente humana. A partir de técnicas tão imersivas como vanguardistas, o realizador soviético construiu um pesadelo em celuloide que se centra na experiência de Flyora, um adolescente bielorrusso que, durante a 2ª Guerra Mundial, testemunha e faz parte de tais calamidades de crueldade que apenas a palavra “inferno” as pode descrever com justiça. Nunca houve, e talvez nunca haverá, um filme anti-guerra que transpire tanta raiva como este e, talvez por isso, seja um título que é tão imprescindível como é punitivo para a sua audiência. Quando Flyora olha diretamente para a câmara, é como se Klimov nos tivesse dado um murro no estômago e resumido, numa face torturada, a essência do que é o sofrimento e a capacidade humana para o mal. Uma vez visto, este é um filme inesquecível.




BOLÍVIA

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Sangue de Condor (1969) de Jorge Sanjinés

Aquele que é chamado de Terceiro Cinema é rico e caracterizado por um tipo de filme que, por uma miríade de razões, poucas vezes se encontra nos cânones cinematográficos de nações que se consideram mais desenvolvidas. Falamos, pois claro, do cinema militante, do qual Sangue de Condor é um dos mais célebres e icónicos exemplos. Esta obra realizada por Jorge Sanjinés foca-se, principalmente, na reação de uma população rural face às ações de um grupo de apoio estrangeiro (uma óbvia referência aos Peace Corps americanos) que tem vindo a esterilizar as mulheres locais. A ligação entre a narrativa sensacionalista do filme e as reais medidas tomadas por grupos internacionais na Bolívia pode ser discutível, mas na sua hiperbólica fúria, Sanjinés acabou por conceber aquele que é um dos mais importantes documentos a atacar o tipo de arrogância imperialista que caracteriza tantas dessas iniciativas. Com tal importância panfletária o filme já teria valor, mas acrescenta-se a isso um maravilhoso retrato de uma cultura em perigo de desaparecer assim como uma estrutura cronológica de peculiar complexidade.

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BÓSNIA-HERZEGOVINA

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Terra de Ninguém (2001) de Danis Tanovic

A Guerra da Bósnia foi um dois eventos mais devastadores e fraturantes nas últimas décadas de história europeia e, como tal, o cinema tem sido rico em representações do seu horror e complexas particularidades. Terra de Ninguém pode estar longe de ser o melhor filme a abordar este tema, ou mesmo o mais astuto e inteligente, mas é um dos mais conhecidos e, provavelmente, o mais acessível – afinal, o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro não é um troféu usualmente associado a inescrutabilidade e complicadas visões intelectuais. A abordagem estilística de Danis Tanovic deixa muito a desejar, mas como uma parábola, que por vezes quase se torna uma farsa, sobre três soldados, dois bósnios (mais especificamente bosníacos) e um sérvio, encurralados no meio da terra de ninguém, esta é um objeto de irrevogável interesse e valor. O melhor de tudo é, mesmo assim, o efeito bola de neve que os eventos tomam, resultando num circo mediático em que o filme satiriza de modo feroz a impotência e inação das Nações Unidas, os esforços amorais dos media e a desumana absurdez da guerra.

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BRASIL

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Limite (1931) de Mário Peixoto

Duas mulheres e um homem estão à deriva numa minúscula embarcação em alto-mar e, na sua angústia e desespero, acabam por aceitar que vão morrer e recordam-se de vários momentos nas suas vidas. É esta a situação de onde Mário Peixoto desdobra aquela que é a sua obra-prima e único projeto cinematográfico, assim como o mais célebre e importante filme mudo do Brasil, Limite. Devido ao seu uso de técnicas avant-garde inspiradas pelo trabalho inovador do cinema francês de então, muitos chamam a este filme o Cão Andaluz do cinema da América Latina, mas tal denominação rouba valor a esta magnífica obra cujas imagens, apesar de degradadas pela implacável passagem do tempo, ainda parecem radicais e modernas nos dias de hoje. O uso de planos em enlouquecido movimento que enaltecem a qualidade de experiência subjetiva das memórias é de particular maravilha, sugerindo um filme em que câmara, mais do que uma ferramenta de documentação, é o pincel pelo qual o cérebro humano pode materializar imagens mentais. Não é por acaso que este filme era um dos preferidos de David Bowie.

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BURQUINA FASO

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Tilai – A Lei e a Honra (1990) de Idrissa Ouedraogo

A simplicidade com que Tilai, vencedor do Grande Prémio do Júri no Festival de Cannes, apresenta a sua convoluta tragédia humana é uma das suas mais preciosas qualidades, mostrando uma clareza tão elegante como bruta, capaz de maravilhar o espetador com a sua precisão ao mesmo tempo que lhe despedaça o coração com a sua carga emocional. Esta é uma história de adultério, normas sociais, compaixão e laços familiares que começa com o retorno de um jovem à sua aldeia na África pré-colonial. Aí, Saga descobre que o seu pai se casou com a noiva do seu filho, efetivamente tornando-a mãe de Saga aos olhos da sociedade local. A partir daí estende-se uma tapeçaria de angústias, traições e dor, onde as figuras humanas parecem ser tortuosamente movidas por uma força invisível que os leva a traírem os seus âmagos morais em nome de uma inefáveis noções de honra e legitimidade.




CAMBOJA

a imagem que falta a volta ao mundo em 80 filmes

A Imagem Que Falta (2013) de Rithy Panh

O poder da imagem é algo que não deve ser subestimado e nada prova isso de modo mais violento que o apagamento sistemático perpetrado por regimes ditatoriais. Essa falta de imagens, ou literatura ou qualquer tipo de registo artístico e humano, está no centro de A Imagem Que Falta, onde o cineasta cambojano Rithy Panh construiu um exercício em reviver memórias traumáticas ao contar a história da sua vida durante o regime dos Khmeres Vermelhos, onde Pahn, então uma criança, foi o único sobrevivente da sua família. Recorrendo ao criativo uso de tableaux estáticos povoados por primitivas esculturas de madeira pintada, o cineasta deu imagem às suas memórias e expô-las ao mundo em toda a sua dor. Ver este documentário é uma experiência em necessárias contradições: por um lado desejamos que Pahn, e o resto do Camboja, consigam esquecer os horrores do inferno de quatro anos da ditadura, mas ao mesmo tempo este é um filme que sublinha enfaticamente a necessidade de nunca esquecer os erros e pesadelos do passado para que estes não se venham a repetir.




CANADÁ

MY WINNIPEG A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

My Winnipeg (2007) de Guy Maddin

Apesar de My Winnipeg ter germinado de uma encomenda feita ao canadiano Guy Maddin de um documentário sobre a sua cidade natal, chamar ao resultado final um documentário é ser-se ou extremamente generoso ou extremamente estúpido. Nada neste filme almeja ser o documento de uma realidade factual, assemelhando-se muito mais a uma colagem surrealista de sonhos sobre uma terra odiada pelo realizador. No panorama do cinema atual existem poucos autores mais singulares e ensandecidos que Maddin, cujo trabalho se centra na tentativa de criar um estilo reminiscente de um melodrama mudo dos anos 20, cheio de momentos lúridos e surrealistas, afetado pela influência de alguma substância estupefaciente. De todos os seus filmes, este retrato mentiroso de Winnipeg no Canadá é o seu mais autobiográfico e muito provavelmente o seu mais importante enquanto um autor que entende que o “real” e o “realismo” não passam de pretensões vácuas e que, no cinema, o artifício sonhador é o caminho para o genuíno.




CHILE

NOSTALGIA DA LUZ PATRICIO GUZMÁN A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

Nostalgia da Luz (2010) de Patricio Guzmán

O cineasta de documentários Patricio Guzmán é uma das mais fascinantes vozes do cinema atual devido em grande parte ao modo como os seus filmes parecem conter em si o tipo de complexa associação de ideias e formação de argumentos que esperaríamos encontrar nas mais esotéricas teses histórico políticas no panorama académico e não no cinema. Isso pode sugerir um criador de filmes inescrutáveis e intelectualmente herméticos mas a verdade não podia estar mais longe disso. Os seus filmes são absolutos milagres da síntese e empatia, fluindo com uma facilidade que acaba por esconder a sua ambição da audiência que apenas se vai apercebendo da grandiosidade do que viu quando, mais tarde, reflete sobre as ideias plantadas por Guzmán. Nenhum dos seus trabalhos demonstra melhor esse génio que Nostalgia da Luz, onde o chileno pinta um soberbo retrato do deserto de Atacama onde a astronomia se encontra e relaciona de modo quase existencial com as cicatrizes deixadas pela ditadura de Pinochet. A imagem das esposas, irmãs e mães que procuram as ossadas estilhaçadas dos seus entes queridos no meio da vastidão do deserto é uma das mais poderosas visões a chegar aos cinemas mundiais nas últimas décadas.

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CHINA

PRIMAVERA NUMA PEQUENA CIDADE A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

Primavera Numa Pequena Cidade (1948) de Mu Fei

Segundo uma votação do público, levada a cabo em Hong Kong em 2005, Primavera Numa Pequena Cidade é o melhor filme na história do Cinema Chinês. Antes de ser coroado com essa merecida honra, este delicado melodrama romântico do pós-guerra sofreu uma existência cheia de reviravoltas e censura, sendo rejeitado pelas audiências e pelo regime aquando da sua estreia devido à falta de conteúdo político e suposta celebração de valores burgueses. Independentemente de tudo isso, esta obra maestra de Mu Fei é uma das mais belas histórias de amor alguma vez registadas em celulóide. O filme conta a história de uma dona de casa que vive nas ruínas do que, antes da guerra, tinha sido uma cidade próspera e aonde chega um dia o seu amor de juventude que, por acaso, também é um dos amigos mais antigos do seu marido. A elegância dos movimentos de câmara que tornam a troca de olhares num ballet de emoções reprimidas e o uso expressivo de silêncios complementam a história humana com um lirismo apenas rivalizado pelo voz-off omnipresente que abre uma janela aos pensamentos mais íntimos da melancólica protagonista.

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COLÔMBIA

MARIA CHEIA DE GRAÇA CATALINA SANDINO MORENO A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

Maria Cheia de Graça (2004) de Joshua Marston

Uma coprodução entre os EUA, a Colômbia e o Equador, filmada entre esses três países, mas maioritariamente em Nova Iorque, com realização de um cineasta caucasiano oriundo de Los Angeles parece uma escolha estranha para representar a Colômbia nesta volta ao mundo. Apesar disso, este é um filme de extrema importância, especialmente nos tempos que correm de campanhas políticas apoiadas em plataformas de xenofobia. Faz isto ao retratar, com necessária empatia, um tipo de história que nos é familiar dos noticiários e jornais onde os peões do submundo da droga são reduzidos a números sem cara ou estereótipos desumanos. Resumidamente, Maria Cheia de Graça relata a experiência de uma jovem grávida colombiana que, depois de perder o seu emprego, se deixa seduzir pelas propostas de um cartel de droga, acabando por ser uma mula para eles. Com 62 preservativos cheios de cocaína no seu organismo, ela parte para Nova Iorque juntamente com outra rapariga. Apoiado num elenco espetacular, incluindo a prestação naturalista nomeada ao Óscar de Catalina Sandino Moreno, este é um filme cheio de fúria idealista que nunca comete o erro de reduzir as suas personagens a símbolos – este é sempre um drama palpavelmente humano e urgente.

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COREIA DO SUL

OASIS A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

Oásis (2002) de Chang-dong Lee

Mais nenhum cinema nacional, com possível exceção do Romeno, teve um desenvolvimento tão impressionante e importante no século XXI como o da Coreia do Sul. Como tal, será apropriado apresentar como nossa escolha para esta nação, um dos filmes que deu início à apreciação mundial dos novos e vanguardistas cineastas dessa nacionalidade, Oásis de Chang-dong Lee. Com duas prestações de agressiva e explosiva intensidade no seu centro, este filme conta a bizarra história de amor entre um marginal com tendências antissociais, assim como alguns problemas cognitivos, e uma mulher que sofre de paralisia cerebral e foi praticamente abandonada pela família. Desconfortável e desconcertante na sua intimidade, Oásis oscila entre registos de naturalismo extremo e um sonhador realismo mágico que, de alguma forma, parecem sempre fluir em orgânica harmonia, sombreando, de modo notável, as complexidades inerentes à existência de dois indivíduos que foram rejeitados pela sociedade, assim como a especificidade do ambiente urbano que ambos habitam.




CUBA

LUCIA A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

Lucía (1968) de Humberto Solás

Haverá certamente obras do cinema cubano mais consistentes ou elegantemente construídas que Lucía, mas também é certo que será muito difícil encontrar uma produção mais ambiciosa que esta, tanto de uma perspetiva artística, histórica, cultural ou humana. O jovem cineasta Humberto Solás, que tinha apenas 26 anos quando terminou esta obra, construiu aqui um retrato da sua nação através de um tríptico de dramas individuais, todos eles centrados em mulheres que partilham o nome titular. Cada uma dessas narrativas singulares passa-se num momento fulcral da história Cubana – o período da guerra da Independência e as décadas de 30 e 60 – e cada uma é filmada com uma abordagem estilística diferente, resultando num filme que parece conter em si mesmo algo semelhante a um resumo da evolução do cinema nacional dessa ilha caribe até então, com especial ênfase no cinema pós-revolucionário. Por todas essas razões, Lucía é um marco incontornável na história do cinema cubano, mas o seu valor vai além da sua importância histórica, sendo também uma obra de extraordinária beleza e inebriante experimentação formal.

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DINAMARCA

A PALAVRA ORDET CARL DREYER A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

A Palavra (1955) de Carl Theodor Dreyer

A história do cinema é rica em filmes sobre fé, mas raramente se veem filmes que foquem o modo como os humanos se relacionam com essa fé, como acreditam e a praticam – ou seja, filmes sobre religião (diferente de filmes religiosos). A Palavra de Carl Theodor Dreyer é um desses filmes, nunca questionando o porquê das crenças das suas personagens ou a sua legitimidade cósmica, mas examinando o papel da religião na vida de uma pequena comunidade, especificamente numa família Luterana. O modo como esta obra-prima examina a espiritualidade das pessoas a partir de conflitos religiosos e existenciais é quase classicamente teatral no modo como se apoia na força dramática do texto, não fosse o estilo absolutamente minimalista de Dreyer. Com os seus movimentos de câmara vagarosos, mise-en-scène onde o vazio se evidencia e o uso do branco luminoso, o realizador construiu uma abordagem fortemente estilizada e cinemática que, a partir de um verdadeiro milagre da sétima arte, consegue capturar em celulóide algo que se assemelha à essência da alma humana. No final de A Palavra, todas estas componentes concetuais, estilísticas e espirituais chegam ao seu apogeu num dos grandes momentos de graça e transcendência na história do cinema.

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EGITO

A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES ESTACAO CENTRAL DO CAIRO STATION

Estação Central do Cairo (1958) de Youssef Chahine

Durante a década de 50 o público norte-americano e europeu foi exposto pela primeira vez a uma crescente presença de cinema internacional. Filmes da Ásia, de África e da América Latina começaram a ganhar relevância cultural e respeito da crítica, abrindo as portas a um novo tipo de desenvolvimento cinematográfico onde os cinemas nacionais já não eram circuitos herméticos e fechados. No Egito, o filme responsável por esta abertura foi Estação Central do Cairo, uma obra que exemplificava de modo quase perfeito as inovações que se faziam sentir no cinema do Norte Africano. Inspirado no neorrealismo italiano, nas grandes obras de entretenimento de Hollywood e nas teorias formalistas dos soviéticos, o cineasta Youssef Chahine construiu neste filme algo simples mas sublime. Na estação titular vemos o desenrolar de uma trama amorosa entre um ardina aleijado, interpretado pelo próprio Chahine, e o objeto do seu desejo, uma vendedora de limonadas encarnada por Hind Rostom, a Marilyn Monroe das Arábias. Paralelamente a esta convencional narrativa romântica, toda a vida de uma cidade é vislumbrada em histórias paralelas e preciosos detalhes humanos.

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ESPANHA

VIRIDIANA LUIS BUNUEL A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

Viridiana (1961) de Luis Buñuel

Subtileza, nuance, conforto e bom gosto não são expressões que se possam aplicar a Viridiana, mas isso não tira qualquer valor à mais ousada criação de um dos maiores génios do cinema, o espanhol Luis Buñuel. Depois de anos de exílio no México, em que o cineasta se afirmou como o mais importante realizador na língua castelhana, Buñuel regressou a Espanha em 1961 para lá filmar um novo projeto. Os antigos apoiantes políticos do cineasta começaram por protestar o que achavam ser uma rendição dele ao poder estatal fascista, mas depressa perceberam que esta não era nenhuma obra de cega propaganda ou conformação. Pelo contrário, Viridiana é a mais ácida sátira que o cinema já viu, atacando com igual fervor a aristocracia, o regime fascista, o absurdo catolicismo e a hipocrisia do apoio do Vaticano à ditadura franquista. Sempre um iconoclasta, Buñuel encheu a sua obra-prima de imagens inesquecíveis como uma freira drogada e vestida de noiva a ser assediada pelo seu lascivo tio aristocrata ou uma recriação da última ceia protagonizado por sem-abrigos embriagados. Este é um dos filmes políticos mais importantes de sempre e é também uma das obras mais blasfemas e corajosas do cinema europeu.

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ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

SERENATA À CHUVA GENE KELLY A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES MUSICAL SNGIN IN THE RAIN

Serenata à Chuva (1952) de Stanley Donen e Gene Kelly

Quando chegou à altura de escolher um filme para representar o cinema dos EUA nesta volta ao mundo, duas coisas eram certas: tinha de ser uma produção de Hollywood e tinha de ser um filme intrinsecamente americano. O que é que poderia ser mais Hollywood que o produto do escapismo de uma produção da MGM? E o que poderia ser mais americano que um musical de grande orçamento e cheio de estrelas de cinema? Bem, talvez um western fosse mais tipicamente americano, mas o raciocínio continua a ser válido, terminando na nossa seleção de Serenata à Chuva, o mais glorioso trabalho a sair das mãos do génio combinado de Arthur Freed, Stanley Donen e Gene Kelly, que é também uma das mais perfeitas e excitantes celebrações da fábrica de sonhos que é Hollywood. Resta-nos uma pergunta final: haverá melhor expressão cinematográfica da maravilha que é a alegria humana do que a célebre sequência em que um eufórico Gene Kelly canta e dança debaixo de uma torrente de chuva numa rua de L.A. construída em estúdio? Não, não há e quem quer que vos diga o contrário é um terrível mentiroso.

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FILIPINAS

NORTE O FIM DA HISTÓRIA A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES LAV DIAZ

Norte, O Fim da História (2014) de Lav Diaz

Em toda esta lista dificilmente haverá um cineasta cujo trabalho seja mais inescrutável ou menos acessível que o de Lav Diaz, o realizador filipino responsável por traduzir a trama do Crime e Castigo de Dostoyevsky para o específico panorama da história política e social das Filipinas. Esse projeto de inspiração russa é Norte, O Fim da História que, coincidentemente, é também o mais acessível filme na oeuvre deste autor asiático. É claro que a palavra “acessível” é aqui usada de modo relativo, afinal estamos perante um filme de mais de quatro horas que requer, pelo menos, um breve conhecimento de literatura russa e da cultura filipina para se poder ter esperança de perceber a sua narrativa. Com tudo isto dito, esta é uma obra de miraculosa elegância cinematográfica que, apesar da sua longa duração, nunca perde a sua urgência ou eletrizante energia dramática. É um inesperado triunfo do cinema moderno, tão sofisticado na sua forma como na sua filosofia e complementado com um virtuoso elenco que nunca se deixa esmagar pela escala épica de todo o projeto.




FINLÂNDIA

HOMEM SEM PASSADO AKI KAURISMAKI A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

O Homem Sem Passado (2002) de Aki Kaurismäki

Um homem chega a Helsínquia num comboio noturno. Não sabemos o seu nome. Pouco depois da sua chegada ele é espancado com tal violência que perde a memória, esquecendo-se mesmo da sua identidade. Um início destes parece prometer mais tragédia que comédia mas a verdade é que O Homem Sem Passado é um dos mais hilariantes títulos a integrar esta volta ao mundo, sendo a perfeita montra para o humor unicamente escandinavo que o cineasta finlandês Aki Kaurismäki tem vindo a aperfeiçoar na sua filmografia. O realizador usa a miséria humana como ponto de partida para criar uma tapeçaria de comédia tão absurdista como delicada, onde por muito grotescas que as personagens sejam a câmara nunca as trata com algo abaixo da mais respeitosa dignidade. Esta obra essencial do cinema europeu moderno conta ainda com duas espetaculares mais-valias: a prestação premiada em Cannes de Kati Outinen e a límpida fotografia de Timo Salminen.




FRANÇA

JEAN RENOIR A REGRA DO JOGO LA REGLE DU JEU A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

A Regra do Jogo (1939) de Jean Renoir

É difícil imaginar nos presentes dias de complacência cultural, que em 1939, aquando da sua distribuição original, as audiências revoltaram-se de tal modo contra A Regra do Jogo, que o filme foi praticamente banido e o seu realizador teve de se auto exilar nos EUA de modo a poder continuar a trabalhar. Aliás, é um milagre que este filme exista intacto, tendo sido quase destruído antes de ser redescoberto cerca de vinte anos depois, no período pós-guerra onde as críticas sociais de Jean Renoir já se tinham provado mais proféticas e inteligentes que vacuamente provocatórias. E, há que dizer, tal destruição teria sido um dos mais imperdoáveis crimes na história da arte ocidental pois existem poucos filmes que mais justamente possam ser agraciados com a palavra “perfeito”. Não existe em A Regra do Jogo um plano mal planeado, um movimento de câmara sem propósito, um detalhe do cenário que não seja necessário, uma prestação medíocre ou um figurino que não seja elegante ou preciso na sua construção de rígidas estruturas sociais. Se é possível um filme capturar todo o clima sociopolítico de uma nação num momento específico, será certamente esta astuta sátira.

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GEÓRGIA

DESDE QUE OTAR PARTIU A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

Desde que Otar Partiu (2003) de Julie Bertuccelli

Três gerações de uma família vivem juntas em Tbilisi na Geórgia, a idosa Eka, sua filha Marina e sua neta, Ada. Longe deste grupo de mulheres está Otar, o irmão de Marina que, há anos, emigrou para França e cuja morte despoleta a trama deste gentil retrato intergeracional. Numa desesperada tentativa de proteger a sua mãe, Marina constrói uma elaborada mentira para que Eka pense que o seu filho ainda vive mas, como seria de esperar, as mentiras acabam por ser reveladas numa sequência de eventos que consegue partir o coração das audiências mais estoicas e insensíveis. No entanto, a ambição da cineasta francesa Julie Bertuccelli, a realizadora de Desde que Otar Partiu, vai mais além que da simples miniatura doméstica, almejando também a um exímio retrato da Geórgia contemporânea e da dolorosa realidade da emigração. A tornar tudo isto num inquestionável sucesso está um elenco formidável, liderado pela atriz russa Esther Gorintin que constrói em Eka um lancinante retrato de dor maternal e devoção familiar.




GRÉCIA

A VIAGEM DOS ARTISTAS O THIASOS A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

A Viagem dos Artistas (1975) de Theodoros Angelopoulos

Acima nesta página falámos de Viridiana, um filme que cuspia abertamente na cara de um regime ditatorial e que elogiámos pela sua coragem. A Viagem dos Artistas do modernista grego Theodoros Angelopoulos é um filme que possui uma fúria tão intensa como essa obra-prima espanhola, mas a sua crítica política está bastante longe da ousadia explícita desse outro filme. Pelo contrário, esta obra, em que o mais importante cineasta da Grécia aponta um dedo acusatório ao colapso da sua nação, obscurece a sua carga política a partir de uma abordagem simbólica, densa em metáforas, pontuada por uma visão abstrata da passagem do tempo e que faz um generoso uso do drama da Antiguidade Clássica como base estruturante da sua opaca narrativa centrada numa trupe de atores viajantes. Não vamos mentir, este filme é um desafio mesmo para o mais empenhado e paciente dos cinéfilos, quase requerendo um curso universitário para ser decifrado, mas nada disso invalida a sua épica ambição ou que, fora da filmografia do seu autor, não exista mais nenhum filme minimamente semelhante a esta obra única. Mesmo que só por essa última razão, este é um filme imperdível e essencial.

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GUATEMALA

ixcanul a volta ao mundo em 80 filmes

Ixcanul (2015) de Jayro Bustamante

Entre a modernidade e a tradição ancestral, Ixcanul é um extraordinário e misterioso drama da Guatemala onde observamos uma família indígena que vive junto a um vulcão que os separa do mundo exterior como um muro ominoso. A filha nesta unidade familiar é Maria, uma jovem de 17 anos que os pais planeiam casar com um homem mais velho e influente. Infelizmente para as forças paternais, a jovem é como um vulcão adormecido, e o seu desejo depressa explode num caso amoroso com um rapaz que a engravida. E, tal como numa erupção vulcânica, a explosão inicial é apenas o começo de uma sucessão de desastrosos eventos que se vão encadeando numa história trágica mas nunca abordada com sensacionalismo. Filmado com olho de pintor paisagístico e cheio de delicados detalhes, como as cores vibrantes das roupas tradicionais ou as diferenças entre mundos sónicos na cidade e no campo, Ixcanul constrói um impressionante retrato de uma cultura distante assim como uma comovente observação de uma família em crise.

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GUINÉ-BISSAU

mortu nega a volta ao mundo em 80 filmes

E a Morte o Negou (1988) de Flora Gomes

Talvez o mais importante e conhecido cineasta da Guiné-Bissau, Flora Gomes fez a sua primeira longa-metragem em 1988 e abordou nela um tema até então inédito no seu cinema nacional, a Guerra da Independência Guineense. Mas este não é um mero docudrama de guerra, mas sim um filme com uma forte perspetiva pessoal sobre os esforços anticolonialistas de uma nação. Para começar, Gomes concebeu uma estrutura fortemente bifurcada para contar a história de um casal, primeiro no período de guerra e depois no pós-guerra, quando se tem de encarar uma nova liberdade e um futuro incerto. Mas a visão deste filme não se cinge somente ao realismo que caracteriza tantos esforços do cinema anticolonialista, mas acrescenta uma boa dose de misticismo e imagética ligada ao legado cultural africano a que está dependente uma identidade nacional de imensa importância face ao apagamento cultural da influência e domínio português. Apesar de alguns problemas de coerência narrativa, E a Morte o Negou é uma obra de extrema importância, tanto a nível histórico como estético.




HOLANDA

o soldado da rainha a volta ao mundo em 80 filmes

O Soldado da Rainha (1977) de Paul Verhoeven

Aquando da sua produção, O Soldado da Rainha era o filme mais caro e elaborado na história do cinema holandês. Não é por coincidência também, que o seu realizador seja o mais famoso e controverso cineasta a sair dessa nação, Paul Verhoeven, que antes de se tornar no enfant terrible de Hollywood nos anos 90 desenvolveu uma carreira da mais alta importância autoral no seu país de origem. Aqui, este desenvergonhado provocateur abordou o tema da 2ª Guerra Mundial, retratando o domínio nazi da Holanda a partir de uma narrativa orientada em volta de um grupo de amigos estudantes, cada um deles um símbolo de uma diferente faceta da sociedade holandesa e o modo como a guerra a afetou. Apesar de uma estética ligeiramente televisual, a energia e ousadia de Verhoeven conferem a este projeto uma energia, erotismo e mordacidade que normalmente nunca associaríamos a um épico histórico como este.

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HONG KONG

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The Killer – O Matador (1989) de John Woo

No Ocidente atual, o cinema de Hong Kong é maioritariamente caracterizado por filmes de artes marciais wuxia ou pelo romantismo melancólico das obras de Wong Kar Wai. Apesar disso, o género que talvez mais definiu este cinema nacional durante as últimas décadas foi o thriller de ação contemporâneo, onde cineastas como John Woo mostraram o seu génio e se afirmaram como autênticos mestres. Um dos melhores filmes desta corrente estilística e comercial é The Killer, um sanguinário melodrama de ação sobre um hitman que está a tentar salvar uma cantora da cegueira. Chow Yun-Fat protagoniza o filme e tem aqui a sua mais áurea hora, provando que é um dos indiscutíveis reis do cinema de ação. Mas, independentemente do virtuosismo dos seus atores, não nos iludamos, este é um filme de ação e não há história humana que se sobreponha à ação que se desencadeia a um ritmo alucinante e com violência de proporções verdadeiramente apocalípticas. Para quem gostar de um bom festim de ação, excitantes tiroteios e litros e litros de sangue, este é um sonho cinematográfico.




HUNGRIA

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A Harmonia Werckmeister (2000) de Béla Tarr e Ágnes Hranitzky

Quando falamos de um autor como Béla Tarr, proclamar um dos seus filmes como o seu mais acessível, não quer dizer muito. No entanto, A Harmonia Werckmeister é, sem dúvida, o mais acessível filme deste mestre húngaro para além de ser também uma das melhores obras de cinema europeu de sempre. E é logo a partir da sua primeira sequência que a produção demonstra a sua excelência: um grupo de homens bêbados estão num bar a meio da noite, um deles começa a explicar como a Terra orbita em volta do Sol e coreografa os seus companheiros numa dança planetária. Tudo isso é feito num só plano sequência em que a câmara baila entre os corpos humanos como uma presença fantasmagórica e parece reduzir todos os elementos a simples partículas de vida e movimento. Essa técnica repete-se ao longo do filme que é construído por prolongados planos sequência, articulados de modo a criarem uma narrativa tão simples e divertida como filosoficamente ambiciosa. De certo modo, este é um filme sobre o lugar do ser humano no universo e é a obra cinematográfica que está mais próxima de uma resposta definitiva a esse dilema existencial.




ÍNDIA

satyajit ray a volta ao mundo em 80 filmes

O Salão de Música (1958) de Satyajit Ray

Antes de Visconti realizar O Leopardo, já Satyajit Ray tinha filmado uma magistral crónica sobre um orgulhoso aristocrata que, numa época de radicais mudanças sociais e políticas, testemunha o seu modo de vida ser tornado numa absurda obsolescência. Para além das suas diferentes nacionalidades, a grande diferença entre estes dois filmes é o seu protagonista, sendo que não existe nenhuma sombra de aceitação no teimoso protagonista de O Salão de Música. Pelo contrário, este nobre empobrecido leva a sua teimosia ao extremo, acabando como um fantasma a vaguear o interior de um palácio que, noutra vida, foi um paraíso de opulência e fausto. No papel principal, Chhabi Biswas oferece uma das melhores prestações do cinema indiano e Ray volta a demonstrar a sua mestria da arte cinematográfica, ao invocar um mundo de memórias reluzentes tão belas como fatalistas. Depois do realismo ríspido das suas primeiras obras, este filme, com os seus longos recitais de música e luxuoso cenário, pode parecer uma tentativa de Ray agradar aos espetadores apaixonados pelo entretenimento escapista de Bollywood, mas não existem concessões artísticas neste que é um dos mais impressionantes feitos na filmografia desta divindade do cinema.

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INDONÉSIA

o ato de matar a volta ao mundo em 80 filmes

O Ato de Matar (2012) de Joshua Oppenheimer, Christine Cynn e Anónimo

Basta olharmos para os créditos finais de O Ato de Matar, onde quase todos os envolvidos são anónimos, para nos apercebermos da coragem necessária para a sua existência. Fazer um documentário sobre o genocídio que ocorreu na Indonésia a seguir ao fracasso do golpe de Estado comunista de 1965 já seria uma perigosa proposta, tendo em conta a atual situação do país em que essa chacina é considerado pela maioria como algo heroico, mas fazê-lo a partir da colaboração aberta desses orgulhosos assassinos é algo inimaginável. Bem, não foi inimaginável para os cineastas que deram aos assassinos a possibilidade de recriarem os seus sanguinários feitos com o esplendor artificial do cinema. Deste modo, mais do que uma simples documentação dos horrores passados, O Ato de Matar é uma assustadora viagem pela psique de quem matou milhares de pessoas e se considera um herói por isso. Os sujeitos do filme são assim cúmplices na sua auto-dissecação, incriminando-se ao mesmo tempo que concebem uma das mais bizarras celebrações do poder do cinema que este mundo já viu. Não há palavras capazes de descrever quão essencial este filme é, sendo um dos mais poderosos retratos da capacidade humana para o mal.




IRÃO

um minuto de inocência

Um Minuto de Inocência (1996) de Mohsen Makhmalbaf

O cinema iraniano é um dos mais importantes do mundo. Essa é uma verdade incontornável para qualquer cinéfilo que se preze. O seu desenvolvimento de técnicas neorrealistas e inspirada fusão de realidade e artifício têm-se revelado como aspetos verdadeiramente revolucionários e característicos do trabalho de muitos dos seus melhores cineastas. Mohsen Makhmalbaf é um deles e, em 1996, criou uma obra que desafia todas as convenções cinematográficas que alguma vez delinearam uma barreira entre o que é real e o que é ficção. Em Um Minuto de Inocência, Makhmalbaf explora a evolução da sociedade iraniana pós-revolucionária através de dois esforços autobiográficos, do próprio cineasta e do polícia que, na sua juventude, ele esfaqueou. A franqueza com que o filme observa e deixa que os dois homens se apresentem é algo quase inédito na história do meio, e é precisamente o artifício cinematográfico que serve de prisma à descoberta e reavaliação do passado. O cinema e a vida unem-se de modo irrevogável neste glorioso feito, culminando num final belíssimo em que a história é reescrita, a verdade é tornada obsoleta em virtude da compaixão humana e, num ato de generosidade divina, a câmara torna-se numa ferramenta capaz de mudar o mundo.

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ISRAEL

HATUNA MEUHERET A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

Hatuna Meuheret (2001) de Dover Koshashvili

Quando pessoas desinformadas pensam no que será o cinema israelita, provavelmente vão imaginar filmes sobre o volátil clima político desse país, mas a verdade é que o cinema de Israel é muito mais que uma coleção de tragédias bélicas. Tome-se como exemplo este magnífico filme que tem, entre muitas outras luminosas mais-valias, uma das melhores cenas de sexo já filmadas. Nesse momento carnal, o encontro de dois amantes é representado com tanto erotismo como elegantes detalhes narrativos que ajudam a definir os dois protagonistas como mais nenhuma instância no filme, em parte devido à intimidade desta ocasião. É raro o filme com esta franqueza sexual que não sublinhe a sua transgressão, mas Hatuna Meuheret regista o momento com a mesma gentileza que permeia toda a sua duração, onde um filho a chegar à meia-idade traz o desespero à sua família quando recusa todas as tentativas de lhe arranjarem o casamento, preferindo ficar na companhia da sua namorada, uma mãe divorciada. Tradição e dever familiar colidem de forma dolorosa, mas nunca temos qualquer histrionia, mas sim uma história humana complexa e maravilhosamente interpretada.




ITÁLIA

A TERRA TREME LUCHINO VISCONTI A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

A Terra Treme (1948) de Luchino Visconti

Em 1943, Luchino Visconti criou um filme a que muitos chamam a primeira obra de neorrealismo italiano, Ossessione. Apesar dessa opinião popular, é mais correto denominar esse primeiro esforço do autor como um filme proto-neorrealista, sendo que só em 1945 é que o estilo seria verdadeiramente definido com Roma, Cidade Aberta de Rossellini e só em 1948 é que Visconti iria trazer ao mundo a sua primeira obra verdadeiramente neorrealista. A Terra Treme, no entanto, não é uma obra acorrentada aos dogmas formais que rapidamente sufocaram esse importante movimento artístico, mas sim uma proposta alternativa de um neorrealismo onde as vidas comuns são capturadas com o lirismo épico de um mito antigo. Assim, como que antecedendo os mais tardios desenvolvimentos do seu cinema nacional, Visconti concebeu, neste retrato de uma família de pescadores empobrecidos, um híbrido onde se junta o realismo social com a estilização operática que viria a caracterizar não só o cinema de Visconti mas também a obra de autores da nossa atualidade como Sorrentino e Bellocchio. Este é portanto um verdadeiro marco cinematográfico, único, profético e de uma beleza assombrosa.

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JAMAICA

THE HARDER THEY COME A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

The Harder They Come (1972) de Perry Henzell

Ivan Martin é o herói de The Harder They Come, uma espécie de blaxploitation made in Jamaica. Ele é um rapaz das zonas rurais que viaja até à grande cidade e acaba por se envolver no submundo de gangsters violentos ao mesmo tempo que tenta alcançar o sucesso musical. Dinheiro, celebridade e tragédia encadeiam-se do modo usual, sendo que não é o enredo, mas sim a execução, que valoriza esta obra. Para começar, o estilo vigente no projeto é uma inebriante mistura de realismo urbano puro e duro com rasgos de estilização pop, um contraste que apenas é exacerbado pela estética errática que faz com que cenas seguidas pareçam pertencer a filmes diferentes (há 3 diretores de fotografia creditados). Mas não é o visual ou a energia da sua montagem que mereceram ao filme este lugar na seleção, mas sim a banda-sonora que foi responsável por introduzir o reggae ao mundo. Bob Marley, por exemplo, deveu a sua lenda a este filme e à sua espetacular coleção de canções que atuam quase como um coprotagonista a guiar toda a ação num característico ritmo caribe.




JAPÃO

BOM DIA YASUJIRO OZU A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

Bom Dia (1959) de Yasujiro Ozu

Devido à recente canonização de Tokyo Story como um dos melhores filmes de sempre, a atual perspetiva reinante sobre Yasujiro Ozu é quase exclusivamente definida pelas suas lacrimosas histórias de drama à escala doméstica. Isto é entendível, afinal, foi no período pós-guerra que o nipónico aperfeiçoou o seu estilo singular e o trouxe aos seus maiores píncaros em retratos de dor humana contida em gentis quadros familiares. Apesar disso, Ozu não foi um cineasta somente responsável por fazer filmes para fazer chorar as pedras da calçada. Na verdade, grande parte da sua filmografia inicial foi dedicada a comédias, entre elas uma charmosa farsa de 1932 sobre dois rapazes que começam uma greve da fala como modo de protesto aos adultos que, na sua mente, os estão a injustiçar. 27 anos mais tarde, ele filmou um remake intitulado Bom Dia, onde estão presentes todas as marcas da sua sofisticação tardia combinadas com o doce sentido de humor das suas origens. O resultado final desta viagem através das décadas e da maturação autoral foi um dos melhores filmes vindo das mãos de um dos únicos cineastas a que a palavra visionário pode ser empregue com justiça.

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LIBÉRIA

JOHNNY MAD DOG A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

Johnny Mad Dog (2008) de Jean-Stéphane Sauvaire

Nas últimas duas décadas têm estreado tantos filmes sobre crianças soldado em África que praticamente nasceu um novo subgénero de cinema. Infelizmente, quantidade não equala qualidade e a maior parte destes filmes tendem a cair num de dois grupos igualmente infelizes: projetos que inadvertidamente tornam estas situações em dramas excitantes e por isso as glamourizam e tornam uma comodidade, e documentos sensacionalistas de miséria humana que fazem mais para banalizar estes horrores do que para sensibilizar as audiências. Mas é claro que nem tudo é mediocridade e, de vez em quando, aparece-nos pela frente um filme sobre crianças soldados que nos corta a respiração sem nunca nos anestesiar para o assustador facto que estas realidades existem e não são apenas algo negligenciável que só existe nos ecrãs ou nos jornais. Johnny Mad Dog é uma dessas obras, contando a história de uma jovem que tenta salvar a sua família e de um rapaz embriagado na carnificina da guerra. As personagens dentro da narrativa podem romantizar a sua condição, mas o filme nunca comete o mesmo erro, sendo sempre poderoso, urgente e cheio de vitalidade.




LITUÂNIA

A CASA SHARUNA BARTAS PAULO BRANCO A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

A Casa (1997) de Sharunas Bartas

Sharunas Bartas não é um realizador que agrade a qualquer cinéfilo. Para se dizer bem a verdade, encontrar alguém que realmente adore os seus severos trabalhos de silêncios prolongados é quase como encontrar uma agulha num palheiro. Mas para quem esteja na mesma sintonia que este peculiar cineasta lituano, os seus filmes poderão ser autênticas revelações cinematográficas. A Casa, produzido por Paulo Branco, foi um dos seus primeiros projetos a ser atacado com uma crítica recorrente – que Bartas se estava a repetir sem desenvolver nada no seu percurso como realizador. Isso pode ser bem verdade, mas se Bartas nunca evolui o seu discurso cinematográfico pelo menos aperfeiçoou-o nesta obra, onde a palavra humana é somente presente em dois monólogos sendo o silêncio, o vazio espacial e a força da face humana os principais elementos construtivos de toda a experiência. Assombroso, hipnótico e frustrante, este filme é um estudo em melancolia existencialista expressa através de uma formalidade severa mas belíssima na sua qualidade lírica. O conceito do lar nunca foi abordado deste modo na história do cinema e só por isso, este é um filme a recordar.

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MACEDÓNIA

BEFORE THE RAIN A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

Before the Rain (1994) de Milcho Manchevski

Três histórias de amor entrelaçam-se e pintam um retrato da Europa contemporânea (em 1994). Esta proposta parece um tanto ou nada cliché e, depois de uma imensidão de narrativas mosaico terem tomado de assalto os cinemas mundiais, não há muito neste tipo de filme que vá surpreender uma audiência atenta. No entanto, essa falta de inovação ou surpresa não é um necessário indicador de falta de valor e, na verdade, Before the Rain é um filme que consegue igualar de modo admirável as suas nobres intenções com a sua concretização. Filmado quando a Europa ainda fumegava com as guerras jugoslavas, este filme serviu para abrir os olhos a muitas audiências ocidentais que, como é habitual, separavam as notícias dos seus telejornais de qualquer realidade humana. Nesse sentido, o terço do filme passado em Londres é o seu mais impactante, mostrando como as feridas destes conflitos se estendem a todo o mundo, rasgando com sangue e dor a humanidade que se deixa arrebatar pelo ódio e pela ignorância. Apesar de algumas escolhas formais menos inspiradas, o filme é um irrevogável triunfo, em muito ajudado pelo trabalho exímio de um elenco de luxo.




MALÁSIA

NÃO QUERO DORMIR SOZINHO A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES TSAI MING LIANG

Não Quero Dormir Sozinho (2006) de Tsai Ming-liang

Tableaux de longa duração, narrativas inescrutáveis e expressas com a mínima verbosidade possível e uma abordagem opaca que parece ativamente procurar a confusão da audiência – este é o cinema de Tsai Ming-liang, que, apesar desta descrição assustadora, criou um dos mais singulares e excitantes cânones pessoais no cinema mundial contemporâneo. No seu único filme filmado inteiramente na Malásia, Não Quero Dormir Sozinho, este cineasta sino-malásio captura o que parecem ser duas narrativas paralelas sobre dois homens, interpretados pelo mesmo ator, que são de algum modo vitimados e dependem dos cuidados alheios para sobreviver. Nada é muito claro aqui, mas isso não torna a experiência do filme menos prazerosa, basta ignorarmos a confusão e nos deixarmos levar pelo lirismo nascido nas sarjetas e nas sombras urbanas com que o realizador tece o seu feitiço. Neste jogo, Tsai Ming-liang vai casualmente dilacerando quaisquer noções de realidade material em nome de algo mais ilusório, abstrato e sonhador, mas não por isso menos imediato ou vital. Um poema do mundano e do marginal em forma de filme, esta obra é algo que merece ser apreciado com uma mente aberta.




MALI

A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES A LUZ YEELEN

A Luz (1987) de Souleymane Cissé

O cinema africano tende a ser maioritariamente caracterizado por uma certa pesquisa naturalista ou um impulso etnográfico. Por isso mesmo, é raro encontrar uma obra desse continente com elementos fantásticos, logo quando nos deparamos com um filme assim, há que o valorizar e celebrar de modo particular e especial. A Luz é uma dessas obras, contando uma história quase mítica que poderia bem ser uma peça de folclore transposta para o cinema, aliás muito do filme deve o seu estilo e elementos narrativos a contos e rituais da cultura Bambara. Não que isso implique uma obra inescrutável. É certo que o filme é opaco, mas a sua história é tão simples e dramaticamente eficaz que quase relembra Star Wars, uma espécie de blockbuster folclórico no seu próprio mérito. Filmado com uma elegância e sofisticação estética sublimes, esta é a viagem de um jovem com poderes mágicos numa odisseia pessoal e mística onde é um pai invejoso que prova ser o grande vilão.




MARROCOS

MUITO AMADAS A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

Muito Amadas (2015) de Nabil Ayouch

Apesar de ser um filme cuja controvérsia teve consequências violentas para algumas das pessoas envolvidas na sua criação, Muito Amadas é uma obra desprovida de provocações descaradas. Na verdade, a maior provocação aqui presente é mesmo a franqueza e gentileza humanista com que o realizador Nabil Ayouch retrata a vida de um grupo de prostituas na Marrocos contemporânea. Não há aqui nada de sensacionalista ou lascivo, mas sim uma intimidade maravilhosa que nos permite conhecer estas mulheres como poucas vezes conhecemos personagens fictícias. A ajudar a esta proximidade temos um dos melhores elencos a chegar ao grande ecrã nos últimos anos, liderado por uma titânica prestação de Loubna Abidar que foi indicada ao César de Melhor Atriz. Para além de tudo isto, Muito Amadas é um objeto de cinema radical no modo como violentamente ataca um sistema patriarcal e uma sociedade hipócrita sem nunca cair nas já mencionadas provocações baratas. Este é um filme importante e necessário.

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MARTINICA

RUE CASES NEGRES A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

Rue cases nègres (1983) de Euzhan Palcy

Juntamente com filmes como A Tree Grows in Brooklyn de Elia Kazan e King of the Hill de Steven Soderbergh, Rue cases nègres é uma dessas perfeitas obras que consegue capturar a essência de um local e época extremamente específicas a partir de uma miniatura doméstica vista da perspetiva juvenil. Nesta obra da cineasta martinica Euzhan Palcy o protagonista é José, um jovem descendente de escravos que, na década de 30, vive no meio de uma comunidade pobre em que todos os seus familiares trabalham nos campos de canas-de-açúcar sob o controlo de cruéis colonialistas brancos. O final desta história pode ser marcado pela incerteza e por umas quantas lágrimas, mas Palcy nunca tenta manipular a sua audiência com aparatos à la Hollywood, pelo contrário este é um filme de absoluta gentileza, onde a mão leve da realizadora se afirma tão poderosa que é quase difícil imaginar que este filme é uma adaptação literária e não o fruto de algum tipo de esforço autobiográfico, tal é a qualidade imediata e vivida de toda a experiência.




MAURITÂNIA

TIMBUKTU A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

Timbuktu (2014) de Abderrahmane Sissako

Na conjetura em que nos encontramos atualmente, um filme sobre uma comunidade africana a enfrentar a opressão de invasores que impõe leis fundamentalistas islâmicas é uma preciosidade a ser considerada com admiração e respeito. Quando essa obra é, para além da sua importante temática, uma magnífica construção de cinema elegante, solene e esteticamente belíssimo, então temos um verdadeiro triunfo que deve ser visto por todos. Tal é o caso de Timbuktu, onde o cineasta Abderrahmane Sissako pinta com cores intensas um retrato simultâneo da cidade titular sob um novo regime opressivo e de uma tragédia humana e familiar focada num homem que um dia deixa a sua raiva levar a melhor de si e acaba por destruir a sua vida pelo caminho. É certo que podemos acusar Sissako de rejeitar algumas das grandes marcas estilísticas do cinema africano em virtude de uma gramática mais europeia, mas é completamente impossível que um cinéfilo veja as sublimes composições paisagísticas e urbanas desta obra e não ver nelas causa para celebrar ou venerar. A cereja no topo do bolo é o modo como o filme mescla os píncaros do desespero humano com rasgos de bizarro humor sardónico.

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MÉXICO

E A TUA MÃE TAMBÉM ALFONSO CUARON Y TU MAMA TAMBIEN A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

E a Tua Mãe Também (2001) de Alfonso Cuarón

Alfonso Cuarón pode ter ganho o Óscar por Gravidade, mas o seu melhor filme veio 12 anos antes com este drama mexicano em que o autor tece uma complexa tapeçaria de sexualidade adolescente, crítica social, crónica política sobre o estado atual do México e tragédia de uma mulher a sua mortalidade. Todas estas ideias convergem numa obra coerente e em que todos os seus elementos, tanto formais como interpretativos se interligam com abjeta elegância e eficiência. Mas nada disso quer dizer que E a Tua Mãe Também é um mero espetáculo do mecanismo do cinema a funcionar e bem oleado, sendo que, pelo próprio design de todo o projeto, esta é uma experiência que transcende os limites do ecrã e vibra com uma energia calorosa e íntima que praticamente pega fogo à tela. Numa cena onde a câmara de Emmanuel Lubezki desliza pelo espaço e dança em conjunto com o trio de amantes intergeracionais no centro do filme, quase conseguimos cheirar o seu suor, saborear o calor dos seus corpos e vibrar com a mesma energia erótica que os comanda. Franco, poderoso, sofisticado e sem uma ponta de pretensiosismo, esta é uma experiência a não perder.

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MOÇAMBIQUE

TERRA SONAMBULA A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

Terra Sonâmbula (2007) de Teresa Prata

No meio da guerra civil em Moçambique, um rapaz encontra um diário ao lado de um cadáver. Aí ele descobre a história de uma mulher em busca de um filho perdido e acaba por se convencer que ele mesmo é a criança desaparecida. Assim um jovem perdido num país em estado de guerra torna-se numa viagem quase homérica onde ele tem como companheiro um velho que o trata como filho e tem sempre uma nova história na ponta da língua. Entre memórias, contos e lembranças escritas, o filme move-se entre a realidade e o mundo mais mágico. Esse movimento expressa-se também na direção de Teresa Prata onde o realismo dá lugar ao lirismo cinematográfico que nunca deixa, mesmo assim, de ser um retrato específico de uma nação e suas especificidades. Adaptado de uma obra de Mia Couto, Terra Sonâmbula foi Menção Honrosa ao Prémio do Público no IndieLisboa de 2008 e é uma das mais belas obras de cinema lusófono da última década.

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NORUEGA

OSLO 31 AGOSTO A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

Oslo, 31 de Agosto (2011) de Joachim Trier

A história de um dia na vida de um homem perdido que quer cometer suicídio parece ser a receita perfeita para uma obra de puro miserabilismo à boa moda do cinema europeu. Mas Joachim Trier não é um realizador qualquer e dessa premissa limitada, este cineasta norueguês construiu em Oslo, 31 de Agosto, um filme que funciona muito mais como uma celebração da experiência da vida humana do que como uma marcha fúnebre. Grande parte do crédito desse sucesso pertence ao elenco, especialmente à prestação subtil e vulnerável de Anders Danielsen Lie, mas o filme é muito mais que uma coleção de prestações cuidadas e inteligentes. Com uma abordagem leve, mas esteticamente sofisticada, Trier filma a cidade de Oslo com o olho de um homem apaixonado e usa todas ferramentas ao seu dispor para nos imergir na sua visão melancólica. Sentimos aquela devastadora dor de ter perdido algo que talvez nunca realmente possuímos ao mesmo tempo que nos emocionamos com a simples beleza do mundo que nos envolve.

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NOVA ZELÂNDIA

O PIANO JANE CAMPION A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

O Piano (1993) de Jane Campion

Em 1993, Jane Campion tornou-se a primeira mulher a ganhar a Palme d’Or em Cannes e foi apenas a 2ª realizadora a alguma vez ser indicada para o Óscar de Melhor Realização. Que filme pode ter sido tão inegavelmente magistral que rompeu com as barreiras invisíveis do preconceito inconsciente e tornou tudo isto numa realidade? Bem, foi O Piano, a grande obra-prima da cineasta neozelandesa e um filme que num mundo justo estaria sempre perto do topo de qualquer lista dos melhores filmes já feitos. Esta obra sobre uma mulher escocesa que viaja até a uma ilha inóspita no Pacífico com a sua filha para se casar com um homem que não ama é um dos grandes triunfos de ambiguidade no cinema narrativo, permitindo-nos ver os recessos mais escondidos na mente da nossa protagonista sem nunca nos explicar nada diretamente – tudo é implícito nas prestações perfeitas, na fotografia memorável ou nas melodias de piano que têm um papel central no meio de todo este microcosmo de desejos, repressões e vida. Tal como aconteceu anteriormente com Vem e Vê nesta lista, O Piano é um filme cujo impacto não pode ser contido na palavra humana e tem de ser sentido para ser entendido. Por outras palavras, se ainda não viste o filme, retifica a situação o mais rapidamente possível!




PALESTINA

Intervenção divina elia suleiman a volta ao mundo em 80 filmes

Intervenção Divina (2002) de Elia Suleiman

É impossível ignorar o imbróglio político em que a Palestina se encontra quando discutimos o seu cinema. Aliás, isto é um fácil raciocínio sendo que será impossível para as pessoas dessa região ignorarem essa complexa e volátil realidade. Em Intervenção Divina do mais célebre e importante cineasta palestino da atualidade, Elia Suleiman, é-nos mostrado um dia na vida de um homem de Nazaré, intercortado com outras vinhetas cómicas. Sim, cómicas, este filme, apesar de ser um lancinante retrato de uma população que vive com a guerra e a morte enraizadas na sua existência, é uma inegável comédia de um humor tão negro que é impossível imaginar um análogo americano que não caia em niilismo. No entanto, este é um filme paradoxalmente delicado e elegante assemelhando-se mais a uma doce aventura de Jacques Tati que a qualquer ácida experiência de sátira política. É claro que, devido à sua natureza intrinsecamente episódica, o filme tende a variar muito de qualidade de cena para cena e o génio divertido de uma disputa entre vizinhos por causa de um saco de lixo é muito mais subtil e interessante que uma memorável explosão de simbolismo e realismo mágico que envolve uma coroa de balas.




PERU

A TETA ASSUSTADA A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

A Teta Assustada (2009) de Claudia Llosa

Vencedor do Urso de Ouro em Berlim e agraciado com a primeira nomeação peruana ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, A Teta Assustada parece uma escolha óbvia para representar o Peru nesta nossa volta ao mundo. O facto de ser óbvia não lhe retira valor, pois este é um projeto de grande poder, mesmo quando o seu impacto é castrado por uma série de escolhas forçosamente didáticas. Mas foquemo-nos no positivo, e há muito que celebrar, a começar pelo começo deste filme que torna uma cantiga inocente num testemunho de traumas e horrores que rompem pela escuridão da tela como um pesadelo do qual é impossível acordar. Começar um filme desse modo é arriscado e é um verdadeiro testamento à ousadia da cineasta Claudia Llosa. É graças ao seu trabalho que um conto meio melodramático, sobre uma jovem que está “doente” devido à sua mãe ter sido violada durante os conflitos que assolaram o país nos anos 80, é representado com um bizarro, mas fascinante, estilo entre o realismo social e o artifício simbólico.

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POLÓNIA

CINZAS E DIAMANTES A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

Cinzas e Diamantes (1958) de Andrzej Wajda

Existem cineastas na história da sétima arte que tenham dedicado a sua carreira de tal modo ao estudo e representação da história e contemporaneidade política do seu país como o polaco Andrzej Wajda. Um dos seus primeiros grandes feitos foi uma trilogia sobre a 2ª Guerra Mundial que ele filmou nos anos 50 e que ficou completa com uma das suas mais indiscutíveis obras-primas, Cinzas e Diamantes. Este é um filme de guerra pouco comum, passando-se no primeiro dia de um país em período de pós-guerra logo a seguir à redição do Terceiro Reich. Apesar das festas que irrompem pela noite dentro, este não é um filme de celebração, mas sim um retrato acutilante de uma nação em processo de violenta reviravolta política, onde o fim da guerra é apenas o prólogo a mais conflitos e violência interna. Protagonizado pelo James Dean do cinema polaco, Zbigniew Cybulski, e filmado com mestria absoluta por Wajda (o modo como o realizador insiste em definir os limites físicos dos espaços interiores é de particular destaque), esta é uma das grandes obras de cinema político e os seus últimos 20 minutos são um verdadeiro orgasmo de excelência cinematográfica.

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PORTUGAL

ACTO DA PRIMAVERA A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

Acto da Primavera (1962) de Manoel de Oliveira

Quer amemos o seu trabalho, o odiemos ou tenhamos apenas por ele um comedido respeito, Manoel de Oliveira foi o primeiro grande autor do cinema português e o seu legado cinematográfico é de inegável preciosidade. Por isso mesmo, escolhemos para representar o cinema português um dos filmes que tem na sua filmografia e desenvolvimento um papel fulcral. Depois de décadas a trabalhar num registo entre o documentário e a ficção, sendo que até há quem erroneamente chame a Aniki Bóbó um filme proto-neorrealista, foi em Acto de Primavera que este cineasta lusitano desenvolveu aquele que seria a principal base de construção dos seus filmes doravante: o ritual, o artifício da representação, do teatro e do ato, e o que este revela. No entanto, para fazer isso, o cineasta ainda se apoiava numa pesquisa quase documental, sendo este filme um registo das representações religiosas levadas a cabo numa aldeia transmontana. Acto da Primavera é por isso um filme de transição e de experiência, uma obra que vibra com as novas possibilidades de representação (esta foi aliás a primeira longa a cores de Oliveira) ao mesmo tempo que ressoa com a solene espiritualidade de um rito ancestral.

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REINO UNIDO

A VIDA DO CORONEL BLIMP A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

A Vida do Coronel Blimp (1943) de Michael Powell e Emeric Pressburger

Existem nesta lista de recomendações, alguns filmes que parecem ter sido singularmente criados para nela ocuparem lugar. A Vida do Coronel Blimp é um deles, sendo uma obra onde o genial duo Powell e Pressburger construiu um dos mais inteligentes, épicos e espetaculares retratos da identidade nacional britânica, suas hipocrisias, falácias e gloriosas maravilhas ao mesmo tempo que faziam uma peça de propaganda da 2ª Guerra Mundial. A sua história gira em torno de Wynne-Candy, um velho oficial do exército inglês, que é capturado pelos seus subordinados mais novos que querem mostrar como o seu conservadorismo e tradição arcaica não têm lugar neste novo mundo. O que se segue é uma sequência de flashbacks e jogos estruturais que vieram a inspirar Quentin Tarantino nos anos 90 e que são algum do melhor cinema já feito na terra de sua majestade. Foi neste filme que estes cineastas aperfeiçoaram o seu estilo e mostraram em pleno as possibilidades maravilhosas da cor no cinema, foi também aqui que eles examinaram como o passado informa o presente, tanto a nível histórico, social e político como humano, narrativo e emocional. A cereja no topo do bolo são três espetaculares prestações principais, incluindo o tríptico de interesses amorosos interpretados por Deborah Kerr.

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REPÚBLICA CHECA

BAILE DOS BOMBEIROS MILOS FORMAN A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

O Baile dos Bombeiros (1967) de Milos Forman

É um fascinante paradoxo que regimes que impõem limites ditatoriais na produção de arte são também de onde nascem algumas das obras mais transgressivas, inovadoras e satíricas. Veja-se como exemplo a Nova Vaga Checoslovaca que emergiu durante o domínio comunista do país, onde fazer um filme que contradissesse os ditames dogmáticos do Estado era algo tão ousado como perigoso. Foi nesse contexto que surgiu O Baile dos Bombeiros, o primeiro filme a cores de Milos Forman e o último que o cineasta viria a fazer nessa nação. Apesar de uma produção difícil, esta obra é talvez a mais leve e hilariante no cânone de Forman, sendo, na sua essência, um retrato da Checoslováquia sob o prisma da comédia negra. Aliás, este é um daqueles filmes típicos do leste europeu onde um cinéfilo atual olha para o que é supostamente uma comédia e ri-se com tanto vigor da sátira como do miserabilismo supostamente pintado como algo que deveria provocar risos. A cereja no topo do bolo é o equilíbrio tonal e cómico, com Forman, apesar de revelar o grotesco no mundano e o absurdo na burocracia, a nunca deixar de olhar com dignidade as suas personagens.




REPÚBLICA DA IRLANDA

FOME A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

Fome (2008) de Steve McQueen

Filmes sobre o IRA e a história política da Irlanda no século XX há-os aos pontapés no cinema irlandês, mas aqui a quantidade não significa que haja algum défice de qualidade. Aliás, muitos dos grandes filmes políticos anglófonos nas últimas quatro décadas têm nascido deste tipo de pesquisas histórico-políticas, incluindo aquele que selecionámos para representar a República da Irlanda. Fome foi a primeira longa-metragem do inglês Steve McQueen e é talvez pela sua distância da realidade irlandesa que o cineasta conseguiu conjurar este tipo de lirismo tingido pela dor da realidade histórica e pela violência de décadas de conflitos internalizados na própria carne de uma população. Com uma economia visual de cortar a respiração, onde nenhum corte é em vão e nenhuma imagem tem menos qualidade estética que uma pintura no Louvre, McQueen, com a ajuda de Michael Fassbender no seu primeiro papel de relevo, constrói um retrato assombroso de uma prisão onde estão aprisionados vários republicanos irlandeses, incluindo Bobby Sands que morreu nessa cadeia devido a uma greve de fome. Enervante e visceral como poucos filmes são, Fome é uma das grandes obras-primas do cinema deste século.

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REPÚBLICA DOMINICANA

DOLARES DE AREIA A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

Dólares de Areia (2014) de Israel Cárdenas e Laura Amelia Guzmán

O turismo sexual e a natureza transacional das relações que daí nascem são temas que têm ganho uma curiosa relevância no panorama cinematográfico dos últimos anos. Cineastas como Ulrich Seidl e Laurent Cantet, por exemplo, exploraram-nos a partir da perspetiva do turista, olhando com fascínio os mundos exóticos para onde se dirigem os predadores das suas nações em busca de algum prazer. Israel Cárdenas e Laura Amelia Guzmán, pelo contrário, tomaram como ponto de partida a experiência de quem vende o seu corpo a estrangeiros endinheirados, retratando a vida da jovem Noeli e sua relação com uma francesa mais velha interpretada por Geraldine Chaplin. Apesar da filha de um dos maiores nomes da comédia muda ser o nome mais conhecido do elenco e ter a mais espetacular prestação do filme, as alianças da audiência estão sempre fixadas nos dilemas internos de Noeli, suas escolhas e indecisões. Dólares de Areia evoca de modo belíssimo a qualidade idílica dos seus ambientes, sem descurar nas nuances do drama humano, dando origem a uma das mais brilhantes joias do recente cinema dominicano.




ROMÉNIA

A MORTE DO SR LAZARESCU A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

A Morte do Sr. Lazarescu (2005) de Cristi Puiu

No panorama do cinema europeu, mais nenhum país teve um movimento cinematográfico com mais importância na última década que o Novo Cinema Romeno, cujo reconhecimento global começou com esta peculiar obra-prima de Cristi Puiu. No seu país de origem, A Morte do Sr. Lazarescu foi promovido como uma comédia apesar de ter sido concebido com base numa polémica notícia sobre um idoso que, depois de uma noite de negligência hospitalar, foi deixado no meio da rua pelos funcionários da sua ambulância e acabou por morrer ao relento. O final do filme não é tão misantropo como a realidade, mas isso não implica que o filme seja algo classicamente assumido como uma comédia. Aliás, a única razão para essa classificação devem do absurdo total que rege a história do filme e sua dissecação de um sistema de saúde incompetente e desumano. Esta é uma obra de doloroso visionamento que, mesmo assim, é cinema essencial na sua mais pura forma, um milagre de realismo audiovisual, uma venenosa sátira e um retrato humano da mais abrasiva franqueza imaginável.

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RÚSSIA

ANDREI TARKOVSKY ANDREI RUBLEV A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

Andrei Rublev (1966) de Andrei Tarkovsky

Desde a sua abertura, que é a mais grandiosa celebração de criatividade enlouquecida já filmada, passando por visões épicas como a invasão e pilhagem de uma cidade medieval, até à simples beleza de ver o êxtase da cor desabrochar no seu potente epílogo, Andrei Rublev é uma das indiscutíveis obras-primas do cinema mundial e um filme que devia ser de visionamento obrigatório para qualquer cinéfilo – correção, para qualquer ser humano. Apesar deste filme de Andrei Tarkovsky ser, a uma primeira análise, um biopic sobre um pintor de ícones na Rússia do séc. XV e uma construção de cinema espiritual fortemente ligado ao Cristianismo Ortodoxo, não estamos perante uma obra que se deixe limitar pelos usuais dogmas destes subgéneros. Pelo contrário, Tarkovsky rompe com a convenção com uma magnificência aterradora, criando um filme com um ritmo glacial que consegue, mesmo assim, ser uma experiência transcendente na medida que pouca arte é. Numa nota final, há que referir como o filme está dividido em capítulos e que o segmento focado na fundição de um sino termina com um dos mais devastadores momentos de catarse na história deste meio.

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SENEGAL

MOOLAADE A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

Moolaadé (2004) de Ousmane Sembène

O senegalês Ousmane Sembène é um dos mais importantes nomes do cinema africano e o seu último filme foi um verdadeiro testamento à sua grandeza, assim como à magnificência da produção cinematográfica desse continente tantas vezes esquecido mesmo pelos mais empenhados cinéfilos. Moolaadé relata a história de Collé, a segunda e preferida esposa de um homem que vive numa zona rural do Burquina Faso, e sua proteção de um grupo de raparigas que lhe pedem auxilio de modo a evitarem a mutilação genital que lhes é exigida pela sociedade e tradições locais. Como se pode perceber pela descrição sumária do seu enredo, esta é uma obra que lida com importantes temas e de uma perspetiva necessária, mas a genialidade do filme vai muito mais além que a sua militância, sendo que este é um perfeito exemplo de uma obra onde a composição e o uso da cor são tão importantes como o mais longo dos monólogos. A ajudar a tudo isto temos um registo rítmico e interpretativo que dá primazia à quietude que vibra com energia ameaçadora e que quase lembra o teatro de Brecht no seu uso de declarado artificio como veículo para o acutilante ativismo político.




SÉRVIA

ERA UMA VEZ UM PAIS EMIR KUSTURICA A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

Era Uma Vez Um País (1995) de Emir Kusturica

A obra que valeu a Emir Kusturica a sua segunda Palme d’Or em 1995 causou tanta adoração crítica como indignação política aquando da sua estreia. Esta obra controversa foi filmada durante o auge dos conflitos bélicos que assolaram a antiga Jugoslávia e retrata seis décadas da complicada história política dessa nação através de uma insólita narrativa tão bizarra que qualquer tentativa de a sumarizar é fútil e cuja estranheza é de tal ordem que todo o projeto se poderia chamar uma extravagância surrealista. Mesmo para quem sente desprezo pelas ideologias subjacentes ao seu argumento e defendidas por Kusturica, Era Uma Vez um País é cinema imperdível, nem que seja pelo modo como o cineasta retrata a guerra como um circo de horrores onde o caos é a única constante e onde um casamento subterrâneo completo com chimpanzés e uma sensual dança em cima de um tanque de guerra são dos momentos mais discretos do filme. Esta é uma obra perversa, grotesca, desavergonhada e portadora de uma escala épica que quase nunca se vê associada a este tipo de louco cinema de autor.

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SINGAPURA

ilo ilo a volta ao mundo em 80 filmes

Ilo Ilo (2013) de Anthony Chen

Ponderar que Ilo Ilo é a primeira longa-metragem do seu realizador, Anthony Chen, é algo assombroso e quase inacreditável. Como é possível que este cineasta tenha conseguido capturar com tanta delicadeza uma realidade tão modesta, vivida e humana sem nenhuma sombra de insegurança ou vistosa experimentação estudantil? Bem, a obra final é prova dos seus talentos e é também uma fabulosa miniatura doméstica sobre uma família de Singapura que, durante a crise financeira que assolou a Ásia nos anos 90, recebe a companhia de uma nova empregada a tempo-inteiro vinda das Filipinas. Não há nada de enfaticamente dramático nesta história, mas o humanismo que transparece por todo o projeto é precioso, especialmente quando consideramos a franqueza com que a família é observada, mesmo nos seus momentos mais feios. Caracterizado por uma gentileza sublime, Ilo Ilo conta ainda com um perfeito trabalho de elenco, com especial destaque para as prestações de Yeo Yann Yann e Angeli Bayani como a matriarca e a nova doméstica respetivamente.




SÍRIA

ÁGUA PRATEADA A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

Água Prateada – Um Auto-Retrato da Síria (2014) de Ossama Mohammed e Wiam Bedirxan

Com a atual crise dos refugiados, parece que muitas pessoas olham a destruição da Síria como apenas uma abstração distante sobre a qual não há necessidade de estender o nosso olhar ou preocupação. Para essas pessoas, mas também para todos os que adorem cinema ou tenham interesse nas experiências humanas por detrás das manchetes dos jornais, existe Água Prateada, uma verdadeira explosão de inovação cinematográfica. Construído entre a França e a Síria a partir de e-mails e vídeos postados nas redes sociais, este projeto de Ossama Mohammed e Wiam Bedirxan, este é um projeto com uma ambição tão astronómica como arriscada. Este é, efetivamente, um auto-retrato de uma nação a passar por um inferno e filmado pelas próprias pessoas desse país e não por um olho esteta e estudado. Há que sublinhar também que, a acompanhar o desfile de horrores, estão uma contracorrente de humanismo profundo e uma natureza lírica que transmutam todo o projeto numa espécie de elegia poética em forma de filme. Original, transgressivo e inovador este é um pesadelo cinematográfico que todos deviam experienciar, por muito doloroso que seja.




SUÉCIA

A MASCARA PERSONA

A Máscara (1966) de Ingmar Bergman

Apesar de décadas de complexas teorias académicas e dissecações críticas, A Máscara de Ingmar Bergman continua a ser uma obra praticamente inclassificável. De certo modo, parece que todo o cinema está contido neste milagre em celuloide, explodindo em todas as direções e devastando todas as convenções que já existiram, que existem e que ainda estão para ser inventadas. Apreciado principalmente como um estudo e desconstrução de identidade, tanto a nível concreto como abstrato, esta criação superficialmente sobre a relação entre uma enfermeira e uma atriz que misteriosamente perdeu a capacidade de falar é tão inescrutável como a figura desconcertante de Liv Ullmann como a mulher muda. Esta é a apoteose do modernismo no cinema, e quase o nascimento violento do pós-modernismo, com o próprio filme a tentar dissecar a sua existência e desconstrui-la, culminando em algo horrível e assustador – o vazio, a possibilidade que nada tem sentido, definição ou propósito. E tudo isto a nível concetual, pois se começarmos a falar do trabalho de Ullmann e Bibi Andersson ou a sublime fotografia e montagem, nunca mais este texto terá fim.

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TAILÂNDIA

FEBRE TROPICAL A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

Febre Tropical (2004) de Apichatpong Weerasethakul

Apichatpong Weerasethakul, mais conhecido como Joe para qualquer pessoa que tente dizer o sue nome em voz alta, é um dos mais singulares cineastas da atualidade e o seu cinema é tão original como é difícil e misterioso. Nesta sua obra de 2004, o tailandês construiu uma das suas usuais narrativas bifurcadas onde o misticismo do seu folclore nacional se funde com um casual surrealismo típico da sua abordagem autoral, resultando numa inebriante exploração dos limites entre desejo erótico e afeto fraternal e entre homem e animal. Mais nenhum filme nesta lista tem um babuíno falante ou uma cena prolongada que basicamente consiste num caçador a olhar fixamente para um tigre em aparente diálogo psíquico e por isso esta obra exige a nossa atenção. Quase mais nenhum autor contemporâneo se atreve a ser tão hermético no seu estilo como este tailandês e, apesar de poder ser frustrante não entender todo o simbolismo das suas criações, os seus filmes são sempre fascinantes. Ver Febre Tropical é como testemunhar o sonho de outra pessoa, ou melhor, é como observar o delicado desabrochar de um possível romance e depois experienciar uma alucinação sonhada sobre os mesmos temas.

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TAIWAN

CIDADE DA DOR HOU HSIAO HSIEN A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

A Cidade da Dor (1989) de Hou Hsiao-hsien

Enquanto a maior parte dos grandes cineastas se podem caracterizar e analisar pelo que mostram no ecrã, Hou Hsiao-hsien é o bizarro exemplo de um génio que constrói as suas experiências fílmicas com base no que não mostra às suas audiências. Os seus filmes são obras que vivem no vazio das composições, na quietude entre movimentos, no silêncio que separa as palavras e no que se perde quando um plano corta para outro. Isso raramente é mais explícito ou elegante que na sua primeira inegável obra-prima, A Cidade da Dor, onde o visionário taiwanês conta a história de uma família e sua implosão durante os primeiros anos do Terror Branco. Este filme foi aliás, a primeira obra de cinema a lidar com essa período histórico do Taiwan, tendo sido completo dois anos após o fim do regime ditatorial que ilegalizava a sua representação. Cristalizando os dilemas de uma identidade nacional indefinida e explorando as inúmeras maneiras como o peso da história afeta a vida humana, Hou Hsiao-hsien como que encapsulou os principais temas do seu cinema nacional numa só obra que, apesar disso, é um produto indiscutível do seu inovador estilo cinematográfico.

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TANZÂNIA

A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

These Hands (1992) de Flora M’mbugu-Schelling

Com apenas 45 minutos, These Hands é o filme mais curto em toda esta volta ao mundo, mas a sua brevidade não implica nenhuma falta de qualidade. Não se medem pessoas aos palmos e não se medem filmes aos minutos e isso nunca é mais claro que nesta obra documental, onde a maior parte da duração é focada numa observação do trabalho árduo de um grupo de mulheres que passam os seus dias a partir pedra de modo a criar gravilha para uso industrial. Mais de metade do filme se passa sem praticamente nada acontecer a não ser esse lavoro – estamos a testemunhar uma realidade aborrecida e repetitiva onde o esforço físico é palpável nas imagens áridas. No entanto, perto do fim do filme uma das mulheres dança, outra acompanha-a e depois voltam ao trabalho, vemos uma rápida refeição e depois temos o único momento de informação do filme. Essa coda expositiva é um dos mais estupendos golpes de génio imagináveis, pegando na estrutura precisa do projeto e pontuando-o com uma violência sóbria e impactante onde nos é exposto como, no contexto da sociedade local, estas mulheres são privilegiadas. Curto, elegante e poderoso, este é um filme assombroso.




TURQUIA

ERA UMA VEZ NA ANATOLIA A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

Era Uma Vez na Anatólia (2011) de Nuri Bilge Ceylan

Algures nos ambientes rurais das estepes turcas, há um cadáver que foi enterrado junto a uma árvore e um grupo de polícias está à sua procura com o auxílio de um dos homens envolvidos no misterioso homicídio. Esta premissa narrativa parece ser a base perfeita para um thriller policial clássico, mas basta vislumbrarmos quem realizou Era Uma Vez na Anatólia para sabermos imediatamente que este filme não pode ser nada desse género padronizado. A partir das suas usuais experimentações formais e estudos filosóficos, Nuri Bilge Ceylan construiu uma lancinante exploração sobre a moralidade humana onde os diálogos são explícitos ao ponto de serem literários, e onde paisagem noturna rasgada pelas luzes dos automóveis policiais contém tanta importância concetual como o mais complexo monólogo (e há bastantes neste filme). A precisão demonstrada neste projeto só poderia vir das mãos de um grande mestre de cinema, mas as suas considerações morais e existenciais têm a marca de um grande filósofo. Para todos os que dizem que um livro será sempre mais complexo e cheio de ideias que um filme, mostrem-lhe Era Uma Vez na Anatólia e expandam os horizontes desse infeliz.

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UCRÂNIA

A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

A Terra (1930) de Aleksandr Dovzhenko

A teoria da montagem soviética é um dos mais importantes desenvolvimentos na história do cinema, mas há que reconhecer como, apesar da sua excelência mecânica e formal, muitos dos gloriosos filmes mudos soviéticos são fragilizados pelas exigências de um regime somente em busca de objetos propagandistas. Um dos mais formidáveis espetáculos dessas teorias postas em prática, e que consegue contornar os mais perniciosos impulsos panfletários, é A Terra, parte da trilogia ucraniana do cineasta Aleksandr Dovzhenko e a sua magnum opus. Não que este seja um filme subversivo face aos ideias soviéticos, sendo a sua história focada numa comunidade de agricultores que recorrem ao comunismo para melhorarem as suas vidas e ganharem autonomia. O que difere o filme das outras obras da época e o coloca no cânone dos melhores feitos cinematográficos de sempre é a sua exaltação sensual da união entre o homem e a terra, algo que chega à sua alucinante apoteose nos minutos finais. Diferenciar as nacionalidades modernas de filmes soviéticos é uma tarefa complicada, mas A Terra é praticamente uma carta de amor à Ucrânia, garantindo assim o seu lugar na nossa volta ao mundo.

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UGANDA

CALL ME KUCHU A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

Call Me Kuchu (2012) de Malika Zouhali-Worrall e Katherine Fairfax Wright

Alguns documentários são valiosos pela sua qualidade estética e intelectual, enquanto outros são valorizados quase exclusivamente como obras de jornalismo. Call Me Kuchu pertence ao segundo grupo e é caracterizado por uma urgência tão acutilante que depois de o vermos quase temos vontade de forçar todas as pessoas que conhecemos a o fazerem também, pelo simples facto de que estas informações deviam ser sabidas por todos. Não que as legislações e persecução anti-LGBT no Uganda não tenham já aparecido nos telejornais de todo o mundo, é claro, mas há uma grande diferença entre uma manchete rápida e o tipo de proximidade que este filme estabelece com os seus sujeitos humanos. Basta vermos como o “protagonista” do filme, o ativista David Kato, é assassinado para percebermos o risco que está a ser tomado por todos os que aparecem diante da câmara e por isso todo o projeto ganha uma qualidade ainda mais vital, como um documento de vidas que talvez já tenham sido extinguidas pelos ventos de violência e preconceito. Este filme é um desconfortável abrir dos olhos a uma situação infernal e injusta, mas é também uma experiência necessária e importante.




URUGUAI

LA CASA MUDA A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

La Casa Muda (2010) de Gustavo Hernández

Filmado para ter a aparência de um take contínuo de 79 minutos, La Casa Muda é um dos mais aventurosos exemplos do cinema de terror da América Latina que tem vindo a ganhar relevância nos últimos anos. Essa já mencionada abordagem pouco ortodoxa injeta em todo o projeto uma atmosfera de claustrofobia peculiar, onde o implacável movimento da câmara e a recusa da montagem se tornam agressões contra a audiência. Mas do que trata este filme de técnica tão vistosa? Bem, o seu enredo é tão simples que poderia ser de um filme de classe B dos anos 40: Laura está a visitar uma casa com o seu pai, a meio da sua exploração ela começa a ver coisas estranhas e sentir que algo está errado, no entanto as suas várias tentativas de sair da habitação são interrompidas e ela vai-se apercebendo que está enclausurada no seu interior. Há que dizer, este não é um filme que se veja em busca de competência narrativa. É, por outro lado, uma maravilhosa mostra de coragem cinematográfica, de uma estética de terror baseada no realismo pervertido pela subversão formal e com uma prestação de sublime histeria e pânico como seu centro humano.

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VENEZUELA

ARAYA A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

Araya (1959) de Margot Benacerraf

A arte de encontrar lirismo nas durezas da vida de populações empobrecidas é um marco incontornável no cânone do cinema internacional, desde as explorações do nobre proletariado na União Soviética, passando pelo neorrealismo italiano e chegando a obras do Terceiro Cinema como Araya da cineasta Margot Benacerraf. Na península titular, situada na Venezuela, é retratado o quotidiano de três famílias que trabalham nos salineiros locais, seguindo as técnicas que se têm mantido inalteradas há séculos. Sob o olho astuto de Benacerraf as paisagens da ilha são filmados em sublime preto-e-branco, onde pirâmides de sal branco contrastam com a cinza do céu em paisagens pintadas pelas pinceladas de movimento humano que por elas passa. A poesia dessas pinturas vivas é inegável, mas o que realmente eleva este filme ao panteão do cinema venezuelano é o modo como, na sua observação, Benacerraf criou um retrato precioso de uma população que vive a partir de tradições que estão prestes a se tornarem obsoletas com a chegada da indústria moderna. Este é o ultimo suspiro de uma cultura ancestral antes da sua aniquilação e merece ser preservado e celebrado como a rara joia que é.

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VIETNAME

CYCLO A VOLTA AO MUNDO EM 80 FILMES

Cyclo (1995) de Tran Anh Hung

Filmes sobre jovens protagonistas masculinos que se envolvem num submundo de crime e assim constituem uma narrativa sobre a perda de inocência há-os aos pontapés. Dizemos isto para clarificar que Cyclo não deve a sua majestosa qualidade a um enredo original, mas sim a uma espetacular execução. Tran Anh Hung conjura uma visão rica em ambiguidade e abstração que é regida pelo realismo mágico e prima em momentos de pura beleza estética. O resultado final é uma experiência de imersão cinematográfica que subverte um argumento com tendências melodramáticas e o torna num verdadeiro triunfo de cinema enquanto máquina de impulsos sensoriais. Esta é uma abordagem que ainda hoje parece inovadora e quase revolucionária, mas nada disso implica, temos que sublinhar, que a história humana de um adolescente, sua irmã e o criminoso que os seduz a uma vida de crime, não é negligenciada mas sim valorizada pelos devaneios estilísticos em evidência. A cereja no topo do bolo é a prestação de Tony Leung como o Poeta – ele é um dos melhores atores do cinema asiático e aqui ele volta a provar a sua extraordinária excelência, elevando todo o elemento humano do projeto

E assim termina a nossa volta ao mundo em 80 filmes.

Tal como apontado na introdução desta aventura, os títulos aqui presentes são recomendações de possíveis introduções a cinemas nacionais.

Boa sorte nas tuas futuras explorações pelas maravilhas do cinema internacional!

Oroginalmente publicado em 7 de setembro de 2016

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