"Loving Highsmith" | © Ensemble Films

Queer Lisboa ’22 | Loving Highsmith, em análise

Loving Highsmith” considera a vida e legado da famosa autora Patricia Highsmith, explorando o ícone através dos testemunhos de quem a conheceu e seus escritos mais íntimos. Este documentário de Eva Vitija já passou por vários festivais de cinema no panorama internacional antes de, finalmente, chegar a Portugal pela mão do Queer Lisboa. Na 26ª edição do festival, “Loving Highsmith” integra a secção Panorama.

Nascida em 1921, Patricia Highsmith tinha somente 29 anos quando o seu primeiro livro foi publicado e se tornou em sensação mediática. No ano seguinte, logo a obra era adaptada para o cinema pela mão de Alfred Hitchcock. “O Desconhecido do Norte-Expresso” marcou a chegada de Highsmith ao grande ecrã, longo matrimónio inter-artes que duraria até depois da sua morte. Comparada com outros escritores de sucesso seus contemporâneos, é de espantar quantos livros de Highsmith foram adaptados em filmes, uma considerável percentagem da sua obra total. Ou quiçá não seja surpresa, ou não deva ser interpretada como tal.

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© Ensemble Films

Afinal, a sua prosa sempre se assumiu cinemática, cativando cineastas de inúmeras gerações, desde Hitch a Todd Haynes, passando por Wim Wenders, Adrian Lyne e outros que tais. Também a documentarista Eva Vitija se apaixonou por esses muitos livros, quer seja pelo veículo do celuloide ou nas páginas do texto publicado. Contudo, a paixão transcendeu o trabalho para chegar à autora, um movimento do público para o privado que marca “Loving Highsmith.” Este documentário realizado por Vitija tenta explorar esse fascínio, usando muita da escrita que originou a paixão pessoal. Não se trata da ficção, de Ripley ou Carol, mas sim dos diários íntimos de Highsmith.

Ao longo da fita, passagens diarísticas enchem o ecrã, gráficos do rabisco projetados gigantes enquanto, na banda-sonora, a atriz Gwendoline Christie dá vida às confissões mais privadas de Highsmith. Num momento de particular humor, a paranoia da autora é ilustrada por alguns dos avisos e quase-maldições que ela escrevia nas primeiras páginas desses diários, querendo dissuadir outros de lerem seus pensamentos mais secretos. É claro, contudo, que tal inclusão também problematiza a construção do filme em si, dando-lhe uma qualidade voyeurística, qual intrusão num espaço privado ao qual não deveríamos ter acesso.

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Não que Vitija tenha interesse em fazer polémica ou em expor o seu ídolo. Pelo contrário, o esforço da cineasta caracteriza-se por uma aceitação da verdade sobre a figura artística, não obstante quão feia essa verdade possa ser. Vejam-se os comentários sobre o alcoolismo cruel, o racismo e o antissemitismo que assolaram Highsmith na idade idosa, como se os preconceitos dos seus antepassados sulistas tivessem esperado até à velhice para se manifestarem – uma herança sanguínea retardada, mas não por isso menos odiosa. Essa observação é feita com pesar, mas sem moralismo, preferindo examinar o que isso diz sobre Highsmith ao invés de promover o preconceito.

Fugir à idealização é fugir a simplismos e reduções, revisionismos históricos e outros vícios que tais. Também foge o filme de análises sociopolíticas destas vertentes obscuras da autora, mas isso é meio compreensível. Acima de tudo, “Loving Highsmith” tenta expressar o amor titular, indo além do diário e do clip de adaptações cinematográficas para incluir o testemunho de quem realmente conheceu a autora americana. São essas pessoas a família viva de Highsmith e uma coleção poliglota de antigas amantes, desde vedetas germânicas a colegas escritoras. As entrevistas compõem um mosaico de perspetivas complicadas, tão prontas a salientar a glória como a tragédia nessa vida perdida entre o mistério literário e o amor caprichoso.

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© Ensemble Films

O documentário desaponta em forma fílmica, mas vale por esses testemunhos e a janela que abrem para as contradições internas de Highsmith enquanto uma mulher gay no século XX. “O Preço do Sal,” mais tarde rebatizado como “Carol,” eleva-se ao patamar totémico, tornando-se naquele que é possivelmente o trabalho mais importante e mais discordante na oeuvre da escritora. Também o seu infame Tom Ripley reflete algo profundo em Highsmith, uma recusa da culpa que quiçá a autora quisesse também experienciar, vivendo numa sociedade fincada em fazê-la sentir-se mal pelos seus desejos. Para quem há muito se interesse por Patricia Highsmith, o documentário não tem muita informação nova, mas valoriza-se pelo modo como expressa a cativação pessoal da realizadora para com essa artista do passado, esse ícone lésbico, essa arquiteta de mistérios que não eram mistérios e tragédias com finais felizes.

Loving Highsmith, em análise
loving highsmith critica queer lisboa

Movie title: Loving Highsmith

Date published: 19 de September de 2022

Director(s): Eva Vitija

Actor(s): Gwendoline Christie

Genre: Documentário, 2022, 83 min

  • Cláudio Alves - 60
60

CONCLUSÃO:

Para quem ame Patricia Highsmith, o novo documentário de Eva Vitija será um deleite, mesmo que não revele nada novo. Franco e fascinado pelo seu sujeito principal, o filme explora as vicissitudes da mulher enquanto personalidade privada e figura pública, a intersecção da artista e do corpo cheio de desejo, de medos, ódios e amores proibidos.

O MELHOR: O testemunho das antigas amantes de Highsmith, mesmo que estas passagens sejam filmadas sem nenhum estilo ou vontade de articular ideias através da câmara. Suas perspetivas pessoais são suficientes para fazer esquecer o resto.

O PIOR: A displicência formal, o uso de filmagens de arquivo desnecessários, quiçá uma dependência demasiado grande pelo clip de adaptações passadas.

CA

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