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Portugueses – Análise

Em “Portugueses”, o realizador Vicente Alves do Ó arrisca-se e reinventa-se em relação aos seus filmes anteriores, ao transformar um conjunto de canções emblemáticas do 25 de Abril num musical cinematográfico. 

Estrear “Portugueses”, um filme deste tipo em junho de 2025 — numa altura em que o país vive tensões ideológicas, revisões históricas e alguma desilusão com o presente, — não é uma decisão neutra. Mas o realizador Vicente Alves do Ó, assumiu esse risco, mostrando-nos um trabalho que mistura emoção, crítica e celebração do 25 de Abril de 1974.

Portugueses, o filme
Estamos em 1973 e o Expresso, acabava de ser lançado. ©Cinemundo

Um musical fora dos moldes tradicionais

A estrutura narrativa de “Portugueses” é simples, e começa de uma forma quase simbólica: dois homens — um jovem (Diogo Branco), em fuga de um regime opressivo, e um mais velho (Paulo Calatré), que o ajuda a “dar o salto” — atravessam o país como se percorressem a geografia emocional de Portugal. A cada paragem, uma canção. A cada canção, uma memória coletiva ou uma ferida aberta. Este não é um musical tradicional.

Não há números exuberantes nem coreografias ao estilo Broadway. Há, isso sim, 13 interpretações intensas de canções de intervenção como “Que força é essa?”, “Tourada” ou “Grândola, Vila Morena”, entre outras — de autores como  Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira, José Mário Branco, Fausto, Sérgio Godinho, Fernando Tordo ou os poemas de Sophia de Mello Breyner — que pontuam o filme com momentos de grande carga política e afetiva. As músicas não servem como adorno nostálgico, são antes veículos de narrativa e crítica.

Um elenco que dá corpo às canções

Em “Portugueses”, Vicente Alves do Ó conta com um elenco diversificado e bastante empenhado, onde se destacam, além de Diogo Branco e Paulo Calatré, nomes como Rita Durão, Tomás Alves, Lúcia Moniz, Ana Bola ou Sandra Faleiro e muitos outros. As interpretações vocais não são tecnicamente perfeitas, mas isso faz parte da proposta: há falhas, respirações, emoção e vozes que vibram com a urgência do que está a ser dito.

A direção musical, a cargo de Lúcia Moniz e Fred Ferreira, é sólida e funcional, servindo como espinha dorsal do filme. Já a realização de Alves do Ó recusa a rigidez do “teatro filmado”: a câmara move-se com liberdade, procurando ângulos que exprimem tanto a intimidade das personagens como o contexto político que as rodeia. Há cenas filmadas com grande sensibilidade, como aquelas passadas em paisagens rurais, em espaços urbanos vazios, ou na sanzala nocturna e no tiroteio debaixo da intensa chuva tropical,  que ressoam com ora com uma melancolia muito própria, ora como uma violência do passado.

Portugueses de Vicente Alves do Ó
As memórias da Reforma Agrária estão no filme. ©Cinemundo

Abril como celebração e como interrogação

Mais do que um tributo ao 25 de Abril, “Portugueses” é um ensaio visual e musical, bem concebido sobre o estado atual da democracia portuguesa. O filme não se limita a celebrar conquistas: questiona, provoca, expõe mesmo algumas contradições. O que fizemos com a liberdade conquistada? Porque continuamos a marginalizar a cultura? Como é que passámos das ruas cheias de canções à cacofonia das redes sociais?

Estas perguntas surgem com naturalidade ao longo do filme, sem sermões nem excessos didáticos, as vezes até de uma forma um pouco ligeira. Mas estão lá! São um gesto artístico consciente, que convida à reflexão. Naturalmente, “Portugueses” não será um filme consensual. Para alguns, poderá soar panfletário. Para outros, será uma ode necessária. Mas dificilmente deixará alguém indiferente.

Portugueses de Vicente Alves do Ó
É com a personagem de Diogo Branco que começa o filme. ©Cinemundo

Um gesto político e poético

Resumindo, “Portugueses” é um projeto pessoal do realizador e coletivo de muitos, que se assume como gesto político e poético. Numa altura em que muitos evitam a frontalidade, Vicente Alves do Ó opta antes por um cinema de ideias e sentimentos, onde a memória de Abril cruza-se com a inquietação do presente.

Sem ser perfeito, o filme é honesto, coerente com os seus objetivos e feito com evidente entrega, atendendo até aos seus parcos recursos. E isso, por si só, é cada vez mais raro. Entre a ternura, a raiva e a esperança, “Portugueses” propõe-nos um reencontro com a liberdade, aquela que se canta, mas sobretudo aquela que se pensa.

JVM

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Conclusão:

“Portugueses” é um filme corajoso, que escolhe olhar para o passado não como um arquivo fechado, mas como um espelho inquieto do presente. Ao transformar canções de intervenção em matéria cinematográfica,  o realizador Vicente Alves do Ó reinventa o musical político e arrisca uma linguagem onde o lirismo e a denúncia coexistem. Não se trata apenas de um tributo nostálgico ao 25 de Abril, mas de uma interpelação atual sobre o estado da nossa democracia. É um cinema que propõe, provoca e emociona, mesmo quando imperfeito, mesmo quando certamente não consensual.

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Pros

  • A ousadia formal e política: num panorama cinematográfico geralmente avesso ao risco, Vicente Alves do Ó apresenta-nos uma obra que desafia o espectador a pensar e sentir.

  • A utilização das canções de intervenção: longe do mero enfeite nostálgico, cada interpretação musical carrega densidade dramática e peso histórico.

  • A honestidade emocional: o filme vibra com urgência e convicção, sem esconder as falhas das vozes ou dos corpos e ganha força precisamente por isso.

Cons

  • Nem sempre equilibrado na execução: há momentos onde o filme resvala para o ilustrativo, e algumas passagens mais estáticas ou repetitivas perdem o impacto.

  • Risco de parecer panfletário: para públicos menos sintonizados com a proposta ou mais cépticos face à dimensão simbólica, o tom do filme pode soar excessivamente didático ou datado.



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